14 de julho de 2002

Espírito santo?

Jornal O Estado do Maranhão
Tem-se falado muito ultimamente sobre os perigos de instabilidade econômica, decorrente da proximidade das eleições, sobre a falta de confiança dos mercados nas informações de balanço de grandes empresas norte-americanas, por causa da maquiagem de seus resultados operacionais, com reflexos no mundo todo, e sobre a crise da Argentina e seus efeitos negativos na nossa economia. Preocupações importantes. Mas, acredito, não tão importantes quanto as surgidas com a não-intervenção no Espírito Santo, episódio muito perigoso para o futuro do país.
Todos conhecem, atualmente, o poder imperial do crime organizado no Estado. As evidências são abundantes e crescentes. Segundo os Ministérios Públicos, capixaba e federal, a Polícia Federal e a CPI do Narcotráfico, uma tal de Scuderie Detetive Le Cocq, entidade paramilitar, semelhante às que existem por aí em muitas republiquetas, atua lá, mediante extorsão, intimidação, assassinatos, fraudes, suborno e tudo o mais que se possa imaginar de métodos criminosos, usados no assalto aos cofres públicos e na violação dos direitos humanos. O mais grave, contudo, é o envolvimento, com os malfeitores, de autoridades do Legislativo, Executivo, Judiciário e da Polícia Militar. O presidente da Assembléia, José Carlos Gratz está indiciado em quatorze processos criminais e sofre acusações de ser o chefe do crime organizado no Estado.
Essa situação gerou pedido da OAB ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, vinculado ao Ministério da Justiça, de intervenção no Estado. A aprovação foi unânime, com a participação do Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, do Ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, do Secretário de Direitos Humanos do governo e do representante do Ministério das Relações Exteriores. A decisão foi encaminhada ao próprio Procurador, que deveria enviá-la ao Supremo Tribunal Federal, para deliberação final.
É difícil acreditar que o ministro Reale e os outros membros do governo presentes à reunião não tivessem discutido, previamente, o assunto, tão importante para o país, entre eles e com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Este concordou com a intervenção. Surpreendentemente, todavia, Brindeiro, após “consultar” o presidente, que mudou sua posição depois da reunião do Conselho, arquivou o pedido. Gratz debochou, dizendo: “Eu tinha certeza que o pedido seria arquivado”. O ministro pediu demissão e os criminosos, altamente organizados, tocaram foguete, como disse Reale. Eles tinham razão de comemorar.
Com base no noticiário, podem perceber-se duas considerações “convenientes”. Uma, eleitoreira. Líderes partidários temiam que, por ter sido, o governador do Estado, durante muito tempo, filiado ao partido e, também, da alta direção do PSDB, seu afastamento teria efeitos eleitorais negativos sobre o candidato do partido, José Serra. Alijado do poder, o chefe do Executivo poderia atacar o governo com chumbo grosso. (Teria ele conhecimento de traquinagens ocultas dos dirigentes tucanos?). É a teoria do poder a qualquer preço. Vá o país, o Estado, esse pessoal com mania de honestidade e esses defensores de direitos humanos para os quintos dos infernos. Vale mais ganhar as eleições.
A outra consideração teria a ver com a eventual necessidade de reforma da Constituição, em pontos relativos à economia, a fim de prevenir qualquer instabilidade econômica, na passagem para o novo governo. Qualquer mudança constitucional é proibida, pela própria Constituição, enquanto durar uma intervenção Essa seria provavelmente longa. Mas, claro, a maior instabilidade que uma nação pode enfrentar é a da lei da selva, como a do Espírito Santo hoje. A tragédia da Colômbia está aí ao nosso lado, como exemplo. Estão em jogo as vidas de pessoas que lutam corajosamente contra a bandidagem naquele Estado e em todo o Brasil. Nenhuma conveniência política ou econômica pode justificar a omissão ante a chantagem desses bandidos, que nada têm de espírito santo.

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