16 de maio de 2004

Fora do ar

Jornal O Estado do Maranhão 
O leitor deve conhecer muito bem um tal de “sistema”, muitas vezes chamado de “computador”, entidade misteriosa, mas presente em qualquer lugar deste país. Ele é usado como desculpa para um bocado de coisas, sendo um cúmplice involuntário da ineficiência e irracionalidade burocráticas, assombrações de nossa vida diária, e do descaso e desprezo utilizados freqüentemente no tratamento dos usuários dos serviços públicos, bem como dos privados. Estes últimos, não se engane, não estão imunes a esses males, que plenamente justificam o uso do neologismo “kafkiano” como sinônimo de uma situação absurda.
Chega-se a uma agência bancária com uma pressa danada, porque nenhum de nós tem tempo sobrando, na ilusão de sacar rapidamente uns trocados numa daquelas máquinas eletrônicas de liberar dinheiro da nossa conta. Eis, então, pela milésima vez, aquela temida mensagem: “o sistema está fora do ar”. Ele está, sim, é fora de tudo. Não adianta pedir ajuda, porque ninguém pode fazer nada. O sistema não deixa. Ir ao cofre e pegar o dinheiro? Nem pensar. O sistema está ali com o objetivo de impedir mesmo um procedimento obsoleto como esse.
Ou um cidadão alugou um imóvel e, talvez, vendeu alguma coisa a um órgão público. Na hora do pagamento aparecem descontos indevidos. Vá ele ingenuamente reclamar. Alguém vai lhe jogar na cara a impossibilidade do sistema aceitar correções. Demita-se então um sistema tão burro e inconveniente como esse. O credor vai ter de penar durante um bom tempo para se livrar do problema, porque, na certa, as informações malucas não foram postas por ninguém no sistema, que as deve ter engolido sozinho, sem o auxílio de seres humanos. Convencer um ser como esse a mudar de idéia não deve ser uma tarefa fácil! De qualquer modo, é mais simples colocar a culpa por essas trapalhadas nele do que reconhecer o erro humano.
O certo é isto. De tanto sofrer com essa situação e de ouvir falar nos poderes fabulosos do sistema, um sujeito, brasileiro, mas de pais iraquianos, que acordou invocado, sem chegar, porém, a telefonar para Bush, como o nosso presidente faz, para preocupação do seu colega americano, resolveu ir ao banco onde guarda seus trocados, com o fim de conhecer esse autêntico ditador, esse verdadeiro Big Brother com seu sorriso de Mona Lisa falsificada, criado pela ficção de George Orwell, tão evidente nos dias de hoje.
Chegou de cara amarrada, disposto a brigar, e exigiu a presença do fulano. Queria explicações honestas sobre um sujeito tão poderoso. A conversa tinha de ser do tipo olho no olho, sem computadores pelo meio tentando atrapalhar algo de tal importância. “Mais tarde não serve”, disse quase gritando a um funcionário ansioso por ganhar tempo, enquanto pensava, ou melhor, não pensava no que dizer por causa do vazio em sua mente dominada pelo pânico.
Tentaram lhe dizer que o sistema era intangível, sem existência material, embora muito concreto. “Como intangível, se vocês vivem me dizendo que o sistema não permite isso, não permite aquilo, não autoriza nada? Afinal, qual a razão de vocês esconderem um indivíduo desse tipo, acostumado a dar essas ordens absurdas?” A agitação era grande, no sujeito e na agência. A situação era totalmente imprevisível. Jamais seria autorizada pelo sistema, caso tivessem pedido a opinião dele. Deu trabalho, mas conseguiram finalmente acalmar o reclamante e levá-lo para casa.
Estressado, resolveu pegar a “patroa”, como ele dizia, e relaxar na ilha de Jersey, paraíso fiscal onde não tinha nenhuma conta secreta, como o ex-prefeito de São Paulo. Na agência de viajem, pediu duas reserva no próximo vôo. A atendente olhou no computador e anunciou sorridente e quase orgulhosa: “O sistema está fora do ar, senhor”.

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