17 de novembro de 2002

Pobres soltos

Jornal O Estado do Maranhão
Em agosto último, no dia 4, fiz alguns comentários aqui sobre a decretação, por um juiz de Timon, da prisão de Bingo, um vira-lata. Eu procurava dar voz ao pobre animal, contra a injustiça sofrida. Tentei mostrar seu comportamento anterior, humano, pacato e ordeiro. Mencionei também a possibilidade de ele ter tido boas razões para seu ato de morder um vizinho chato e barulhento.
Lembrei-me da descoberta de Rogério Magri, ex-metalúrgico que não chegou a presidente, mas foi ministro do Trabalho do governo Collor. Ele anunciou ao mundo que cachorro também é humano, contudo não tão irracional, creio. Menos irracional, com certeza, do que essa menina de São Paulo, Suzane von Richthofen. Ela premeditou – não direi de modo frio, porque todas as premeditações o são, porém inumana –, o assassinato de seus pais e levou seu namorado e um irmão dele, até a casa da família dela, há duas semanas, a fim de executarem barbaramente o casal, crime difícil de entender racionalmente. O crime de Bingo, se ele cometeu algum, em nada era comparável a esse de agora, mas o fez passar muitos meses na cadeia.
Algum tempo depois, ao procurar na Internet mais notícias sobre Bingo, descobri um artigo sobre o cachorro, de João Ubaldo Ribeiro, chamado “O Fim da Impunidade”, publicado no mesmo dia 4, no jornal O Estado de São Paulo. Embora bastante compreensivo a respeito da atitude de Bingo, chegando, até, a perguntar se o animal não havia “mordido em legítima defesa ou, como diz uma figura do direito penal, movido por violenta emoção após injusta provocação da vítima”, o escritor baiano expôs outro aspecto da situação.
Ele procurou olhar o lado positivo do infortúnio do animal – positivo, digo eu, do ponto de vista dos outros humanos, os mais irracionais: “Por outro lado, será que esse fato não está acabando com a nossa famosa impunidade, ou pelo menos mostrando que é possível a um condenado brasileiro permanecer mais de um ano na cadeia, fato raríssimo, como sabemos, principalmente em ocorrências corriqueiras, como um seqüestro ou uma fraude bancária?”
Não, se julgarmos por um outro juiz maranhense, Douglas Martins, de Araioses. O caso é este. Ele mandou soltar, em uma decisão inusitada, quatro presos da cidade, todos pobres, acusados de crime contra o patrimônio, todavia deixando estupradores, homicidas e traficantes de drogas na cadeia. O prefeito do município de Água Doce, o presidente e o secretário da Câmara tinham sido acusados de corrupção e malversação do patrimônio público. Elas tiveram a prisão preventiva decretada pelo juiz, mas obtiveram um habeas corpus, escapando da prisão. Na avaliação do juiz, a impunidade continua. Daí seu inconformismo.
O magistrado fala de um problema real, o da corrupção, mal endêmico que, afora seus aspectos morais, traz conseqüências negativas para a economia do país, pois diminui sua eficiência, aumenta o chamado custo Brasil e afugenta muitos investidores estrangeiros e nacionais.
Mas, falar de impunidade faz lembrar de dois outros problemas. Um, é a ausência quase completa de ricos e a onipresença de pobres em nosso desumano sistema penitenciário. Estes últimos representam uma grande parcela da população carcerária, maior do que a parcela deles em toda a população. Quem não tem dinheiro para pagar bons e caros advogados, ou não dispõe de influência, vai dar com os costados nessa casas de produzir marginais. Quem tem, safa-se.
O outro problema é o nosso sistema de administração de justiça. Ele é tão formalista, confuso, caro, lento e refratário a mudanças, pelo menos na visão de leigos como eu, que exclui de seus benefícios os cidadãos humildes, justamente os mais necessitados de justiça. No meio da confusão das leis, os magistrados, dos tribunais de primeira instância e dos superiores, são obrigados a tomar decisões que, às vezes, não são entendidas pela sociedade e até por seus colegas de profissão.
A hora é de reformar e acabar com a história de somente pobre ficar na cadeia.

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