26 de novembro de 2006

Cotas

Jornal O Estado do Maranhão

O tema é polêmico e sujeito a emocionalismo capaz de levar muita gente a esquecer o bom senso e a racionalidade, se for possível estas qualidades prevalecerem num debate a respeito de milhares de pessoas discriminadas social e economicamente.
Quero lembrar logo o fato bastante conhecido, mas esquecido com freqüência, de os Estados Unidos serem tomados como referência quando se fala do estabelecimento de cotas no ensino superior no Brasil. É natural ser assim, porquanto o sistema educacional americano é excelente, a julgar pela obtenção sistemática de Prêmios Nobel em diversos campos do saber e pelo reconhecimento mundial da excelência de sua educação universitária, apesar de defeitos que apenas destacam suas qualidades. A obtenção desse conceito se deu e se dá num contexto de crescente integração racial e criação de oportunidades de acesso à educação para os variados grupos étnicos componentes da sociedade americana.
Existirá lá um sistema de cotas raciais como esse, equivocado, que desejam implantar no Brasil? Nos Estados Unidos elas são proibidas por decisão da Suprema Corte. As melhores universidades americanas, entre elas Harvard, Yale e MIT, utilizam critérios de pontuação a fim de atribuir bônus a membros de grupos que elas, atendendo a egigências da sociedade, desejam promover. Nada de cotas ou imposições. São as políticas de ação afirmativa.
É lamentável que em meio a tanta discussão, como ocorre hoje no Brasil, não se traga com mais freqüência ao conhecimento público mas, ao contrário, se chegue, mesmo, a escamotear a experiência da Unicamp, parecida com a americana. Por sorte, o professor José Tadeu Jorge, reitor daquela instituição, em artigo de junho deste ano no jornal de circulação nacional, O Estado de São Paulo, expôs seus fundamentos a uma platéia ampla, fora do meio acadêmico.
A política afirmativa da universidade brasileira se baseia num mecanismo simples, porém eficiente. Sobre a média obtida na seleção para ingresso na instituição, são atribuídos 30 pontos aos concorrentes de escolas públicas e mais 10 pontos aos que se declararem negros ou índios, sem reserva de vagas. O sistema foi estruturado a partir de constatação relativa ao ano de 2004, de que, uma vez superada a barreira do vestibular, estudantes com aqueles perfis, tinham até então – e continuaram a ter, é evidente, no novo arranjo –, desempenho acadêmico melhor, na média, do que aqueles sem bonificação alguma. A inteligente atribuição de bônus, incentivo pequeno diante dos imensos resultados positivos sobre a qualidade do ensino e os próprios alunos, começou dessa forma.
Percebe-se no novo desenho a manutenção da exigência de mérito acadêmico e seu aperfeiçoamento, neste aspecto porque mais candidatos com desempenho acima da média estão ingressando na Unicamp, sem discriminação de ninguém, apenas pela compensação de antiga desvantagem deles no vestibular.
No Brasil e no Maranhão há infeliz tendência à implantação de cotas raciais, que reduz o número de vagas, em 50% no caso da UFMA, para os não negros e não índios, medida de pretensa inclusão social discriminatória tanto com os cotistas, por um lado, quanto, por outro, com os que ficarão de fora. A classe média encontra-se na situação de ver seus filhos barrados nas universidades federais, depois de ter feito, com enormes sacrifícios, durante anos, pesados gastos, tão pesados quanto os impostos que pagam, na educação de seus filhos em escolas privadas de nível médio, na esperança de dar a eles legítimo acesso à educação nas boas instituições públicas de educação superior.
A experiência da Unicamp é justa porque promove o mérito acadêmico, não patrocina a exclusão social e não “racifica” a inclusão social. Não há razão para não se tentar algo semelhante.

19 de novembro de 2006

Controle,não!

Jornal O Estado do Maranhão

Vem do senador e pastor, ou bispo, Marcelo Crivella, sob a forma de projeto de lei em tramitação no Senado Federal, ameaça à liberdade de informação, parecida com aquela de que falei na semana passada, de outro senador, Eduardo Azeredo, esta de vigilância dos usuários da internet. Agora o monitoramento seria sobre a imprensa. Crivella, que tem apoios interessados e bons companheiros na maldosa empreitada, quer alterar a Lei de Imprensa com o fim de proibir o que ele chama de divulgação de informações “potencialmente” ofensivas à honra.
O projeto teve parecer favorável da senadora Fátima Cleide, do PT de Rondônia, para quem a idéia transformada em lei iria “coibir a atuação leviana dos meios de comunicação que divulgam denúncias sem ao menos verificar a solidez e a autenticidade dos elementos que lhe servem de base”. A opinião dela não é desinteressada. Ao contrário, provém do interesse de seu partido em impedir denúncias de mensalões, compras de dossiês e outras maracutaias. (Permitam-me, por favor, usar esta palavra posta em circulação por Lula em outros tempos). Fosse a imprensa divulgar as falcatruas do PT somente após estar cem por cento certa da “solidez” e “autenticidade” das evidências, ainda hoje muita gente estaria recebendo sem sobressaltos seu quinhão mensal do nosso dinheiro de impostos, embora, pela impunidade quase geral dos mensaleiros, não se tenha certeza de que o esquema não será retomado em futuro próximo.
A iniciativa de um pastor evangélico surpreende justo por isso, por ser ele um ministro de Deus, ou se pensar nele como tal, intermediário entre as paragens etéreas e eternas, e o nosso mundo. Ele é, assim, de uma profissão de cujos membros não se esperaria um pecado como esse, mortal, contra a democracia da Terra, que a do paraíso deve ter outras regras de funcionamento, dispensando por certo disputas pelo poder, pois quem por acaso lá estiver, longe da imprensa, não precisará mais lutar nem mesmo pela vida, como aqui fazemos com angústia e denodo terrenos.
Mas, o apoio de membro do PT não choca mais. A trama revela antigo desejo do partido de eliminar críticas ao governo, como os compañeros fazem ou tentam fazer na Venezuela e em Cuba, bem como escancara o anseio incontrolável de controlar a imprensa, como visto na tentativa de criar leis de “regulamentação” da profissão de jornalista, com inspiração em Hugo Chávez e Fidel Castro, ou no episódio da frustrada expulsão do Brasil de um jornalista americano que disse, não sei se com acerto, que Lula bebia “pra caramba”, como lembrou durante a Copa do Mundo o jogador Ronaldo.
Pretende o senador regulamentar a conduta dos órgãos da imprensa, fazendo deles delegacias de polícia, pela exigência de produção de provas antes da divulgação de qualquer indício de crime, em especial dos cometidos pelos políticos. No entanto, cada macaco deveria se pendurar no seu próprio galho. A imprensa, usando a liberdade de expressão garantida pela Constituição, deve fazer denúncias com bom senso e de boa fé, sem censura prévia, e a polícia, esta sim , tem a obrigação de investigá-las e produzir provas a serem levadas a eventual processo na justiça. Se não for assim, se houver calúnia e difamação – todos têm notícia do ávido pedaço da imprensa amante do motivador vil metal de origem pública –, os ofendidos terão direito constitucional de reparo adequado.
Proposições desse tipo revelam um naco da mentalidade prevalecente em alguns círculos da política nacional. São parte de uma cultura de desprezo pela democracia, adjetivada de pecaminosa ou burguesa, cujo valor é visto como instrumental na busca pelo poder e não como um valor absoluto a ser preservado. O plenário do Senado saberá rejeitá-la sem demora. Não é crível, Crivella, aprová-la.

12 de novembro de 2006

Cadastro ou cadarço

Jornal O Estado do Maranhão

Não me surpreendo com o bizarro projeto do senador Eduardo Azeredo, de vigilância sobre os usuários da internet, sob a desculpa de, com essa intimidação, evitarem-se atividades ilegais na grande rede mundial. A mentalidade por trás da tentativa é velhíssima. Tão velha que chegamos a esquecer de maus exemplos do passado. De um, porém, por mais recente, o leitor se lembrará. É o do cadastro de telefones celulares pré-pagos.
Como as autoridades do Executivo são incapazes de controlar a utilização criminosa da telefonia celular, como já se viu muitas vezes – não conseguem sequer bloquear o uso de celulares nos mal afamados presídios brasileiros – decidiram que os possuidores de pré-pagos teriam de fornecer informações para a montagem de um cadastro, instituição onipresente no Brasil, onde existe um, inútil, em cada esquina. Basta ir a qualquer loja de operadoras de telefonia celular e ver a ansiedade dos vendedores em aceitar qualquer informação cadastral de fantasia fornecida pelo comprador, a fim de confirmar a inutilidade. Se me provarem que um dia houve a prevenção de um escasso crime pelo uso desses dados, anunciarei à humanidade, pela rede mundial, a boa nova. Se não tiver de fazer cadastro algum.
Sempre há alguém pronto a atribuir às pessoas comuns a responsabilidade dos governantes no combate ao crime. Desta vez foi o Legislativo, representado por Azeredo, acusado de ser o verdadeiro pai do valerioduto e, agora, padroeiro incontestável da burrice. Se os homens públicos não têm a capacidade de cumprir suas obrigações, como no caso dos celulares, transfira-se a aporrinhação para o cidadão. Essa é a cultura dominante.
Deseja-se agora atribuir aos usuários a responsabilidade por crimes na rede e aos provedores de acesso o papel de cães de guarda, pois nisso são transformados pela obrigação de fazer um cadastro de seus clientes, que ficaria à disposição das autoridades incompetentes. Na hipótese de não o fazerem, estariam sujeitos a pena de prisão de 2 a 4 anos. É como responsabilizar o revendedor de automóvel pelo mau uso dos veículos vendidos por ele. A Associação Brasileira de Provedores, o Comitê Gestor da Internet no Brasil, ONGs e a maioria dos usuários criticam o projeto.
Pela proposta, os provedores teriam de exigir toda aquela papelada infernal e checar sua autenticidade – com nome, CPF, endereço, número de telefone, carteira de identidade, etc.–, a mesma, por sinal, que nos pedem quando, por uma necessidade corriqueira qualquer, precisamos lidar com as kafkianas burocracias públicas e privadas. Pois é essa cultura que o senador quer disseminar na internet, vai ver inspirado no Big Brother, ou Grande Irmão, personagem do livro 1984, de George Orwell, em que o governo controla a vida de todos.
A idéia é ruim porque iria contra a privacidade dos usuários, seria ineficaz e um estorvo nas operações dos internautas. Mais, seus pressupostos são errados. Um é o de ser possível legislar nacionalmente sobre a internet. Não é. Outro é de ser o cadastro confiável, sabendo-se, todavia, que os criminosos, precisamente os mais capacitados a falsificações, depressa produziriam quantos documentos fossem necessários para se identificar.
Mas, o mais perigoso disso tudo é o atentado contra o espírito da rede, em que não há um centro nem um governo, embora haja regras básicas e mínimas de funcionamento, tudo produzindo uma “anarquia” produtiva e eficiente.
O certo seria inverter a direção do projeto e estabelecer rigorosa vigilância sobre políticos como Azeredo. Eles levariam uma dúzia de bolo de palmatória e ficariam impedidos de receber o mensalão, com monitoramento de 24 horas por dia, toda vez que tentassem criar cadastros que são cadarços de amarrar a liberdade dos cidadãos.

5 de novembro de 2006

Os corpos da China

Jornal O Estado do Maranhão

Uso informações do Banco Mundial divulgadas no site http://web.worldbank.org.
A taxa média de crescimento anual do PIB da China foi de 9% desde o fim dos anos 70, o que re-tirou da pobreza absoluta centenas de milhões de pessoas, tornando o país, sozinho, responsável por mais de 75% da redução da pobreza entre os países em desenvolvimento nos últimos 20 anos. Entre 1990 e 2000, o número de pessoas vivendo com um dólar por dia diminuiu em 170 milhões. As mu-danças desse período criaram uma economia dinâmica, com melhora substancial dos indicadores soci-ais. O analfabetismo adulto, por exemplo, caiu de 37% em 1978 a menos de 5% em 2002 e a mortali-dade infantil de 41 por 1,000 nascidos vivos em 1978 para 30 em 2002.
No entanto, muitos problemas persistem. A taxa de redução da pobreza diminuiu a partir de me-ados dos anos 90, a desigualdade na distribuição de renda aumentou e há sérios problemas ambientais. Apesar do sucesso do programa do governo, de corte na emissão de poluentes do ar e da água e na reversão do desflorestamento, duas décadas de rápido crescimento cobraram um preço alto da base de recursos naturais. Em resumo, e segundo ainda o Banco Mundial, as transformações na economia da China têm importantes implicações para a região e o mundo, pois incluem itens como a competitivida-de de suas exportações, integração comercial cada vez maior, capacidade de atrair investimento direto estrangeiro e demanda por importações de commodities e energia.
Em meio a esse dinamismo em tudo espetacular e em que uma nova classe empresarial aproveita todas as oportunidades de ganho, pode-se imaginar a variedade de empreendimentos que surgem a cada hora. Lá, muito se privatizou e ainda há de se privatizar e pouco escapa ao empreendedorismo libertado pelas reformas orientadas para o mercado implantadas pelo Partido Comunista da China, sob a lideran-ça de Deng Xiaoping no final dos anos 70.
Surge agora um exemplo de como esse ambiente econômico, em geral positivo, mas sem fiscali-zação efetiva, pode criar situações extremas. Há na China, em situação de quase clandestinidade, pelo menos dez fábricas de mumificação de corpos humanos por meio da retirada dos fluidos do corpo e sua substituição por plástico líquido, destinados a exposições como a chamada Mundos Corporais que já recebeu a visita de 20 milhões de pessoas em várias países, arrecadando mais de R$ 430 milhões. Como em qualquer indústria, nessa há entre os industriais acusações de concorrência desleal e tráfico de “matéria prima”, ou seja, de corpos. A fim de se ter uma idéia do montante de dinheiro envolvido no negócio, basta saber que a empresa americana Premier Exhibitions pagou há pouco tempo R$ 54 milhões como garantia de fornecimento de cadáveres conservados.
Sabe-se que nossa espécie apresentou durante sua evolução grande variedade na maneira de tratar seus mortos. Estudos recentes mostram que diversos grupos humanos, inclusive os europeus primiti-vos, praticaram o canibalismo, sendo fácil comprovar sua ocorrência, mas difícil explicá-la. A exibição dos corpos produzidos na China tem sido criticada por ativistas dos direitos humanos como desprezível mostra de empresários dispostos a fazer qualquer coisa moralmente condenável com o objetivo de ob-ter lucros. De outro ponto de vista, os industriais dizem que a maioria dos visitantes das exibições re-conhece o valor educativo e científico da produção de cadáveres. Contudo, a verdade é que certa curio-sidade mórbida, talvez inerente ao ser humano, é a principal razão para o sucesso das mostras, pois como se explica que tanta gente, de diversas culturas e, portanto, com diferentes crenças e visões do mundo e da vida, participem como consumidores desse comércio macabro? Seremos, mesmo, assim?

Machado de Assis no Amazon