26 de fevereiro de 2006

No fim das terras, uma leitura

Jornal O Estado do Maranhão, Caderno Alternativo

O livro de poesia No fim das terras, de Milton Torres, diplomata gaúcho que serve atualmente no Consulado Geral do Brasil em Houston, no Texas, publicado pela Ateliê Editorial, de São Paulo, em agosto de 2005, é desses que, pela originalidade temática está destinado a marcar a poesia brasileira.
A obra tem clara unidade de temas, pela visão do poeta sobre história, economia e sociedade, e cobre período que vai do início da expansão do império marítimo português até a Copacabana de nossos dias, passando pela aventura espanhola no Novo Mundo, pelo sistema colonial português na América, pelo Iluminismo mercantilista de Pombal e pela proibição da tecelagem por Dona Maria num tempo em que o processo manufatureiro da Colônia não podia mais ser contido. Nesse painel, Milton demonstra rara erudição, o que se pode ver também em outro trabalho seu, relativo ao Maranhão, feito a partir do manuscrito Memória político-econômica sobre o Maranhão, que achou na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, de característica fortemente mercantilista e com ásperas críticas à vida social e econômica maranhense de fim do século XVIII, de autoria de Joaquim José Sabino, secretário, entre outros mais, do governador colonial do Maranhão, Francisco de Melo Manuel da Câmara, o mal afamado Cabrinha. Esse discurso é confrontado por Milton com os de autores mais antigos e autores contemporâneos a Sabino, engajados ideologicamente no ascendente liberalismo econômico.
Nos Poemas Portugueses, primeira parte do livro – a segunda contém os poemas do Novo Mundo – Milton satiriza a civilização ibérica e seu universo mental, em vários poemas que se podem chamar de crítico-narrativos, mostrando a hipocrisia do poder, que acompanha os descobrimentos (“perca-se pois o Infante, que Ceuta / é chão de Cristo – assim socorre-nos o canonista, / o Arcebispo”, em “Infante-Santo”); o custo humano da empreitada nas novas terras (“[...] bebe a lenta peçonha a quem do espaço se apossa [...]”, em “Arquipélago do Maluco”); o machismo e a situação de opressão da mulher tanto em Portugal quanto no além-mar (“[...] e suei tanto e muito pari / e quanto fósforo qu’inda perco.”); o absolutismo português , em “Pombal” (“fez Deus um terremoto, faço eu mais outro. [...]”); a fraqueza da Metrópole, que não é capaz de criar um processo de acumulação capitalista vigoroso, apesar dos ganhos provenientes do açúcar, do tabaco e do ouro da Colônia, servindo de mero entreposto da Inglaterra (“[...] – mas que se passa Davi, que todo o ouro-lastro passa / do nosso ao reino dos teus?!”, sendo esse Davi não o da Bíblia, mas o da economia, Davi Ricardo, ou ainda, “[...] meus dobrões de gramas trinta ajunta-os Álbion[1] / a mancheias, e com isso oiço dizer / à Industrial Revolution mais capital de giro / décadas poucas do giro do passo meu [...]”); a Inquisição (“o sobreiro[2] é esfolado e negro / como um negro em carne / ao braço secular rendido); a Universidade e sua escolástica justificadora do status quo (“NOTABILE SCHOLION / ESCOLIOSE ESCLEROSE ESCOLÁSTICA / STATUS QUO”); a intolerância religiosa, como em “O Dente de Buda (Trazido a Goa)” (“enfim o desconforme dente! / no almofariz da fé fffffffffffff fi-lo em pó / e soprem-no os pandos ventos té os incréus / e axfixiem-nos um a um da sujidade – o Senhor é servido!”).
O poeta não deixa, porém, de prestar homenagem a Portugal, quando diz: “tudo perdi!, portulano da vã aventura / roeram-te as traças, e ao mar rojo o resto / nem a tudo, diz-me o mar ao pé do ouvido: / – guarda-te a memória vasta qual o orbe!, lê / do abissal registro donde se não desfaz a risca / lê e rejubila!”. É o reconhecimento da perenidade da obra portuguesa, pioneira da globalização, e de sua importância, a ser para sempre guardada pela história, na expansão das fronteiras do mundo moderno.
Outros poemas, em especial os da segunda parte, em que a sátira se desloca para os dias de hoje, revelam “estados de espírito” sobre o espaço social brasileiro e, portanto, têm caráter mais abstrato. É o caso de “Idade de Ferro”: “[...] do fundo, a melosa música / de um blue. À chamada: -here!, -here!, / -here! / (nobody’s missing.) [...]”; ou deste outro: “o pé descalço é flexível / democrático, recoberto da pele / protege-se das asperezas da terra / e guarda um resíduo moral num tanto de umidade.”; ou ainda: “o cão predominante o chefe da matilha / a sua legítima / o cheiro do cão abatido o chão batido / do butim sem linha de fuga a foto desfocada / o erro da paralaxe. o fecho de segurança prende as fezes ao cão.”; e mais este: “o caranguejo revira o outro / dá-lhe nó / redu-lo ao bater aéreo das patas [...]”.
Há poemas, em geral curtos, de caráter conceitual. Empresa Marítima, por exemplo: “o fazedor é o Rei: eu mais não sou que o bater da nadadeira sua”. A visão irônica do poder do rei, a quem todas as vontades devem se subordinar, e dos súditos, meros instrumentos do poder absoluto Eles são nadadeiras, nada, coisa nenhuma, desimportantes. Este outro: “escreve, escriba, que caiba / no mesmo papel que te dei”, revela outra face do poder, o do controle sobre idéias e correntes do pensamento moderno. Há mais um que diz apenas isto: ENCOBERTO DESCOBERTO / DESCOBERTO ENCOBERTO. Tomando como ponto de partida a palavra Encoberto, que se refere ao mito de D. Sebastião, rei cujo desaparecimento na África constituiu tragédia nacional e simbólica que deixaria profundas marcas no imaginário português, Milton aponta, pelo jogo das palavras, o que os descobrimentos descobriram e o que a centralização, o autoritarismo, a Inquisição e todas as formas de censura associada à expansão ultramarina acabaram por encobrir.
A parte final traz os poemas do Rio, que refletem a experiência da juventude do poeta no Rio de Janeiro. Nas escolas cariocas, os alunos tinham de dizer de cor os nomes de todos os Departamentos da França, mas desconheciam informações básicas sobre o Brasil, como sugerido em “Rio De Janeiro – 1900”. Um dos poemas mais interessantes é o que utiliza a linguagem do funk dos morros cariocas: “funk crak estupro / tênis de grife / bermuda, a polpa à mostra / o vapor / o gerente liberando o preto / e o branco / o fogueteiro lá fora / pum pá pum / pá pá, pá pá pum: tô chapado.”
Em “Cinelândia, Andando em Torno”, Milton nos diz coisas como “quanta saudade / neste gargalo apertado da memória / [...] / o bonde sem pressa / sem medo da contramão a gente sem pressa, o roçar da coxa / ela diz nada”. É aí que o poeta fornece mais uma prova de sua habilidade verbal ao usar no sentido do bumbum feminino, tão só por sua sonoridade, a palavra mantissa, que significa a parte decimal de um logaritmo: “a cinelândia sem pornô, o municipal / em função. o monroe eclético, / e daí? Cãozinho à coleira, a gorda / sacudindo a mantissa ao sol [...]”.
Nos Poemas Brasileiros, temos a visão da América Portuguesa, sua economia, submetida ao controle metropolitano, e sua formação social. Vemos a continuação dos temas da cultura escolástica católica em “Clivagem”; do comércio, em que se trocavam aguardente e fumo por escravos (más los tiene el soba – por aguardiente y tabaco”); da aculturação do branco nos trópicos, em “sou Schömberg...”; das conseqüências brutais do tratado de fronteiras entre Portugal e Espanha, em “Sete Povos” (“[...] arde Miguel arde do fogo aceso arde da ardência do arcanjo”); da nossa mestiçagem, representada por Chica da Silva, em “Madrigal a uma Negra” ([...] esconde a noite a tua pele / mas acho-te pelo cheiro oh Chica [...]”; dos ciclos econômicos brasileiros em “Café do Paraíba”, “O Ciclo da Borracha”, “café cortês”, das doenças e pestes tropicais, da condição dos pobres no Brasil ([...] e as palmas e os pés me prega a madeiro cruzado da seca, / raiz profunda do meu ser / materna teta donde sugo o amargo xarope do sustento”.
Alguém, tendo notícia de que Milton Torres começou a publicar sua obra poética e histórica depois dos 50 anos de idade, poderia perguntar por que não o fez mais cedo. O poeta afirma que desejava amadurecer seu projeto literário que, em verdade, se confunde com seu projeto de vida. Como diplomata, andou por terras e culturas diversas.Nesses lugares foi capaz de penetrar-lhes as raízes, através de seus idiomas, que ressurgem agora nesta obra memorável, multilinguística, como veículos de sua inquietação poética e existencial. A presença, portanto, do espanhol, francês, português medieval, inglês não é sinal de esnobismo intelectual, mas representam formas de expressão forjadas por sua experiência de vida e estudo da história antiga.
Há de se entender o livro como epopéia moderna ou pós-moderna como não se vê na poesia brasileira atual em que é rara a presença de poesia histórica. Servirá sempre de amostra do conceito de poesia que não restringe o fazer poético ao abstrato e recusa o sentimentalismo.



[1] Inglaterra.
[2] Árvore usada para a extração da cortiça.

12 de fevereiro de 2006

Inclusão por exclusão

Jornal O Estado do Maranhão

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou projeto que estabelece um sistema de cotas nas universidades federais brasileiras, pelo qual 50% de suas vagas seriam reservadas a alunos do ensino médio de escolas públicas, incluídos nessa conta os negros e índios, de acordo com o percentual racial estimado pelo IBGE. A recente aprovação deu-se em caráter terminativo, o que significa não ser mais possível levar o assunto à discussão no plenário, antes de seu envio ao Senado, a não ser que um deputado qualquer, com apoio de 56 outros, peça o encaminhamento da matéria a debate amplo na própria Câmara, usando dispositivo do regimento da Casa. O deputado Gastão Viera pretende tomar essa providência, segundo me afirmou há poucos dias. Ele tem esperança de contar com o apoio dos colegas.
A proposição deriva de idéia equivocada do governo do PT, dado, nos últimos tempos, a chamar de inclusão social todas as suas tentativas de fazer justiça social, seja lá o que entendem por isso os guias partidários: a equiparação de alunos de escola pública a pobres e de escola particular a ricos. Ora, todo mundo conhece, menos o PT, a péssima qualidade do ensino médio brasileiro. Essa é a razão pela qual milhares de família de classe média, que não são ricas, fazem imensos sacrifícios para colocar seus filhos em escolas privadas, na esperança de dar-lhes qualificação educacional decente e aumentar-lhes as chances de ingressar no nível superior.
Diminuir as oportunidades dessas pessoas, pela retirada de seu alcance de metade das vagas nas universidades federais, como querem fazer, seria não só injusto como ineficiente, porque, ao forçar a entrada de milhares de candidatos de baixa qualificação nessas instituições, a nova regra contribuiria para aviltar ainda mais a qualidade de um sistema educacional já bastante ruim.
No entanto, a maneira de melhorar esse triste quadro parece tão evidente que não se pode entender as razões de não ser posta em prática. O certo seria concentrar a aplicação de recursos na melhoria da qualidade do ensino médio. Os pobres nele formados poderiam ter, aí sim, chances razoáveis de acesso ao nível superior que, por sua vez, deveria ter a qualidade melhorada, o que não significa, apenas, jogar mais dinheiro nas universidades federais. Estas, como se vê hoje, bem poderiam gastá-los, com escassos resultados práticos, com professores mal pagos e pouco produtivos, atores de eternas greves, e com funcionários de uma burocracia maior do que o corpo docente. Por outro lado, por que não expandir o Pro-uni, programa destinado à concessão de bolsas aos estudantes carentes, desejosos de cursar o terceiro grau em instituições privadas, em vez de, como o governo Lula quer fazer, criar mais universidades públicas, prováveis vetores de repetição do modelo falido de hoje?
Precisamos ter em mente esta obviedade. A melhor forma de dar aos pobres acesso à educação superior não é tirar a oportunidade da classe média e forçá-la a procurar escolas privadas. É criar condições para que os menos favorecidos, por seus próprios méritos, sem depender de favores de governo nenhum ou de quotas discriminatórias, possam ingressar no ensino superior, seja no particular, através de bolsas, seja no público, por meio da melhoria da qualidade do nível médio. Assim, eles não seriam discriminados pelos colegas sem esse privilégio, após o ingresso na universidade.
É preocupante a pretensão de punir o mérito, bem ou mal avaliado nos vestibulares, de quem tem o pecado de não ser pobre, pois a isso se resume a proposta petista. Mas, de tal visão não resultaria mesmo nada diferente de discursos como esse, que falam em inclusão social e ameaçam com exclusão.

5 de fevereiro de 2006

Outra casa, outra vida

Jornal O Estado do Maranhão

A expansão de São Luís, até meados dos anos 60 do século XX, se dava no eixo que, saindo da rua Grande, passava pelo Monte Castelo até chegar ao Anil, em continuação de tendência que vinha de meados do século XIX. As construções , no governo José Sarney, da barragem do Bacanga, da margem direita à esquerda do rio Bacanga, e da ponte do São Francisco, ligando o centro histórico à margem direita do rio Anil, reorientaram esse movimento. Espaços de ocupação urbana se abriram naqueles locais antes isolados, o que deu origem a novos bairros. Era uma nova cidade brotando, com taxas elevadas de crescimento, ao tempo em que a antiga experimentava baixo crescimento e era obrigada a permanecer com atividades econômicas de pouco dinamismo.
No início dos anos 50, quando o Monte Castelo ainda se beneficiava daquela tendência secular, meus pais decidiram ali construir uma casa, sob veemente protesto de minha avó paterna, que não admitia a mudança para “aquele fim de mundo” de ruas poeirentas, mesmo que servido por bondes e outros transportes coletivos. Em todo caso, aquele era um dos bairros do futuro.
A lembrança é tão antiga – eu tinha por volta de quatro anos –, que, às vezes, penso tratar-se apenas de algo reconstruído pela memória, a partir de fotografias antigas, daquelas tiradas habitualmente por meu pai, com sua máquina Kodak, e levadas às casas fotográficas para a revelação, que ficava pronta, em preto e branco, só depois de vários dias de espera angustiante.
Vejo-me agora num dia de luminoso sol matinal em visita à construção, levado pelo meu pai, quem sabe já prestando atenção nos beija-flores e bem-te-vis que tanto me fascinariam depois, mas não me impediriam de, pelo uso de baladeiras carregadas com caroços das pitombas tiradas da árvore do quintal, interromper-lhes para sempre o vôo ou surpreendê-los nos galhos das árvores, ilusórias e mortíferas estações de descanso em momentos como aqueles. (Inconsciência da morte ou instinto de predador disfarçado de ser moral?).
O barro, o cimento, a areia, sob a forma de massa de construção, os alicerces, as paredes sem reboco, tudo está lá, mas num segundo não mais. Onde antes havia tão-só esse amontoado de materiais, vejo-me no quarto grande com várias camas, a minha e as dos irmãos, alguma vez me embalando numa rede feita no interior (Cajapió?), olhando o assoalho com seus tacos amarelos e pretos, dispostos em desenhos geométricos, alguns deles certa vez afundados pelas machadinhas dos bravos guerreiros de uma tribo de índios (Sioux?), grande novidade do Carnaval, sentindo o cheiro de cera Parquetina que lhes dava brilho e ameaçava derrubar quem neles pisasse distraído. Era um bangalô como diversos que se construíam então no Monte Castelo e outros lugares da cidade. Passo por lá estes dias e sinto a perda do charme de classe média do bairro. As antigas residências da avenida Getúlio Vargas são agora ocupadas por pequenos prestadores de serviço. As coisas parecem desarrumadas e decadentes para meu gosto burguês.
Pesa-me acima de tudo, porém, ver a casa com alma estranha, onde se contabilizam pequenos lucros. O barro, o cimento e a areia transformados em massa, as paredes agora em cores estranhas, as portas, as janelas, o telhado escurecido pelo tempo e pela falta de um cuidado tão presente antes, tudo continua lá, até o prédio do Senai olhando do outro lado da avenida, mas é como se nada estivesse mais. Ninguém reconhecerá naquela a mesma casa. Onde as festas de aniversário na sala, os papagaios no ar, a Copa do Mundo no rádio, o ruído no cimento da água de chuva dos beirais, os jogos de botão na copa e, no quintal, os de borroca e os de bola de meia, onde essa vida toda, a não ser na lembrança? É outra, sim, a casa, a vida é outra.

Machado de Assis no Amazon