26 de dezembro de 2004

Previsões

Jornal O Estado do Maranhão 
Na semana passada eu dizia que nesta época do ano florescem facilmente boas intenções e bons sentimentos, raramente transformados em boas ações capazes de povoar o paraíso. Proliferam também, acrescento, as previsões sobre o amanhã da humanidade, das pessoas famosas e, até, da gente simples do povo, compreensivelmente desejosas de saber como será a vida amorosa delas no ano prestes a começar, pois os amores – de todo mundo, parece – sempre se preocupam com as incertezas do futuro e anseiam por palavras otimistas e tranqüilizadoras como só os adivinhões sabem dizer, pois freqüentemente os romeus e julietas têm muitos desencontros que atrapalham a felicidade completa e permanente, tão perto dos amantes, mas freqüentemente tão distante, sendo simples quimera, segundo alguns descrentes no amor.
As previsões são rotineiramente feitas no tom solene e misterioso de quem tem um saber elevado e uma relação direta com um ser qualquer superior, capaz de comunicar ao previsor as novidades futuras, por assim dizer. Como em tudo mais, até mesmo no jogo de bolinha de gude, se é que este ainda é praticado, existem especialistas no assunto. A mãe isso, o pai aquilo, a madrasta não sei o quê, vestidos de branco, voz rouca e pose de sumo sacerdote, ou o cara que diz saber arrancar das cartas dos baralhos os acontecimentos futuros, ou jogar búzios ou entender de tarô, são chamados, por todo o Brasil para entrevistas no fim do ano pelos órgãos de comunicação, sempre dispostos a oferecer aos entendidos todo o tempo do mundo quando está em pauta a futurologia.
É injusta a exclusividade dada a esse pessoal. Não se pode permitir a imposição de um monopólio adivinhatório como esse. Somente eles podem fazer as tais previsões? Qual a razão de os outros cidadãos, honestos e trabalhadores, não serem ouvidos da mesma forma e com igual interesse, de não terem as mesmas oportunidades a fim de expor suas previsões igualmente úteis, ou até mais, do que as dos chamados “entendidos”? Onde fica a liberdade de expressão? Arvoro-me, portanto, em porta-voz dos excluídos e ofereço gratuitamente aos leitores as mais corretas previsões para o ano de 2005.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, aliás, continuará no cargo de presidente do Brasil, produzirá novas metáforas, sua especialidade no campo intelectual. Ele irá comparar a arte de governar à de conduzir um trem. Se a locomotiva (ele próprio) sair dos trilhos é líquido, muito líquido, e certo que o restante do comboio irá parar, dirá ele. Casos de corrupção serão descobertos em alguns órgãos públicos em todo o país. Os acusados dirão que é tudo uma “armação política”, por causa de interesses contrariados justamente pelo trabalho de combate à corrupção que vinham fazendo. Eles reafirmarão sua confiança na justiça, se, é claro, a decisão final no julgamento, na hipótese de serem julgados, lhes for favorável. Os não-acusados prometerão instaurar “rigoroso inquérito para apurar os fatos”.
O futebol continuará ser jogado por 11 jogadores em cada time, com uma bola redonda, apesar da sugestão de alguns americanófilos da substituição do esférico pelo oval, isto é da redonda ou balão de couro, como diziam nos velhos tempos os locutores esportivos, por aquele artefato ovalado, de couro também, usado no futebol americano. Os times do Rio de Janeiro continuarão a comemorar o terem escapado do rebaixamento para a segunda divisão do campeonato brasileiro, como se tivessem ganho o título de campeão pela décima vez.
Como o leitor poderá facilmente perceber, essas previsões são muito difíceis de fazer. Não fora a colaboração de uma equipe especializada, eu teria feito nada. Uma previsão, porém, não apresentou dificuldade alguma, a de que os leitores terão um bom 2005.

19 de dezembro de 2004

Papai noel capitalista

Jornal O Estado do Maranhão 
Nunca me pareceu tão verdadeiro como na semana passada o dito “vivendo e aprendendo”, que é parte do imenso baú da sabedoria popular, feita de senso-comum e lógica simples, e que tanto nos ajuda nos momentos de falta de inspiração, outro nome de falta de idéias. No rádio do carro, eu ouvia uma discussão sobre a implantação de projetos de siderurgia em São Luís. Os ouvintes davam opiniões, guiados, naturalmente, pela clarividência do apresentador. Um deles, aparentemente por nenhuma razão, começou a falar sobre o Natal e Papai Noel. Não me surpreendi de início, porque, afinal, estamos a poucos dias dessa grande festa cristã, tão cara a nossas tradições e propícia à floração de bons sentimentos e intenções, nem sempre transformados em boas ações.
No meio de seu discurso, no entanto, ele soltou a informação que até agora não me saiu da cabeça: o Bom Velhinho fora inventado pela Coca Cola. Querendo aumentar a venda de seu famoso refrigerante, a multinacional com sede nos Estados Unidos resolveu criar uma figura paternal e simpática como essa, com o fim de influenciar as crianças e garantir para a empresa um mercado de consumo no futuro. Acostumados desde pequenos a consumir o refrigerante, a manutenção dos hábitos adquiridos tão cedo na vida seria certa, quando crescessem. Ninguém havia notado a semelhança entre a cor vermelha da empresa e a da simpática roupa de frio de Papai Noel? Dito desta forma, sem a impostação de voz solene que usava, não se pode avaliar a transcendental importância dada por ele à informação.
Depois de alguns minutos, contudo, eu achei não haver entendido nada, pois o sujeito falava muito rápido e, ao mesmo tempo, fazia pequenas pausas, quebrando, inevitavelmente, o ritmo da fala. Com isso dificultava o entendimento de suas opiniões. Mas, no meio da confusão, percebi a seriedade do assunto. Até o ano passado, ele não sabia de nada sobre a invenção, vivia em completa ignorância. Por sorte, caiu-lhe nas mãos uma dessas revistas especializadas em generalidades e ele ficou sabendo da novidade.
O melhor, ou o pior, a depender do ponto de vista, veio em seguida. A Coca Cola e ”o capitalismo” (ele quase dizia capitalismo selvagem, porém deve ter percebido que a expressão está fora de moda desde a ascensão do PT ao poder), em mais uma de suas tramas diabólicas para subjugar a humanidade, haviam juntado forças nessa empreitada maligna. Não foram exatamente essas suas palavras, claro. A conversa, todavia, resultava no mesmo.
Quando o apresentador do programa perguntou se não seria o caso de apenas os trajes do Bom Velhinho, como os conhecemos hoje, terem sido copiados de um modelo usado numa antiga campanha publicitária da Coca-Cola, ele considerou a dúvida uma ofensa sem perdão, um ataque a seu caráter de lutador pela cidadania. O criador do Papai Noel de carne e osso, quer dizer, de imaginação e sonho, foram mesmo a empresa e o “capitalismo” em conluio. Eu tive então a certeza de que aquela risada meio boba do velhinho (ho, ho, ho) foi, na sua origem, uma risada malévola do “capitalismo”, ao pensar nos imensos lucros a serem obtidos da parceria com a influente multinacional. Exatamente como as risadas dos filmes de terror, quando um personagem do Mau antevê seu triunfo, efêmero embora, ante as forças do Bem.
Com diremos, daqui por diante, essa verdade terrível às nossas inocentes crianças, que essa figura tão marcante na imaginação delas e de todos nós adultos, que nunca deixaremos de ser crianças também, não passa de vil instrumento de lucro do capitalismo e, em vez de justo e bondoso, não passa de um Papai Noel capitalista interessado apenas no seu próprio bolso, ou saco, sem fundo?
Mas, ainda assim, é possível desejar a todos os leitores um feliz Natal.       

12 de dezembro de 2004

Dívida, sem dúvida!

Jornal O Estado do Maranhão 
Tudo mundo sabe. Em nome de hipotética “conquista de direitos” e quixotesca “defesa da soberania nacional” face ao bicho-papão FMI, algumas bobagens foram colocadas na Constituição de 1988. Uma das mais pitorescas foi a da limitação da cobrança de juros a 12%, exigência que, cumprida, nos levaria à anarquia econômico-financeiro, porquanto implicaria a renúncia a qualquer política monetária.
Os juros, como os estudantes de primeiro semestre de economia sabem, é o preço do dinheiro. Eles são uma referência básica para todas as atividades econômicas, junto com a taxa de câmbio e os salários. Seu tabelamento em nível artificialmente baixo causaria desestímulo à poupança e problemas de crédito, com as conseqüências que não precisamos mencionar de tão óbvias. Felizmente esse dispositivo constitucional, produto da ignorância acerca dos mais elementares princípios econômicos, foi revogado, por absoluta impraticabilidade, como os congressistas perceberam em crise momentânea de bom senso.
Outra daquelas besteiras é a da auditoria da dívida externa. O artigo 26, do Ato das Disposições Transitórias de nossa opulenta Constituição, exige no prazo de um ano, a partir de sua promulgação, “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”.No caso da apuração de irregularidades, “o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato [...]”.
Ora, essa nulidade é outro nome de calote. O raciocínio enviesado é este. Se o governo do Brasil pediu dinheiro emprestado no passado e algum pilantra federal meteu os dólares no bolso, quem deve pagar pela traquinagem é o emprestador, porque os dirigentes do mesmo Brasil, hoje representado por outras pessoas, fizeram opção preferencial por colocar a culpa da molecagem indígena no satanás alienígena. Todavia, os supostos ladrões eram representantes tão legítimos do país quanto os governantes de hoje. A dívida, óbvio, é do Brasil, não de certo gatuno.
O endividamento mais recente de São Paulo não foi feito por Maluf ou Pita na condição de cidadãos, mas como delegados legítimos, embora tidos por desonestos, do município. Seus sucessores, por causa dessas virtudes, deveriam desobrigar-se do reembolso ao credor? Se alguém deve ser punido são os punguistas dos recursos ou quem tomou os empréstimos sem o devido zelo com respeito às condições de pagamento. Terá algum banco internacional enfiado dinheiro goela abaixo do Brasil?
Agora a veneranda Ordem dos Advogados do Brasil e a benemerente CNBB, apoiadas pelo MST, embarcam nessa canoa ideológica de auditoria. Eu sou a favor também de se apurarem as condições em que a dívida foi contraída (não sei se desde a época de D Pedro II ou de Deodoro), não para não pagá-la e sim para processar os eventuais larápios. Se se descobrir que não tomamos emprestado x, mas a metade de x, ótimo, vamos pagar apenas o devido, contudo pagar. Isso, porém, não livrará a cara dos ladrões nacionais nem colocará a culpa dos nossos males em ombros estrangeiros.
A fim de mostrar ao leitor até onde chega o delírio de algumas pessoas quando se deixam contaminar por idéias pré-concebidas, menciono Beverly Keene, especialista que participou de um seminário sobre o tema. Primeiro, ela fez a redescoberta da roda: “A dívida não é natural. Isso tudo foi construído e vendido”. É verdade, apenas num sentido trivial, pois toda a cultura humana igualmente é uma construção. Depois, propõe uma solução “política” através, de uma “batalha cultural”. Esse é o tipo de palavra de ordem de passeata que não significa nada. Ou significa tudo, dá no mesmo.
Assim como se arrancou da Constituição a idéia de tabelamento dos juros, já é hora de se arrancar também a de auditoria da dívida. Sem dúvida!

5 de dezembro de 2004

Saúde perfeita

Jornal O Estado do Maranhão 
Há três anos, eu escrevi uma crônica com o título “Coco mata”. Eu fazia referência ao conselho, de parte dos entendidos em prevenção de doenças, sobre a necessidade de se fazerem checkups anuais, depois de certa idade, que, tenho de confessar, já ultrapassei com relutância e má vontade, mas há não muito tempo. Seria, tal procedimento, uma espécie de seguro contra ataques traiçoeiros de uma doença moderna qualquer, dessas desconhecidas de nossos avós, ou mesmo das mais antigas, como derrame cerebral, atualmente chamado de acidente vascular-cerebral.
Nós, que não somos médicos nem ameaçamos ninguém com o desejo de sê-lo, ficamos sem saber como proceder a fim de preservar a saúde, pois o recomendável num momento pode não sê-lo no seguinte, como no caso da margarina que, dizem atualmente os pesquisadores, não é boa nem ruim para nosso organismo. Antes, não só não fazia mal ao coração como até o protegia, por causa de sua procedência vegetal, sendo o substituto ideal da nociva manteiga, de origem animal. Era o reino vegetal contra o reino o animal, um defendendo o nosso organismo e o outro atacando.
Vejam agora esta novidade. Dos Estados Unidos, país onde os checkups foram inventados, vem a notícia. Uma equipe de médicos e estatísticos andou examinando os exames utilizados nessas vistorias e chegou a conclusões que precisamos examinar com bastante cuidado.
O grupo deu notas baixíssimas aos preventivos de câncer de próstata, (PSA e toque retal, este de má fama entre os potenciais examinandos, que, vê-se hoje, estavam certos em rejeitá-lo, embora pela razão errada) e de pulmão (raios-X de tórax, tomografia computadorizada e análise de escarro). Os pesquisadores revelaram restrições também aos exames teoricamente destinados à descoberta precoce de câncer de ovário (ultra-sonografia transvaginal) e de doenças coronarianas (eletrocardiograma, exercícios de esforço ou tomografia computadorizada).
Em todos esses casos, ou os danos dos tratamentos precoces superam os benefícios para os pacientes, na suposição de haver eficácia nos exames, hipótese duvidosa, ou não se pode afirmar que os tratamentos adotados como resultado do diagnóstico precoce são benéficos ou maléficos. Em resumo, a recomendação é de não serem feitos regularmente. Outros testes, no entanto, como do colo do útero, medição da pressão arterial e mamografia continuam com a recomendação de realização rotineira.
E assim a gente leva a vida, na ilusão de ter boa defesa contra as doenças, mas em verdade sofrendo, por assim dizer, ataques científicos a toda hora. É difícil apontar com segurança a melhor maneira de se tratar. Dou um exemplo.
Com o fim de emagrecer e evitar os problemas de saúde sobre os quais os checkups deveriam nos avisar com antecedência, um gaúcho, sob orientação médica, resolveu fazer uma dieta de engorda, indo de 125 quilos a 134 em 70 dias. Depois, fez uma cirurgia de redução do estômago, caindo para meros 71 quilos. É que a operação, de acordo com normas das entidades médicas, só pode ser feita em obesos gravíssimos, o que ele ainda não era antes da engorda. Quase morreu no pós-operatório, mas sobreviveu, não sei se feliz ou infeliz, porque de agora em diante não poderá comer muitas comidas de que gosta, pelo resto da vida, possivelmente longa. Tornou-se um magro frustrado, sequer melhorou seu bem-estar físico e vive na incerteza sobre seu futuro.
A continuar esse excesso de, vamos dizer, zelo, chegará a hora de uma simples torção no tornozelo levar o sujeito à internação em um hospital. Lá, ele fará dezenas de exames. Se morrer durante a cirurgia, sua família terá o conforto de saber que ele se foi com a saúde perfeita, contente pelo tratamento com a melhor tecnologia disponível no mercado da medicina.

28 de novembro de 2004

Um exemplo

Jornal O Estado do Maranhão 
Celso Furtado, morto recentemente, foi um dos mais influentes intelectuais do Brasil na segunda metade do século XX. Certamente, sua obra permanecerá como referência indispensável para os estudos da história econômica do nosso país. Seu livro, Formação econômica do Brasil, ao lado de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Retrato do Brasil, de Paulo Prado, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, Os sertões, de Euclides da Cunha, Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Junior, e alguns livros mais, é parte da melhor interpretação, no campo da ensaística, da economia e da sociedade brasileiras. Toda uma geração de estudiosos tem buscado em sua obra os fundamentos de sólidas reflexões acerca da construção do nosso grande destino nacional.
Seria, porém, injusto vê-lo apenas como um economista ou um historiador econômico. Aliás, nenhum bom economista é tão-só um economista. Ele, um erudito, tinha uma imensa esfera de interesses. Era um humanista, no sentido do pensador que coloca o ser humano no centro de suas preocupações filosóficas e morais. Basta ler seus escritos, em estilo elegante e claro, para se verificar que de fato é assim. A solidez e profundidade de sua cultura o conduziram à Academia Brasileira de Letras e, a convite de José Sarney, ao cargo de Ministro da Cultura. Com o fim de exemplificar suas credenciais nessa área, tomemos o seu Cultura e desenvolvimento em época de crise.
Ao falar do papel da Universidade no desenvolvimento do Nordeste, ele destaca a pesquisa, em todos os segmentos do conhecimento, como atividade primordial da instituição. No entanto, ela encontra no acentuado aumento do custo da investigação um obstáculo formidável à realização dessa tarefa. Como resolver o dilema que surge daí, entre a necessidade de obter, de um lado, financiamento para esse trabalho e, de outro, de manter a autonomia em face das instituições que fornecem os recursos para a pesquisa? É nesse quadro que a Universidade tem de atuar e realizar três tarefas fundamentais: “A difusão de conhecimentos de nível superior; a elaboração de conhecimentos de tipo instrumental e a criação de conhecimentos capazes de ampliar o horizonte de aspirações dos membros da coletividade [...]”. Instrumental aí é o conhecimento usado como vetor da ação a serviço da sociedade, na economia ou em outro campo qualquer.
No Nordeste, como em outras regiões dependentes, o ensino universitário limita-se à formação profissional, através do uso de conhecimentos pré-existentes, relegando a segundo plano a pesquisa, fonte da produção de novos conhecimentos. A classe intelectual, por sua vez, em face dessa deficiência, permanece afastada da Universidade, não se estabelecendo, deste modo, vínculos orgânicos entre a formação de nível superior e a vida intelectual propriamente dita que assume, de um modo geral, uma atitude passadista ou de aceitação indiscriminada das modas culturais dos centros mais adiantados.
Enumero essas idéias de Celso Furtado, para dizer que as condições descritas por ele me parecem ser exatamente as mesmas preponderantes hoje no Maranhão. O divórcio entre a atividade universitária e a vida intelectual, ambas, de um modo geral, essencialmente distantes dos nossos males sociais, dificulta, para a sociedade, a compreensão de sua própria realidade e, portanto, a gestação de propostas de solução adequadas à eliminação daqueles problemas.
A superação desse quadro somente ocorrerá se formos capazes de estabelecer um programa de pesquisa nas nossas Universidades voltado efetivamente para nossa realidade material e cultural, embora aproveitando as lições de outras regiões. Fora daí, pouco se alcançará. É parte do exemplar trabalho de Celso Furtado nos ajudar a perceber essa verdade.

21 de novembro de 2004

A invisível

Jornal O Estado do Maranhão 
No meu tempo de criança, morria-se em casa, ou pelo menos ali se faziam os velórios. Era a época das mulheres encalhadas e do recolhimento aos conventos ou deportação para o Rio de Janeiro, forma certa de morte social, daquelas moças ou esposas que se “perdiam”, davam passos em falso, em compreensíveis momentos de fraqueza. Hoje em dia, não sei se para melhor ou pior, as mulheres não encalham, a não ser por vontade própria, não sendo isto propriamente um encalhe, em cujo caso não se diz que ela ficou pra titia, as “fracas” não são enviadas ao Sul ou obrigadas a se retirar deste mundo e de suas tentações, como castigo de seus pecados da carne, nem se morre ou se velam os queridos mortos no próprio lar onde, na época de meus pais, se nascia.
Lembro perfeitamente da morte de um vizinho. Apesar de doente havia meses, ele nunca fora, pelo menos na minha lembrança, a um hospital, dos poucos de então. O médico, sim, eu soube depois, o visitara diversas vezes, pois os tempos eram igualmente de eles consultarem os doentes em casa e não de estes correrem, como hoje, aos hospitais públicos superlotados e lá enfrentarem intermináveis filas, sem garantia de atendimento, no momento certo, de suas necessidades de remédio para o corpo e, muitas vezes, a alma ferida pelo sofrimento.
Estava eu em cima do muro comum com os vizinhos do outro lado, seu Sampaio e dona Antônia, empinando papagaio com um pequeno amigo – Zé Aniesse ou Zé Wellington Trovão? –quando alguém gritou que seu Regino, esse era o nome dele, estava morrendo. Com medo, mas também curioso, corri, ou corremos (seria Marcelo Teles o meu companheiro?) imediatamente, até lá.
Eu olhava assustado a agonia dele no quarto, sem saber como me comportar, querendo ir embora e ficar ao mesmo tempo, despercebido no meio do corre-corre geral, entre seus parentes, conhecidos e amigos. Pensava na razão de não tentarem salvá-lo, pois eu não via ninguém lhe dar um remédio qualquer, sem saber, naquela hora, das inúmeras e inúteis tentativas anteriores de curá-lo. Eu achava que sempre seria possível evitar a morte das pessoas conhecidas. Antes, morrer sempre fora algo distante, acontecimento com desconhecidos, abstrato, parte das histórias contadas pelos mais velhos, assunto de conversas dos adultos. Eu ainda ouvia ecos das histórias da “greve” de 1951, quando houve mortes de muita repercussão. Agora, era ali ao lado e eu estava presente, testemunha da aflição dos vivos, mas talvez não da aflição daquele homem, no minuto final. Voltei ao papagaio, mas não conseguia vê-lo bem lá no alto, apesar de refletir o brilho da manhã ensolarada, preso pela linha às mãos trêmulas do menino aqui embaixo.
Esse drama mudou na forma e na substância, como tudo muda o tempo todo, neste caso para pior. Hoje já não se morre mais em casa, próximo a parentes e amigos, consolados por eles ou pela fé e ritos da tradição, se fé houver na vida eterna após o fim da vida propriamente dita. Atualmente, pode se aspirar apenas a um tratamento em uma UTI, lugar onde dias e noites se confundem e confundem a mente e matam as lembranças, longe das referências que temos de nossos ilusórios pequenos e grandes triunfos, sempre, na essência, indistinguíveis uns dos outros, tratando o corpo e maltratando a alma e a quem amamos, sem chance de rebelião, prisioneiros de alheias vontades, angustiados pela estranheza e frieza do lugar e talvez das pessoas.
A morte comum tornou-se invisível, anônima, solitária, secreta. É tão-só a sua notícia. Nem os outros doentes lhe servem de testemunha, presas eles igualmente dos sedativos e do monitoramento de aparelhos com seus tubos, gráficos digitais e eternos bips.
Não seria possível humanizar esse fim inevitável?

14 de novembro de 2004

Infidelização TIM

Jornal O Estado do Maranhão 
Fidelização é um neologismo inventado pelos marqueteiros. Já foi incluído no Houais, provando a liberalidade, a respeito de novidades lingüísticas, da equipe que produz o dicionário hoje. A mim, soa meio bobo, em especial na boca de atendentes de empresas de telefonia celular como a TIM. Deveria ser, mas não é, isto: “conquista da constância do cliente com relação ao uso dos produtos de determinada marca, serviço, loja ou rede de pontos de venda etc”. O leitor já verá por quê.
Todos sabem o significado de fidelidade, ou pensam saber. Seja como for, ela é desculpa para muita briga, mas, em todo caso, ela depende de cada um. Ninguém é fiel ou deixa de sê-lo contra sua própria vontade, a não ser por breves períodos e em circunstâncias especiais. Ela é semelhante ao amor, com quem anda de braços dados. Ninguém ama ou é fiel por causa de uma lei, decreto ou regulamento.
Eu pensava, ingenuamente – dou minha mão à palmatória, que nem é mais usada, porém deveria, para castigar as traquinagens dos dirigentes de certas empresas –, eu pensava, dizia, na relação entre usuários de telefonia e as prestadoras do serviço como semelhante àquela entre duas Brsoas, espontânea, natural, expressão de livre vontade e sentimentos. Vivi nessa ilusão até pedir o cancelamento de uma linha de celular que eu havia adquirido da TIM. Vou contar a história tintim por tintim.
Disco um número de ajuda ao cliente, que não sei se está aqui no Maranhão ou no Fidelizadustão (esse país não existe também, mas deveria, a fim de abrigar os dirigentes daquelas companhias, após as sessões de palmatoada, durante uma longa temporada de profundas e doloridas reflexões sobre o verdadeiro sentido da vida empresarial). Atende uma gentil senhorita. Ela insiste em saber o motivo de eu não querer mais os serviços da TIM. Pacientemente invento uma desculpa qualquer. Quase eu alego estar de mudança para o Iraque, levando comigo um protetor de pescoço, pois lá este é cortado a três por quatro. Desisti ao imaginar que ela acharia que outras partes do corpo, passíveis de serem decepadas da mesma forma, ficariam desprotegidas e faria perguntas sobre o porquê de eu não desejar, na imaginação dela, proteger o tronco e os membros.
A moça transfere a ligação. Um rapaz delicado repetiu a pergunta. Eu respondi com outra. Aquilo era uma companhia telefônica, ou o FBI de George Bush? Aí, vem a surpresa, anunciada num tom infiel, ou infidel. Se eu quisesse cancelar a linha, teria de pagar uma multa de quase duzentos reais porque eu não era ainda fidelizado, quer dizer, não tinha usado os serviços da TIM por um ano, período mínimo de utilização para não ser penalizado.
Alegou o rapaz que a punição está no contrato. Está. Mas, é a velha história. Na hora da assinatura eles não chamam a atenção acerca dessa cláusula, naturalmente escrita em letras miúdas, a fim de evitar o risco de perda do cliente. No entanto, a exigência é a primeira a ser lembrada na hora da rescisão. Na minha opinião, o procedimento caracteriza má-fé, fé púnica, mas não fé de carvoeiro. É uma tentativa de tornar o consumidor fiel na base do dá ou desce, e não tem justificativa econômica. O custo de um cliente adicional é praticamente zero para as empresas, porém não a receita, igual, pelo menos, ao valor da taxa mínima. Isso é contra o espírito do novo Código Civil e do Código do Consumidor e, pior, não deixa alternativa ao usuário, a parte mais frágil na relação com essas gigantes da telefonia, porque todas elas, em acordo entre si e com a Anatel, adotam cláusulas quase iguais em contratos a que só se pode aderir, ou não aderir, em bloco.
É por essas que elas são as campeães de reclamação no Procon. Cuidado com elas, caro leitor.

7 de novembro de 2004

Fim do mundo

Jornal O Estado do Maranhão 
A certeza era imperturbável. O mundo ia se acabar, mas somente mais tarde ele me anunciou a grande nova. Não seria daqui a bilhões de anos, quando a Terra, por querer voar muito perto do Sol, qual Ícaro com suas asas soldadas com cera, cairá na estrela e se transformará em pó, à semelhança de seus habitantes desde o começo dos tempos, dessa última vez pela ação do mesmo fogo que hoje, distante, nos dá vida.
O desastre seria em alguns meses ou, no máximo, um ano. Não adiantaria recorrer aos deuses, rezar, chorar, pedir, implorar. Não havia esperança de tudo se passar como na canção em que “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar”, porém tudo continuara como sempre, exceto pelas confissões de pecados mortais e veniais, com muito barulho, confusão e divórcios.
Apesar da certeza da catástrofe próxima não se via nele sinal algum de desespero, diferentemente de um personagem de um filme de Woody Allen. Ao saber, ainda bem criança, do destino inexorável de nosso planeta, ele entrou em depressão da qual não se recuperou mais durante toda sua longa e angustiada existência.
Quando o profeta pegou-me no braço, arrastando-me a um canto e dizendo que precisava falar comigo urgentemente, pensei logo num pedido de ajuda. Quem sabe a filha estava doente, a mulher hospitalizada, o pai precisava “tirar uma chapa”, ele tinha uma dor de dente insuportável, alguma coisa assim. Contudo, quando pensei um pouco, fiquei surpreso, pois era bem raro se ouvir sua voz. Eu mal conseguira falar com ele duas ou três vezes em mais de dois anos. Se não lhe dirigissem a palavra era capaz de ficar o dia todo mudo, como um monge distante das agitações mundanas. Ele dava a impressão de não querer incomodar nem ser incomodado, mas cumpria diligentemente suas obrigações. Portanto, aquela conversa só podia ser especial, assunto de vida e morte.
Com a aproximação do fim terreno, certeza adquirida em leituras das sagradas escrituras de sua religião, ele me escolhera para ser salvo, pois embarcaríamos numa nave espacial, capaz de nos levar em segurança a qualquer lugar do universo. Não atinei com a razão da escolha nem perguntei nada.
Recusei a oferta. Continuaria com os pés firmemente plantados na Terra, velha conhecida, em vez de me aventurar no infinito, sem ter certeza de chegar a nenhum paraíso, exposto a meteoros desgovernados. Eu já ficaria satisfeito se pudesse escapar das ameaças deste mundo: os altos impostos, os livros de auto-ajuda, os juros altos, as promessas de época de eleição, o desemprego, a epidemia de cadastros inúteis, os vírus da internet, os buracos nas ruas, os messias eletrônicos, os seqüestros, as companhias telefônicas, as distribuidoras de energia elétrica e, sobretudo, George Bush. Quem poderia garantir que os problemas não seriam os mesmos em outro astro?
Melhor morrer aqui, em vez de penar pelo universo sem ter onde repousar, andando de estrela em estrela, feito um andarilho universal. Talvez, essa figura de ficção, Osama bin Laden, intangível como um fantasma, onipresente e onipotente, aceitasse uma carona. Afinal, o exército mais poderoso da Terra anda atrás dele. Poderia ser uma boa oportunidade para escapar mais uma vez e definitivamente do Tio Sam, que a tão longe não chega.
Mas, ponderei, não era o mundo que se acabava. Nós é que acabávamos o mundo, pela poluição do ambiente e a destruição da fauna e da flora. Além disso, eu já estava salvo, garanti. Salvo da ignorância, pelos livros, e de acreditar nesse tipo de fuga, no fim do mundo amanhã e em paraísos terrestres ou cósmicos. Ele me olhou serenamente e disse algo sobre o dia do Juízo Final, quando eu por fim acreditaria em suas palavras. Seria tarde, porém.
Haveria eu de sofrer a condenação?

31 de outubro de 2004

O verbo é Chagas

Jornal O Estado do Maranhão 
O verbo é o princípio de tudo. Ele nos fez e nos faz humanos, nos inventou, reinventou e reinventa permanentemente. É a própria essência da interminável luta pela comunicação significante com nossos semelhantes, quantas vezes frustrada, mas indissoluvelmente parte da nossa natureza. Ele nos distingue como superiores – o antropocentrismo aqui é justificado – aos seres dos quais, não fora por essa diferenciação tão cotidiana, todavia tão poderosa, estaríamos separados tão-só por alguns genes. O verbo, sim, é o inventor daquilo que chamamos de espírito ou alma.
Mas, como todos nós aprendemos à custa de muitos desencontros e desentendimentos, o manejo do verbo não é trivial, sendo embora uma faculdade distintivamente humana. Queremos dizer uma coisa e dizemos outra. Erramos no tom, erramos nas palavras, erramos nas frases. Sem remédio, pois o dito não morre depois de enunciado. Ele somente começa a viver naquele dia, como anunciou Emily Dickinson e como o prova a obra de José Chagas. Dizemos, então, de novo (a mesma coisa?) e temos a ilusão de dizer diferente e melhor. Em vão, porém. Somos Sísifo, sempre rolando uma grande pedra até o topo da colina e de novo a levando até lá, após ela rolar de volta até embaixo. (Contudo, vale a pena a luta com as palavras!).
Quantos escapamos da armadilha contida nesse esforço sem fim de aproximação com os nossos semelhantes? Quantos conseguimos fazê-lo e criar beleza ao mesmo tempo? Mas, pensemos por um momento. A comunicação com o outro, o saber achegar-se pelo uso artístico da palavra, e a criação do belo, como no caso de José Chagas, não serão a mesma coisa?
Isso que agora tento expressar com tanto esforço e cuidado me foi sugerido pelo reconhecimento dos maranhenses, nestes dias, à excepcional qualidade da obra dele, nos seus oitenta anos. Praticamente, tudo sobre suas incomparáveis qualidades de homem e escritor, já foi dito. Acrescento, apenas, uma pequena nota.
Quando leio Chagas, penso no acerto da afirmação de Ezra Pound de que “os artistas são as antenas da raça”, ou na de Friedrich Hölderlin de que “o que fica o fundam os poetas”. Não falo, portanto, exclusivamente de sua raríssima habilidade verbal, que nos deixa admirados e humildes, não humilhados, antes exaltados, e nos dá a sensação de ser, para ele, o ato de escrever, mera questão de ir arrumando as palavras e as idéias com certa displicência e bastante naturalidade, como quem monta um quebra-cabeça em que tudo se encaixa com perfeição e nada falta nem é supérfluo no final. Elas parecem lhe chegar submissas, com pedidos de um sopro especial de vida, significados inesperados, construções surpreendentes. São imediata e gentilmente atendidas.
Falo também da capacidade dele de ir além do domínio da técnica de um artesanato verbal singularíssimo, a fim de captar as angústias, desejos e aspirações de sua sociedade e de seu tempo, sendo simultaneamente universal e atemporal. Nisso está, sem dúvida, a marca dos grandes escritores. Falar de sua aldeia para falar do mundo e falar de hoje para falar dos eternos dramas humanos. É fácil, por isso, perceber por que Chagas é verdadeiramente uma daquelas antenas.
Se ele o é, nós, que não somos, devemos deixar que nos guie. Assim, melhor entenderemos São Luís, sua mais bela e constante Musa, seus prédios, seus azulejos, suas praças, suas marés, suas palafitas, suas pontes, suas pedras, seus meio-fios e veremos a cidade e seus habitantes como o microcosmo da humanidade e seus lugares de morada em qualquer época.
O verbo é o princípio de tudo, já sabemos. Porém, o verbo, como acabamos de notar, é também Chagas, com sua força fundadora igual àquela percebida por Hölderlin. Seu nome convocará sempre visões de grande arte.

24 de outubro de 2004

Bolsa-Escola

Jornal O Estado do Maranhão 
Voltam às manchetes novas denúncias de irregularidades em programa social do governo federal. Não é a primeira vez nem será a última, afirmação que faço na suposição de o conhecimento do passado servir, na maioria das vezes, para imaginar o futuro, se, como neste caso, as condições político-sociais que produzem uma situação vexatória como essa não mudarem.
Desta vez é o chamado Bolsa-Escola, atualmente parte do Bolsa-Família, destinado a incentivar monetariamente a matrícula de crianças na escola. Pelo andar da carruagem, ele poderia mudar o nome para Bolso-Escola, pois, ao colocar dinheiro no bolso de quem já tem uns trocados, deixa de colocá-lo no de quem anda com a bolsa vazia, mas, por isso mesmo, não pode ter seu direito de embolsar alguma educação negado por causa de sua pobreza.
A Bolsa vem das tetas do governo e vai parar ou passear no bolso dos bem escolados. Esse pessoal merece mesmo é bolsadas, mas com bolsas cheias de pedras, para ver se tudo que não presta sai de suas cabeças de gente sem educação moral. Só assim conseguiríamos acabar com os tais bolsões de analfabetismo.
Esses programas em geral apresentam resultados pífios por duas razões.  Primeiro, suas ações não atingem o alvo, devido a erros de planejamento em que os beneficiários são definidos incorretamente em relação aos resultados desejados. Segundo, porque durante sua operacionalização, os recursos são desviados de suas finalidades, não se excluindo a ocorrência simultânea das duas causas.
Exemplo da primeira situação está justamente no ainda Bolsa-Escola. Segundo ampla avaliação feita por Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE e presidente do Instituto do Trabalho e Sociedade, sua concepção peca por concentrar esforços nos grupos com menor necessidade de incentivo a matricularem-se na escola. A ênfase, segundo os dados levantados, foi colocada nas crianças de 7 a 13 anos. Mas, vejam só, elas já tinha taxa de escolarização de 95% antes de sua inclusão no programa. No entanto, as de 5 e 6 anos e as de 14 ou mais são as mais necessitadas daquele estímulo, por terem previamente taxas de escolarização bem menores do que as crianças da faixa de 7 a 13.
O mal emprego dos dinheiros públicos, por sua vez, tem origem tanto na pura e simples ineficiência da burocracia estatal quanto na corrupção alimentada pelo sistema político-social, uma coisa reforçando a outra. Quem já teve a oportunidade de lidar com um desses programas pode perceber como as infernais exigências burocráticas parecem regras feitas por marcianos para marcianos e não para pobres terráqueos pobres, incapazes sequer de entender o exigido deles em termos de papelada inútil.
Certa vez, quando eu dirigia um órgão público, recebi a visita de um representante do Banco Mundial. Ele descreveu as maravilhas de um programa social, notoriamente ineficiente, financiado pelo Banco. Ao final de sua pequena palestra, eu lhe disse que, na hipótese de a mim ser dado o poder de determinar a melhor forma de aplicação daqueles recursos, eu os colocaria em um helicóptero e mandaria jogar o dinheiro nos locais de moradia dos potenciais beneficiários. Eles colheriam mais benefícios, dessa maneira, do que através da burocracia montada com o fim de supostamente administrar o programa.
Não quero dizer que esses programas não dão resultado algum. Dão alguns, como mostra a própria avaliação de Schwartzman. Contudo, poderiam ser mais eficientes, se esses distorções todas pudessem ser eliminadas, eliminando-se do nosso meio a cultura do roubo, da vantagem a qualquer preço e da indiferença aos problemas sociais. Quanto a mudanças na natureza das atividades estatais, tendente à ineficiência e à corrupção, não se pode ser minimamente otimista.

17 de outubro de 2004

Educação zero

Jornal O Estado do Maranhão 
Nélson Mota, que descobriu Marisa Monte, músico, escritor, compositor, produtor cultural, autor do livro de memórias Noites Tropicais e de algumas obras primas da nossa música popular, entre elas “Como Uma Onda”, em parceria com Lulu Santos, chega de Nova York depois de morar na cidade por nove anos e reclama.
Reclama com razão de alguns hábitos disseminados no Brasil que lhe causam, e a muitos, a mim pelo menos, indignação, por representarem falta de respeito ao cidadão e à vida em sociedade e aversão ao consumidor. Supostamente, este, no Brasil, é protegido por um Estatuto. Mas, na prática os efeitos positivos dessa peça de legislação são quase nenhum, apesar de alguns progressos de uns tempos para cá. Creio entender o sentimento do compositor, pois quando voltei dos Estados Unidos, depois de cinco anos de residência, sem vir uma única vez ao Brasil, também tive de reaprender a convivência com esse comportamento, sem aceitá-lo, porém. Antes o combato. Não foi nem é uma tarefa fácil, para quem se acostumou a conviver com o respeito ao consumidor, como é o caso nos Estados Unidos.
Nélson Mota fala das “autorizadas” que não consertam o forno de microondas, depois de mil promessas de fazê-lo, das “especializadas” com suas juras nunca cumpridas de fornecer orçamentos, da agência do correio onde se leva uma hora até o atendimento, do caixa “rápido” dos supermercados, cuja finalidade é atender pessoas com até dez itens de compras, mas usado por gente com dezenas de produtos, sem ninguém reclamar, e por aí vai. Eu já mencionei antes problemas semelhantes em nossa cidade, reveladores de má educação de nossa classe média e do descaso das empresas pelos clientes.
Não há quem nunca tenha sofrido as conseqüências das filas duplas e triplas nas portas de escolas dos filhos desse pessoal, somente porque as mamães ou os papais não querem estacionar seus carros no lugar certo, a fim de não andarem extenuantes vinte metros até a porta da escola. É a velha desculpa de “é rapidinho”, semelhante à usada pelo sujeito que atira lixo na rua na esperança de que só ele o faça, sem problemas, portanto, para os outros. É a falácia da composição: uma ação individualmente racional, torna-se irracional se todos a adotam simultaneamente.
E as portas de garagem bloqueadas na maior cara-de-pau, impendido-nos de sair de nossas casas ou nelas entrar? Morra quem quiser, em caso de urgência. E o desrespeito às regras do trânsito? Estas, aliás, parecem ser, aqui, diferentes do resto do Brasil. E as faixas de pedestres onde eles têm a vida ameaçada? E as contas mal explicadas das companhias telefônicas, campeãs de reclamação no Procon, sempre tentando lesar o consumidor? Somos acusados de fazer ligações, sem possibilidade de defesa, pois não conseguimos falar com seres humanos, apenas com máquinas, instaladas com a intenção de colocar uma barreira entre o usuário e as empresas. Não sei se o leitor já reparou no barbarismo call center, ridículo, usado por elas.
Faz alguns dias fui a uma agência do Banco do Brasil. Quase cheio o estacionamento, restava uma única vaga. Era destinada a pessoas com dificuldade de locomoção, conforme indicavam um enorme símbolo pintado no chão e um aviso numa placa. Não foram suficientes para impedir um musculoso rapaz de óculos escuros, com pose de gladiador decadente e sem noção de civilidade, de estacionar seu carrão ali, onde se dedicou a fazer inúmeras ligações telefônicas, enquanto esperava seu comparsa, ocupado no interior da agência. A vaga, ele não tinha dúvida, lhe fora reservada por desígnio divino.
Será com esse tipo de gente e empresas, de educação zero e fome infinita de acumulação, que construiremos uma sociedade melhor?

10 de outubro de 2004

Reforma política

Jornal O Estado do Maranhão 
Uma das melhores coisas destas eleições, não foi as próprias eleições, mas a rapidez de sua apuração.
Não teríamos motivos de comemoração, se avaliássemos o pleito pelo analfabetismo arrogante de vários candidatos e suas promessas de realização impossível; pela nova fraude do voto migrante, pela qual eleitores, em número capaz de influenciar no resultado da disputa, têm seus títulos transferidos para municípios onde não moram, com o fim de aumentar a votação dos autores do golpe; pela balbúrdia partidária, incentivada pela legislação, permissiva nos assuntos importantes, como o da fidelidade ao partido, e restritiva nos pequenos, numa tentativa inútil de regulação exaustiva da realidade socio-política do Brasil; e pela chatice do programa gratuito de propaganda política.
Todavia, progressos já ocorreram no combate à corrupção, em comparação com o tempo em que inexistiam urnas eletrônicas. Alguns dos problemas de hoje estão mais ligados à cultura política da sociedade do que à tecnologia de realização dos pleitos, não sendo isso uma característica exclusivamente brasileira.
As novas gerações, familiarizadas com a informática, presente em todo lugar e em tudo atualmente, embora às vezes nem se possa percebê-la, não pode sequer fazer uma idéia de como se votava e se faziam as apurações na época das cédulas de papel. Nos anos cinqüenta do século passado, o candidato dispunha de ampla liberdade de imprimi-las, com seu nome (não havia números) e cargo cobiçado. No dia da votação, o chefe político as distribuía a seus eleitores.  Sendo a maioria destes do interior, aqui no Maranhão e em outras regiões pobres e rurais do Nordeste do Brasil, eram muitas vezes confinados em ambientes semelhantes a currais, de onde somente saíam a fim de colocar as cédulas nas pesadas urnas de madeira, difíceis, até, de serem transportadas, conforme me lembra Benedito Buzar. Quem tivesse maior capacidade de arrebanhar – o termo certo é esse, arrebanhar – eleitores acabava vencedor. Era um sistema podre, pois, em detrimento do jogo limpo, privilegiava a força econômica. Era aberto a todo tipo de falcatrua e, portanto, a disputas arbitradas por uma justiça raramente independente.
A totalização durava o tempo necessário à produção de resultados falsos. Era muito comum ouvir-se dizer, ao longo da apuração, que os “redutos”, localidades onde supostamente um possível derrotado era muito popular, ainda não estavam contados, para justificar a escassez de votos de alguns aspirantes a um mandato político.
Evoluímos com a adoção da cédula padronizada, mas ainda de papel, e posteriormente, da urna eletrônica, que permite a soma informatizada, rápida, difícil de ser fraudada e sujeita a mínimas falhas. O interesse de vários países pela nossa tecnologia nesse campo é grande, sinal de sua confiabilidade.
Esses aperfeiçoamentos, porém, ocorreram no ambiente de eleições proporcionais como o nosso em que o voto é da legenda, e não do postulante a um mandato, forma de escolha, hoje em desuso no mundo inteiro, para cargos do poder legislativo, porque cria uma séria distorção na representação parlamentar: candidatos com votação pequena se elegem em detrimento de outros bem votados. Se algum dia o sistema teve alguma justificativa, agora há um consenso sobre seu potencial em distorcer a representação e a vontade populares.
O estabelecimento do voto distrital, misto ou puro, e a criação de legislação que iniba a anarquia dos partidos e os fortaleça são mudanças importantes de aperfeiçoamento político do país. Entre as reformas tão reclamadas pela sociedade brasileira, essa, de cunho político, é a mais importante. Sem ela, não será possível implementar as outras, que as têm como precondição.

3 de outubro de 2004

Ranger de dentes

Jornal O Estado do Maranhão 
Contaram-me que, no sábado, a turma, velho costume, estava no maior bate papo, todo mundo despreocupado da vida, copo de cerveja na mão num bar da Litorânea. Conversa de futebol, eleição e mulher. Curtição da manhã de sol e de vento forte e gostoso dessa época do ano aqui na Ilha. Gente de meia idade, com a vida mais ou menos arrumada, aparentemente sem grandes problemas. O celular toca ­– mais um – e uma voz conhecida diz que está chegando com uma novidade. “Por telefone não tem graça, quando chegar aí, eu digo. Quero ver a cara de vocês”.
O pessoal ficou mudo quando ele contou. Até os vira-latas da calçada em frente sentiram a mudança dos ânimos no bar. O sujeito chegou com uma história sobre o desprestígio do pênis. De cara, pensaram ter ouvido “do tênis”. Qual tênis? Seria um exemplar de alguma velha marca, fora de moda, incapaz de sustentar os esforços prolongados de quem o coloca nos pés? Ou seriam todos os calçados desse tipo, que, de tanto usados, perdem o vigor e vacilam no desempenho de funções vitais, ante os olhares angustiados de seus outrora orgulhosos proprietários? Alguém pensou em jogo de tênis e criticou Guga pelas últimas derrotas, como se não fosse bastante sua contribuição ao esporte no Brasil. É o tal negócio. Ou o cara tem um desempenho perfeito sempre ou caem de pau nele. Mas, claro, não se tratava de tênis de nenhum dos dois tipos.
A fonte da notícia estava no livro Uma mente própria: uma história cultural do pênis, de um tal de David M. Friedman. Dita assim, a seco, sem preparação, sem nenhum preâmbulo, a novidade poderia parecer brincadeira ou, até, falta de jeito ou de jeitinho. No entanto, o caso era sério.
O mais coroa do grupo disse que, de fato, percebera ultimamente a perda de prestígio mencionada pelo amigo. Ele notara que o desprestigiado chegava num órgão público, por exemplo, e acabava servido de chás-de-cadeira. Esperava um tempão, humilhado, encolhido, quase invisível, no fundo de uma poltrona na ante-sala do chefão. Já sem esperança de conseguir alguma coisa, depois de tanta expectativa, não agüentava mais e decidia relaxar. Dava uma volta lá fora durante um bom tempo. Ao retornar, porém, continuava cabisbaixo, sem força até para se levantar, com vergonha de entrar sem ser autorizado, sem coragem de se mostrar, incapaz de crescer nesses momentos de crise, como faria alguém de mais fibra. Quanto sofrimento, quanta incompreensão, quanto desprezo injustificado! Pior ainda, ninguém atinava com a origem dessa rejeição.
Quem diria! Havia pouco tempo, continuou o coroa, o agora enjeitado entrava altivo em qualquer ambiente, cabeça erguida, firme, em atitude desafiadora. Carregava aquele porte marcial de guerreiro destemido, armado de determinação inquebrantável, sem receio de nada, pronto para qualquer desafio, imune a fracassos, psicologicamente em perfeito estado. Era a imagem perfeita da pujança, da força da natureza, disposto a encarar qualquer desafio, superar qualquer obstáculo, por mais difícil que parecesse, a seu avanço impetuoso, desajeitado mesmo, por vezes, temos de admitir.
Ele sequer se importava com as acusações de ser uma ferramenta de opressão, de fazer tudo errado, de ser um cabeça-oca. Contudo, como na canção, o seu mundo caiu e o fez ficar assim, caído daquele jeito. Quem te viu e quem te vê, pobre coitado! Tu que acreditavas nas glórias deste mundo materialista, depravado e indiferente a quem tem valor e é capaz de avançar sem pestanejar em direção a seus legítimos objetivos!
A vida é assim. Uma hora estamos por cima, outra por baixo. Os desprestigiados de hoje podem ser os prestigiados de amanhã. Aí, então, não será surpresa ouvir gritinhos e ranger de dentes.

26 de setembro de 2004

Herança maldita

Jornal O Estado do Maranhão 
Leio nas páginas amarelas da revista Veja entrevista do antropólogo Roberto DaMatta, professor recém-aposentado da Universidade de Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos. Eu estudei economia nessa instituição, na área de organização industrial. Mais especificamente, como parte de um projeto financiado pelo Ministério do Trabalho dos Estados Unidos, analisei as implicações para a criação de emprego das tecnologias utilizadas no Brasil pelas empresas multinacionais, comparadas com as nacionais, agrupadas por setores econômicos segundo critérios do IBGE.
Quanto maior uma empresa, mais tecnologias intensivas em capital, que geram pouco emprego em comparação com as intensivas em mão-de-obra, serão utilizadas, independentemente da nacionalidade da empresa. As multinacionais, conforme meu estudo mostra, são maiores em comparação com as brasileiras do mesmo setor e usam tecnologias mais intensivas em capital. Justificam-se, portanto, políticas governamentais, de um lado, de apoio às empresas nacionais e, de outro, de suporte aos setores onde estas constituem a maioria, se o objetivo principal das políticas governamentais é a maximização da criação de empregos, na ausência de mudanças nos outros parâmetros da economia.
Mas, eu queria dizer que na entrevista à Veja, o professor DaMatta destaca o que ele chama com muita propriedade de as duas faces do governo petista. Moderna e liberal, uma, capaz de lidar com eficiência com a economia brasileira, impedindo a transformação em realidade das mais pessimistas previsões de caos econômico para o período posterior à posse do presidente Lula. A outra face é a autoritária, corporativista, estatista, coletivista e, eu diria, estalinista e ditatorial, expressa nas tentativas de controle da liberdade de expressão, como aconteceu há pouco com o projeto de cerceamento das atividades jornalísticas através do malfadado Conselho Federal de Jornalismo.
Há somente três semanas eu dizia aqui: “O governo continua acertando na economia, que mostra sinais de recuperação, ameaçada, no entanto, pela alta do preço do petróleo, e errando no resto”. Qual dos dois lados irá prevalecer no futuro? Vencerá a modernidade ou as forças do atraso, a visão retrógrada do mundo, terão a última palavra, com seu imenso cortejo de pobreza e miséria? Teremos de esperar mais algum tempo a fim de saber.
Aponta com toda razão o professor, do ponto de vista de quem é brasileiro e observa de fora seu país, o surgimento de uma onda positiva em torno do Brasil. As pessoas no exterior se surpreendem ao descobrir que produzimos, por exemplo, aviões e que somos competitivos com nossos produtos agrícolas, como a soja e muitos outros.
É, como se vê, o bom desempenho na economia, possibilitando a melhora de nossa competitividade nos mercados globais, a fonte da transformação positiva de nossa imagem. O interesse por nós aumenta com o aumento das exportações de nossos produtos.
Porém, quantas críticas recebemos da imprensa mundial, de governos estrangeiros e de organizações internacionais, por causa dessa tendência antidemocrática do Partido dos Trabalhadores, representada à perfeição pelo chefe da Casa Civil do governo Lula? Essa triste característica, de cunho político-ideológico, ameaça quebrar a onda em favor do Brasil. Não mereceremos o completo respeito da comunidade internacional enquanto não nos livrarmos dessa herança maldita dos tempos de oposição do PT. Se na época isso era só uma atitude inofensiva, embora lamentável, agora, no governo, é inaceitável.
Mudo de assunto e termino com uma pergunta que anda na cabeça de muita gente. Será o Maranhão o Iraque, pois aqui, como lá, ocorrem decapitações, como fizeram com a estátua de Odorico Mendes?

19 de setembro de 2004

Almas Generosas

Jornal O Estado do Maranhão 
Nas últimas semanas, como estivesse de mudança para nova residência, abandonando o outrora charmoso bairro do Olho d’Água, tive de examinar velhos papéis, antes no fundo de velhas gavetas, o melhor lugar onde não achá-los quando deles se precisa e, no entanto, o primeiro em que os guardamos. Minha intenção era selecionar, aproveitando a inevitabilidade do manuseio, durante a confusão mudancista, os poucos que ainda possivelmente servissem para alguma coisa e jogar fora a maior parte, na suposição de serem agora desnecessários às necessidades práticas da vida. Coisas como antigos recibos, notas fiscais, declarações de imposto de renda da era pré-informática, feitas à mão na vigência de moedas já mortas e enterradas, antediluvianos manuais de obsoletos aparelhos eletrônicos despachados para os museus há séculos.
Vã intenção, pois sempre que estou a ponto de tornar real uma separação como essa, verdadeira perda de pequenos pedaços de minha própria história, por um lado, e, por outro, ilusão de ganho de espaço onde ele é escasso, tenho a sensação de estar cometendo, senão crime doloso, pelo menos alguma contravenção, sendo eu mesmo a inescapável vítima.
Então, eu mudo de plano e, pensativo e mudo, guardo os papéis novamente por um período cuja duração nunca sei qual será. Contraditoriamente, todavia, me assalta nesses momentos fundo sentimento de culpa, semelhante ao de olhar na estante os livros não lidos ainda, apesar de todas as resoluções de lê-los na semana seguinte, o que, se feito mesmo, me pouparia de responder à freqüente pergunta de muitos sobre “todos esses livros” da minha biblioteca. Não, não li todos, respondo. Mas, terei tempo de fazê-lo, pois viverei mais de cem anos.
Mas, esse ritual de separação, uma realidade apenas virtual, pois nunca se materializa, como as promessas eleitoreiras e as de salvação eterna em troca de votos, talvez se pareça com a perda de amigos diletos, com quem, como no caso dos papéis velhos, trocamos idéias e de quem também não queremos nos separar para sempre. Com uma diferença, porém. Os dois amigos desaparecidos recentemente, Djalma e Oliveira Ramos, não estavam jogados em nenhuma gaveta do esquecimento.
Djalma, meu barbeiro havia muito (barbeiro, não cabeleireiro), era o mais intelectual entre os de sua profissão e talvez mais do que muitos considerados como tal. Lia regularmente os bons autores de língua portuguesa, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Rachel de Queiroz, Aloísio Azevedo, bem como os cronistas maranhenses, sobre os quais, enquanto exercia sua arte em salão no prédio do antigo Hotel Central, fazia bem humorados e originais comentários. Estava a ponto de se iniciar em José Saramago. Fiquei lhe devendo os empréstimos do Ensaio sobre a cegueira e O Evangelho segundo José Cristo, os dois romances de que mais gosto, do escritor português.
Oliveira Ramos tinha uma característica raríssima, a de rir até de suas próprias desventuras, das quais não se lamentava, como não culpava ninguém por elas, embora tivesse bons motivos para isto e para denunciar as perseguições que sofreu. Com agudo senso de humor, verve especial, imaginação incomum, facilmente aproveitável na ficção, e domínio profundo dos labirintos gramaticais do nosso idioma, ele era um excelente artesão da crônica, muitas vezes a arte de aparentemente falar sobre nada, com o fim de expressar muita coisa. Em vários momentos, escreveu peças memoráveis nesse gênero provisório, mas difícil, como nos seus últimos textos publicados aqui em O Estado do Maranhão, perpassados de uma certa tristeza, mas não de amargura, ressentimento ou ódio, emoções de almas pequenas.
Meus dois amigos tinham isto em comum: eram homens de almas imensas e generosas.

12 de setembro de 2004

Letras e números

Jornal O Estado do Maranhão 
As eleições deste ano trouxeram à discussão o analfabetismo dos candidatos a vereador e prefeito, bem como outras curiosidades que, entra ano sai ano, divertem o eleitor, a exemplo dos nomes e apelidos folclóricos e das propostas, mais folclóricas ainda, de melhoramento de suas cidades.
Eles não prometem tão-só o paraíso na Terra, desejo de todos, pois entre esperar a felicidade no além ou tê-la nesta vale de lágrimas terreno, não há quem não prefira a segunda opção, de gozo imediato. Tenho a impressão de serem muitos deles uns grandes gozadores com a boa fé dos eleitores. Eles chegam perto de garantir, com a inflação de postulantes auto-intitulados evangélicos, a salvação eterna em troca de voto que, afinal, devem pensar, só custa o trabalho de ir a um local de votação e apertar alguns botões de máquinas eletrônicas.
Parece não haver dúvida sobre a proibição, pela Constituição de 88, em seu artigo 14, parágrafo 4º., da eleição de pessoas incapazes de ler e escrever: “São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”. Na prática, a Justiça Eleitoral, na ausência de comprovação de alfabetização, não recusa o pedido de registro da candidatura. Em vez disso, pelo menos em alguns Estados, examina o pretendente, por meio de provas escritas, e toma uma decisão.
No entanto, como não existe ainda uma forma padrão de realizar os testes, cada juiz, diante de casos concretos, avalia esses autênticos vestibulandos da vida política como lhe parece mais adequado. Desse procedimento imposto pelas circunstâncias, pode surgir muita confusão. Digamos que um juiz avalie como alfabetizado um ansioso aspirante a prefeito. Não causaria surpresa a ninguém um colega do magistrado considerar analfabeto o mesmo postulante.
A explicação dessa divergência está na forma de avaliação adotada pela justiça. Os testes aplicados em cada município ou em cada comarca são diferentes em forma e conteúdo, porque diferentes são as pessoas que os elaboram e diferentes será confuso, portanto, o conceito de analfabetismo de cada uma delas, na falta de critérios objetivos de julgamento. Ou seja, a subjetividade prevalece numa situação como essa. Saber ler e escrever, embora precariamente, seria suficiente para alguns juízes como prova de alfabetização, enquanto bastaria, apenas, saber assinar ou desenhar o próprio nome no entendimento de outros.
Talvez tudo resultasse mais simples se a interpretação da exigência constitucional fosse menos liberal e a simples falha em apresentar certificado de conclusão do primeiro grau, por exemplo, eliminasse imediatamente o potencial candidato. Casos excepcionais poderiam merecer um exame dentro de regras claramente estabelecidas.
Em que pese, todavia, a legítima preocupação da justiça e de muita gente neste país com a escolaridade de nossos representantes municipais, origem de toda essa discussão de forma alguma ociosa, arrisco-me a dizer que o maior problema não é de falta de luzes. Ao contrário, é de excesso, não com respeito às letras, mas aos números. Essas pessoas, ou melhor, parte delas, para não ser injusto com os inocentes, apesar do analfabetismo e da aparente cegueira intelectual, têm os olhos bem abertos para as coisas práticas e uma habilidade muito útil no combate à pobreza deles. Eles são muito bons em aritmética, elementar e avançada, a bem dizer.
Essa destreza lhes permite subtrair com muito engenho, somando bens ao patrimônio privado. Se não é o milagre da multiplicação dos pães, prova da existência de milagres, é a multiplicação da própria riqueza, ainda que adicione à miséria e descrença alheias. Está certo que, às vezes, ficam divididos e chegam a confundir o seu com o dos outros. Mas, quem nunca ficou confuso com a tabuada algum dia?

5 de setembro de 2004

Discursos

Jornal O Estado do Maranhão 
Muitas vezes Machado de Assis externou sua opinião sobre a influência maligna, segundo ele, da política sobre a atividade literária. Numa crônica de 31 de janeiro de 1870, ele fez uma análise de Entre o céu e a Terra, de Flávio Reimar, que não era outro senão o nosso Gentil Braga. O livro fora enviado pelo autor, com uma recomendação de um grande amigo de Machado, Joaquim Serra. Por sinal, quando este morreu em 1888, o escritor carioca escreveu uma das suas mais belas crônicas, das muitas que publicou, durante, praticamente, toda sua vida, em jornais do Rio de Janeiro, de onde nunca saiu, indo no máximo a Petrópolis.
Isto inspirou Luciano Trigo a escrever um ensaio chamado O viajante imóvel: Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo, uma espécie de guia da cidade, do século XIX, com base nos romances, contos e crônicas de Machado. Este, apesar desse, digamos, provincianismo, foi o mais universal de nossos escritores. Viajava com a leitura de seus autores prediletos, Homero, Luciano de Samósata, Platão, Plutarco, Horácio, Tito Lívio, Petrônio, Shakespeare, Cervantes, Calderón, Erasmo, Stern, Pascal, João de Barros, Gil Vicente, Eça de Queiroz, Alexandre Herculano, sem contar os brasileiros.
Pois bem, ao fazer comentários sobre o livro de Gentil, disse ter este abandonado a poesia para entrar na vida pública, no Parlamento Geral, hoje Congresso Nacional, e na Assembléia Provincial. Mas, tinha esperança: “Não morreu este poeta, e escapou ao orçamento e ao esquecimento”.
  Em outra ocasião, em 2 de fevereiro de 1873, afirmou que a política militante desperdiça o tempo e destrói a criatividade: “Não lhe devorou ainda a imaginação, e bem o prova com este seu livro dos Quadros”. Reparem bem no ainda, como se não estivesse certo de, no futuro, a política não roubar a imaginação do autor, neste caso Joaquim Serra. Ele faz muitos elogios ao livro do amigo. Tantos que, lá no penúltimo parágrafo, se sente na obrigação de perguntar, num autopoliciamento caracteristicamente machadiano, se não diriam que não achava defeitos na obra. Vejam a resposta: “Acho; quisera que desaparecesse um ou outro descuido de forma, o que não é exigir o exclusivismo dela”. Ora, ele mesmo não se livrou de um ou outro descuido de forma, como ninguém se livra sempre. Para além dos méritos de Joaquim Serra, sente-se a amizade entre os dois.
As referências aos dois escritores do Maranhão não é um fato isolado. Ele tinha genuína admiração pelos intelectuais da brilhante geração do Grupo Maranhense, como Odorico Mendes, João Lisboa, o próprio Gentil, Sotero dos Reis. Fazia freqüentes referências a eles em sua crônicas, tendo incluído vários deles no seu clássico estudo Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade.
Sua ligação com nossa terra e seus homens de letras era forte. Prova é a presença em sua casa, no momento de sua morte em 1908, dos maranhenses Coelho Neto, Graça Aranha e Raimundo Corrêa. A Gonçalves Dias ele dedicava uma admiração especial. Disse em outra crônica: “Morreu no mar, – túmulo imenso para seu imenso talento”. Descreveu com evidente emoção a visão que teve do poeta na redação do Diário do Rio: “Entrou um homem pequenino, magro, ligeiro. Não foi preciso que me dissessem o nome; adivinhei quem era. Gonçalves Dias! Fiquei a olhar, pasmo, com todas minhas sensações e entusiasmos da adolescência. Ouvia cantar em mim a famosa ‘Canção do Exílio’”.
Mas, não sei se a política de algum modo atrapalha a literatura. A julgar por José Sarney, escritor e político, do Maranhão como Gentil Braga e Joaquim Serra, citados por Machado de Assis, não atrapalha. Mas, política e literatura são formas de discurso, um do poder, outro sobre o poder. Têm isso em comum.

29 de agosto de 2004

O senhor ouvidor

Jornal O Estado do Maranhão 
Em 1543 quando era corregedor da Justiça em Elvas, no Alentejo, em Portugal, o cidadão Pero Borges recebeu do rei D.João III a incumbência de supervisionar a construção de um aqueduto. A obra ia pela metade quando parou. A verba acabara. Os vereadores da cidade indignaram-se, talvez por não terem a oportunidade de participar do trabalho de dar sumiço aos recursos destinados ao aqueduto. Enviaram, então, uma carta ao rei, solicitando uma investigação sobre as razões da carência dos fundos que eles pensavam ser bastantes a tão necessária obra, destinada a matar a sede de água dos habitantes da cidade e, como se vê, de dinheiro de Pero e seus comparsas.
O rei deu autorização para a abertura de um inquérito, tão “rigoroso”, suponho eu, como os de hoje. Os investigadores chegaram à óbvia conclusão. O corregedor colocara no bolso 50% da verba, correspondente a um ano de seu salário. Três anos depois ele foi condenado a devolver ao erário o dinheiro surrupiado, e proibido por três anos de exercer cargos públicos.
Prestem muita atenção agora. Esse espertalhão foi nomeado em 1548, pelo mesmo rei D. João III, como ouvidor-geral da América Portuguesa, o primeiro na sua história, uma espécie de ministro da justiça. Recebeu ainda a promessa de nomeação para o cargo de desembargador da Casa de Suplicação, correspondente a um Supremo Tribunal, em Lisboa, “se bem servisse”. Teve mais. A mulher de Pero, Simoa da Costa, receberia uma pensão anual de 40 mil reais, uma forma de diminuir sua solidão e evitar tentações materiais, durante a estada do marido por estas bandas, sendo o salário dele de 200 mil reais anualmente. Ele embolsou o valor correspondente ao primeiro ano desta generosa remuneração antes mesmo de sua partida, a fim de exercer a nobre missão de distribuir a justiça, zelar pela honesta aplicação dos recursos reais e ajudar na centralização administrativa da América Portuguesa, por meio da criação de uma imensa burocracia a partir da implantação no ano seguinte do primeiro governo-geral.
Não seria esse o primeiro episódio, o ato fundador do muito que se vê nos nossos dias de malversação do dinheiro público, de corrupção, de nepotismo e de pura e simples roubalheira, com resultados favoráveis, quase sempre, ao malfeitor, em vez de contrários, com uma punição exemplar?
Essa mentalidade de “o crime compensa”, da centralização excessiva, desnecessária e inócua, do controle exagerado e ineficiente, da formalidade das vírgulas, ponto-e-vírgulas e pontos, do procedimento processual obscuro e irracional se entranharam de tal forma e com tanta força na nossa cultura, que ganharam foros de normalidade, de necessidade, de indispensabilidade, de racionalidade e de imperatividade.
Tudo isso se combina para travar o país e impedir a plena utilização de suas enormes potencialidades. Tomo como exemplo as Olimpíadas. Com o nível médio de renda do Brasil, com sua numerosa população e área, melhores resultados poderíamos alcançar, relativamente aos que apresentamos. Se não os temos é porque não nos organizamos com o fim de obtê-los, por culpa, em boa parte, de nossa incapacidade de superar alguns daqueles entraves culturais. O voleibol é uma exceção a confirmar a regra. Felizmente, temos ainda, na ginástica olímpica, a extraordinária Daiane dos Santos, exemplo de maturidade e talento, prova de que nem tudo está perdido, e, no futebol feminino, esse grupo de abnegadas que luta solitária e competentemente pelo Brasil.
Por falar em cultura, lembro da Academia Maranhense de Letras, lugar de alta cultura. Naquela Casa, tomarei posse na cadeira número 8, cujo patrono é Gomes de Sousa, na próxima quinta-feira, dia 2, às 20 horas. O leitor fica convidado para a solenidade.

22 de agosto de 2004

Eterna juventude

Jornal O Estado do Maranhão 
 Tem gente que acha eleição, especialmente a municipal, a coisa mais chata e irritante do mundo e faria qualquer negócio para se livrar dela. O volume altíssimo nos altos falantes dos carros de som dos candidatos, as promessas não-cumpridas com a maior cara de pau, as trocas de partido, mal encerrada a votação, o analfabetismo de muitos, são de encher o saco do eleitor. Com razão, é bom dizer. Ninguém gosta de ser enganado, ou incomodado sem mais nem menos. Quanto mais por um pessoal acostumado a prometer o paraíso e entregar o inferno ou não entregar nada. A bem dizer, eles só entregam os adversários, com denúncias, dossiês e espionagem eletrônica. No fim, todo mundo acaba entregando todo mundo, mas não os mandatos, que, em princípio, não são dos eleitos, mas do povo.
Eu penso de outra forma. Se dependesse exclusivamente de mim, haveria eleição anualmente, ou até semestralmente. Exagero? O leitor já deve ter notado como, no aspecto físico, as cidades se tornam lugares menos ruins de viver durante as campanhas, exceto pelo ruído excessivo dos trios elétricos nas carreatas, que faria tremer as bases das pirâmides do Egito. A saúde, a educação, tudo parece melhor. Os hospitais e as escolas, nas peças publicitárias pelo menos, não têm defeitos nem filas. Ouço o leitor dizer que as dificuldades aumentam e os problemas pioram depois do pleito. Pode ser. Mas, todos concordarão num ponto. Se não fosse pela eleição não teríamos nem mesmo um pouco daquela maquiagem. Mas há algo melhor.
Quem nunca viu os rostos alegres e descontraídos dos potenciais prefeitos e vereadores a desfilar nas páginas dos jornais e nas telas da televisão? Nunca deixou de me impressionar neles este prodígio eleitoral-virtual. Pessoas antes consideradas indiscutíveis Matusaléns, do tempo do Big Bang, ou das tábuas de Moisés, de repente surgem de rosto tão liso, sem uma ruga sequer, que pensamos terem eles descoberto, enfim, a fonte da eterna juventude. A gente olha e não reconhece a cara do cara ou tem só uma vaga lembrança daquela face sorridente (os candidatos estão sempre sorrindo) e acaba por concluir que conhece o sujeito de algum lugar, quem sabe da eleição anterior.
Outro dia eu vi uma foto num cartaz, com um daqueles slogans embaixo, comuns nesta época, tais como “Honestidade e Incapacidade”, “Trabalho e Incompetência”, “Juventude e Cobiça”, “Renovação e Preguiça”. Parei por alguns segundos e não tive mais dúvidas. De tão parecido com o pai, só que mais jovem, aquele só podia ser o filho de um amigo, com quem eu não me encontrava havia muitos anos. Era o pai vinte ou trinta anos antes. Tive a impressão de ter visto a palavra filho depois do último nome no cartaz. Mas, vá entender os mistérios da mente! Por um mecanismo psicológico qualquer, eu havia acrescentado uma palavra onde não havia nenhuma. Era Silva e pronto. Eu li Silva Filho. Contudo, era o pai mesmo.
Fui pra casa pensativo, filosofando barato sobre o passar do tempo, ou o não passar para alguns. Então o meu amigo continuava tão jovem como antes! No dia seguinte – coincidência das coincidências –, dei de cara com o candidato. A surpresa foi maior ainda. Lá estava ele com um largo sorriso de Matusalém feliz. Eu pensava na foto, olhava pra ele e não acreditava na minha própria visão. Dei tratos à bola sobre a capacidade do computador de retocar fotografias.
O poder rejuvenesce, dizem. Não sei. Sei que os candidatos, a maioria sem nenhuma chance de alcançá-lo, rejuvenescem, virtualmente, por certo, mas rejuvenescem e sentem-se felizes durante algum tempo. Os vencedores, porém, são os únicos felizes duas vezes. Uma pela juventude virtual, na campanha, e outra pela juventude imaginária do poder, depois de eleitos.

15 de agosto de 2004

Más notícias

Jornal O Estado do Maranhão 
O governo continua acertando na economia, que mostra sinais de recuperação, ameaçada, no entanto, pela alta do preço do petróleo, e errando no resto. Entrou na ordem do dia a polêmica sobre a criação do Conselho Federal de Jornalismo. A discussão surge num momento em que, acossada por denúncias de irregularidades fiscais contra os presidentes do Banco Central e do Banco do Brasil, a administração petista passou, por sua vez, a denunciar as denúncias, falando de um suposto “denuncismo”.
É o feitiço contra o feiticeiro, pois ninguém mais do que o PT denunciou Deus e o mundo no passado. Mas, como seu mundo agora é outro, o partido passou a considerar boa só a denúncia contra os outros, sejam eles do governo, antigamente “acusado” de “neoliberal” e autoritário, ou da oposição, agora tachada de denuncista, quando antes, nos velhos maus tempos, estava apenas defendendo o interesse do “sofrido povo”. Essa atitude precisa ser denunciada imediatamente, sob pena da oposição ser denunciada como omissa pelo povo unido que, como se sabe, jamais será vencido se, bem entendido, ajudar a denunciar quem deve ser denunciado. Isso aí pode parecer uma confusão, mas a culpa não é minha, é dos denunciados. Se alguém me denunciar como confuso, eu denuncio a denúncia num tribunal do Iraque.
O certo, ou melhor, o errado, é o seguinte. A atitude do governo denuncia a ocorrência de um grave surto de paranóia, semelhante ao de Bush. Qualquer crítica é vista como má vontade da imprensa ou conspiração internacional. O leitor certamente se lembra da tentativa de expulsão do país de um jornalista estrangeiro. Com base em imagens do presidente de copo na mão, freqüentemente mostradas na imprensa brasileira, que decerto não as fabricou, ele deduziu, como muitos brasileiros, que Lula gostava de tomar seus bons tragos. Tanto bastou para a bravata do banimento. E as preleções do ministro Gushiken sob o correto comportamento da imprensa?
Houve igualmente o caso das propinas do Waldomiro Diniz. Nenhum porta-voz governamental teve a coragem de afirmar que as fitas mostrando o cara com a boca na botija eram uma “armação”. Mas, uma vez mais, a imprensa virou o mordomo das histórias policiais. A culpa era de quem vivia divulgando as imagens e não de quem pedia 1% para traficar influência. Waldomiro, execrado pelos colegas de classe por cobrar um preço considerado baixo pelos veteranos, desacreditou ainda mais a profissão, essa, sim, a mais antiga do mundo.
Existe, naquelas reações do governo, um padrão autoritário de cunho estalinista, desenvolvido pelos principais comissários do comitê central do partido. Se não for possível amordaçar a imprensa completamente se, ela reincide na crítica, então o melhor é controlá-la. Por isso, a proposta de criação do tal Conselho. Seu anteprojeto foi elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas e pelo Ministério do Trabalho, de Ricardo Berzoini, o acusado de tentativa de assassinato dos aposentados, com um cadastro em punho. O presidente da Federação, filiado ao PT, disse que ele e Lula têm a mesma concepção de democracia. Não duvido.
O projeto de lei fortalece o corporativismo e enfraquece a liberdade de expressão. Entre seus objetivos está o de “zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe”, punir “condutas inadequadas” e “orientar e disciplinar” a atividade jornalística, como se já não existissem leis adequadas para lidar com situações desse tipo. O tom é o do repelente centralismo democrático dos Partidos Comunistas. Agora, o governo tenta controlar tudo proibindo que funcionários públicos dêem informações à imprensa. Haverá ainda alguma dúvida sobre sua intenção de impedir a divulgação de más notícias para ele?

8 de agosto de 2004

Um professor

Jornal O Estado do Maranhão 
Recebo um cartão de pêsames de Kalil Mohana e vou às gavetas procurar velhas fotografias de meu tempo do antigo ginásio no Colégio Marista. Ele não está em nenhuma apesar de ter sido meu professor de história. Estão o Irmão Ivo Anselmo, professor de Química, com seu porte marcial e ares germano-gaúchos de chefe escoteiro disciplinador e de falso durão, quase se ouvindo seu sotaque de um tipo que eu nunca ouvira antes aqui nas lonjuras de nossa província; o Irmão Raimundo Lobato, trazendo em tudo a marca de seus ancestrais do Marajó, professor da fascinante física, moreno em contraste com o branco Anselmo, os dois, um do extremo Sul do Brasil e o outro do Norte, refletindo conjuntamente a heterogeneidade do nosso povo; Irmão Geraldo, nordestino valente que nos obrigava a decorar todos os afluentes do rio Amazonas, das margens esquerda e direita, sem perder nenhuma chance de mostrar a camisa do Flamengo invisível na foto, sob a batina um pouco desleixada; o Irmão Pio, de óculos Ray-ban escuros e o eterno solidéu que lhe encobria a careca, trazendo à lembrança os pontos bons e maus dados por ele a cada aluno para cada resposta certa ou errada a questões de análise sintática com que ele fazia o bem de nos saturar o ano inteiro.
Não importa a ausência de Kalil. Mesmo sem estar nas fotos, a sua personalidade sedutora não se apagará da memória de seus alunos. Sua pedagogia transformava as aulas num autêntico folhetim educacional, levando os estudantes a ficar ansiosos pela próxima lição, ou, o próximo capítulo das aventuras e desventuras dos espanhóis, incas, maias e outros povos. Ele próprio, com extraordinária imaginação, senso de humor e modos espontaneamente teatrais era a atração principal das aulas. “Os espanhóis avançam, os maias preparam-se para a luta. Conseguirão repelir os invasores ou serão derrotados? Quem vencerá esta batalha decisiva? Saberemos na próxima aula...”. Era como nos seriados do cinema. Via-se num domingo um episódio que terminava em grande suspense, com o herói à beira do precipício ou a ponto de, amarrado nos trilhos, desintegrar-se sob as rodas de um trem. Somente no fim de semana seguinte se via a continuação, à semelhança dos folhetins eletrônicos de hoje, as telenovelas. Para nosso grande alívio o bem sempre vencia o mal, como não acontece no mundo real.
As viagens de estudos por todo o Brasil era outro recurso pedagógico usado com muita inventividade e sucesso por ele. Elas tinham sua parte recreacional, é claro. Mas, a capacidade de Kalil de despertar em nós o desejo de conhecer a história dos lugares que visitávamos, como a de Alcântara, ou de descobrir as potencialidades econômicas de várias regiões do Brasil, nas visitas a projetos de exploração mineral, por exemplo, tornava o que poderia uma chata obrigação em agradável recreação. Aprendíamos quase sem perceber, de forma indolor, podemos dizer.
A sua família é um símbolo do sucesso dos imigrantes libaneses nesta terra e da sua contribuição a nossa cultura e economia. Kalil, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, deve-nos um livro sob a história de seus antepassados em nosso Estado, tarefa inteiramente dentro de sua capacidade intelectual Entre seus irmãos, está o saudoso João Mohana, sacerdote, médico, escritor autor de uma obra reconhecida nacional e internacionalmente e membro da Academia Maranhense de Letras em que foi titular da cadeira 3 cujo patrono é Arthur Azevedo, presentemente ocupada pelo filólogo Antônio Martins de Araújo.
Ibrahin, Julieta, Olga e as lembranças de Alberto, já falecido, completam essa família de pessoas dotadas daquela cada vez mais escassa, mas velha e boa honestidade, de autêntica modéstia e admirável inteligência.

1 de agosto de 2004

A Mãe

Jornal O Estado do Maranhão 
Há dores particulares que se tornam universais por serem comuns a todos nós. Quem não as sentiu ainda, um dia as sentirá e sofrerá com elas, tornando-se mais humano. Uma delas é a da morte de uma pessoa amada. Penso, assim, que os leitores serão compreensivos e não se importarão se eu lhes falar sobre a nossa mãe, minha e de muitos irmãos, Maria Raposo Moreira. Ela acaba de morrer aos 83 anos, em paz consigo, com o mundo e com o seu Deus de todas as horas.
Quem sabe no futuro, algum curioso descobrirá, ao ler velhos jornais, a existência em São Luís do Maranhão, onde passou a maior parte de sua vida, de uma mulher nascida em Cajapió, que, por sua inteligência excepcional, temperamento marcante, caráter firme e aptidão especial para criar filhos, ao lado de seu grande amor, Carlos Moreira – eles agora felizes se reencontram, a fim, desta vez, de ficarem juntos por toda a eternidade –, cumpriu diligentemente a missão de mãe. O senso de responsabilidade, a disciplina férrea, a honestidade, o gosto pelos estudos, pela leitura e pelas coisas do espírito, a crença no irresistível poder libertador da educação, a fé em Deus e a lealdade à Igreja Católica, a idéia de progresso pessoal por esforço próprio, a importância da família, a precaução contra a amizade de interesse, a preservação da dignidade, a altivez ante as adversidades, o respeito aos idosos, numa sociedade habituada a desprezá-los sem remorsos, eram valores e atitudes que ela cultivava sem descanso e buscava imprimir nos filhos.
Tendo um grande talento para as artes, escrevia pequenas peças de teatro, com sua letra surpreendentemente perfeita de canhota obrigada a escrever com a mão direita quando criança, na época em que, ali perto da igreja de São João, participávamos das atividades sociais da loja maçônica freqüentada por meu pai, a Beckman. As histórias de sua terra natal, nos soberbos campos da Baixada Maranhense, nunca ausentes da lembrança nem dos brilhantes olhos que sorriam com certa tristeza altiva e lhe faziam mais belo o belo rosto, a brisa morna e suave daquelas terras e mares nos fins de tarde balançando a rede branca no alpendre da pequena fazenda, as histórias de navios encantados, a pobreza do povo, a luta dos parentes humildes pela sobrevivência, a aventura do irmão Cursino que fora embora de repente para o Rio de Janeiro, os anos de estudos, mais tarde, em São Luís, na Escola Agrícola e no Liceu na mesma turma do irmão mais próximo, Alvacir, a saudade dos outros irmãos, Haroldo, Saul e Luizinho, presos ainda ao chão de nascença, mas depois encaminhados à capital, todas essas lembranças se transfigurariam nos grandes romances e contos que escreveria, caso não tivesse sacrificado essa vocação em favor da família.
Tinha gosto pelo cinema, em especial os grandes musicais de Hollywood dos anos quarenta e cinqüenta, sendo ela própria dona de uma beleza das atrizes dessa época, com os penteados altos que alongavam para cima o rosto de linhas retas dela, como se vê no retrato de casamento a interrogar o futuro em uma pequena casa do centro da cidade, no antigo Caminho da Boiada. Alguns anos após, “com suas saias godês e aquele sorriso americano, ela era princesa e castelã da Casa do Areal...”, como o sobrinho Luiz Alfredo disse nos 80 anos dela.
Na comprida mesa retangular amarela dessa nova casa, se acomodavam, já crescidos, os meninos, como ela nunca deixou de chamar os filhos, cansados do trabalho, para almoçar ou jantar sob seu olhar ansioso e preocupado. Teria tudo corrido bem ou alguém lhes havia feito algum mal? A saúde estava boa? Perguntas feitas mais com olhares e gestos do que com palavras. Se alguém lhes feria era porque não conhecia a inteligência, a boa educação e a energia para o trabalho, as virtudes todas, enfim, vistas por ela nos filhos com o olhar orgulhoso de mãe. Afinal, quando pequenos, eles somente faziam alguma coisa errada sob a influência maléfica dos colegas travessos, aqueles garotos mal educados sobre os quais ela exercia severa vigilância. Muita ofensa aceitaria e perdoaria, como boa cristã, mas não lhe tocassem mesmo de leve nos filhos ou no marido.
Podemos vê-la ainda, em meio a essa nuvem que nos embaça os olhos com tantas lágrimas de tristeza, a deslizar pela casa, orientar as empregadas na limpeza de tudo e na preparação das refeições, chamar os meninos para o estudo e autorizar as brincadeiras, mas só depois de cumprida a regra sagrada de fazerem as lições de casa.
Valho-me mais uma vez das palavras de Luiz Alfredo, que a admirou e amou como se fosse um filho de verdade: “Mas deixa tantos retratos na minha lembrança! Entre eles, aquela conversa pausada e sentenciosa, na cadeira de balanço, iluminada a espaços pelo seu sorriso docetriste”.
A presença é tanta nessa aparente ausência!

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