3 de fevereiro de 2008

Carnaval em debate

Jornal O Estado do Maranhão

O verdadeiro Carnaval hoje é o São João. Um leitor ali salta espantado, com seu fofão (ainda se fazem fofões), mas digo que é sem razão o espanto. A festa não é conhecida como de todo o povo? Se é assim, então o povo deveria participar das brincadeiras, não é verdade? Mas, o que se vê por aí? Dê uma volta pela cidade, cara leitora, com sua bela fantasia, fora do circuito oficial, durante o chamado reinado de Momo, rei de quem arrancaram grande parte de sua outrora tradicional gordura, a julgar pelo de Salvador com seus ridículos 58 quilos de puro osso. Não encontrará nada que não se encontre num feriado qualquer: ruas vazias, trânsito tranqüilo, doce preguiça nas calçadas e janelas, andares lentos, olhares de sesta recente, vontades de bocejar, latidos e miados sob espreguiçadeiras – idosos sobre –, ares de subúrbio sossegado, desejos de mais feriados, tudo ausente e mais alguma coisa em falta.
Imagine agora o São João e faça o mesmo percurso. Não há em toda a cidade um único e parco beco, rua, bairro, quintal, terraço, esquina, canteiro, meio-fio sem uma quadrilha ou fogueira. Nesses locais, os rapazes aproveitam para roubar beijos (estarei romantizando e não se roubam mais beijos, mas unicamente o objeto do beijo? Ou são as moças que agora os roubam?), numa época em que todo mundo vai direto ao assunto e ficar é a regra ou a falta de regra. O bumba-meu-boi está por todo lado, se apresenta em vários lugares, onipresença joanina.
A concentração do Carnaval no circuito oficial e no desfile de escolas de samba, financiado em grande parte pelos governos, modelo importado do Rio de Janeiro, que viu suas escolas se agigantarem a partir dos anos 50, e tanto que foi preciso impor um limite a seu tamanho nos próprios regulamentos, levou ao esvaziamento dos bairros no período carnavalesco. É o caso de se perguntar se a concentração e o gigantismo são conseqüência ou causa da transferência de recursos públicos. Estes levaram inevitavelmente àquela ou a concentração, que supõe certo grau de organização, permitiu aos governantes a utilização de mecanismos formais pré-existentes nas escolas e outras organizações carnavalescas com o fim de para elas canalizar recursos?
Inclino-me pela primeira hipótese, a presença estatal levou à concentração. A competição e os prêmios conseqüentes impulsionaram o processo de crescimento num único local e esvaziamento nos outros. Chego a essa conclusão vendo o exemplo do bumba-meu-boi, que permaneceu aberto à participação popular em todos os cantos da cidade, e não somente no circuito oficial, recebendo pouco auxílio público relativamente ao Carnaval. Não seguiu o caminho deste, para não virar boi de Parintins. O Carnaval embarcou na carioquice e, em certa época, na baianice, mas já teve a característica de acontecer em toda a cidade, pelo menos aquele de meu tempo de criança e adolescente, quando cada bairro tinha suas próprias brincadeiras.
Não podemos deixar nos interrogar sobre o papel do apoio oficial: É benéfico ou prejudicial às manifestações culturais populares? Sua prática conduz necessariamente a algum tipo de dirigismo cultural? O Carnaval nasceu e se desenvolveu espontaneamente, alimentado por suas próprias raízes culturais. Começou a receber apoio público somente após ter obtido da sociedade certificado de plena maioridade cultural. Não precisou de nada no início a não ser do próprio apoio popular para ter natural vigor. Por isso, espalhava-se por todos os cantos. O reggae, goste-se ou não dele, cresceu, isto é fato, no meio do povo, sem tutelas estatais.
Não se trata de ser contra ou favor do apoio. Mas de saber em que condições e a quem ele deve ser oferecido, ou não. É chegado o momento de se iniciar amplo debate sobre o assunto.

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