4 de abril de 2004

Coragyps Atratus

Jornal O Estado do Maranhão 
Os bichos pertencem à espécie Coragyps atratus, gênero Coragyps, família Cathartidae, ordem Ciconiiformes, classe Aves, subfilo Vertebrata, filo Chordata, reino Animalia. São os popularíssimos urubus da cabeça seca, muito comuns por estas bandas. Eles são encontrados desde o sul do Canadá até o sul da América do Sul, segundo a Encyclopedia of North America Birds (Enciclopédia dos Pássaros da América do Norte). Preferem habitats abertos, o que inclui lixões em áreas urbanas e rurais, e evitam florestas fechadas.
Esses animais estão a ponto a ser mandados pelo Piauí para o Maranhão. Sob a alegação de que os urubus piauienses estariam causando problemas no aeroporto de Teresina, ameaçando a vida das pessoas por causa do risco de colisão com os aviões, a gerência executiva do Ibama nesse Estado, digamos, irmão – embora depois desse episódio desagregador da unidade nacional eu não saiba mais como chamá-lo –, elaborou um plano de expulsão, essa é a palavra correta, expulsão, dos pobres animais da própria moradia e de envio deles para perto de Presidente Dutra no Maranhão.
Eu conheço a má fama que os acompanha, os olhares de repulsa à sua aparição, as histórias terríveis sobre eles, mas não posso deixar de lavrar um protesto contra esse tipo de tratamento a uma espécie injustiçada desde as tábuas de Moisés e antes. Está certo que não chegam a ser humanos, como a cadela Orca do ex-ministro do Trabalho, Rogério Magri. (Se por acaso o leitor tiver lido algumas de minhas crônicas, já terá percebido minha obsessão com a humanidade dos cachorros, à qual volto de vez em quando, como volto aos entendidos de mesa redonda de futebol na TV e ao “capitalismo selvagem” do antigo PT; afinal, não é só de Nélson Rodrigues o direito de ser obsessivo). Mas, isso não é razão para tratá-los dessa maneira humilhante.
Por que agredi-los, como se eles não servissem para nada, como se não passassem de malfeitores ou astutos contraventores do jogo do bicho, viciados em gravar as próprias conversas com seus parceiros de negócios escusos com a pérfida intenção de derrubar governos e colocar em perigo a estabilidade político-social da nação? Ouço ali um leitor gritar, tapando o nariz, que os urubus provocam um bocado de incômodo, chegando a ameaçar a saúde pública com seu mau cheiro tão característico. É verdade. Mas, de quem é a culpa? Deles ou de quem produz esses lixões por toda parte, dessa sociedade de consumismo desenfreado?
Mas, vamos olhar a situação pelo lado positivo, como nesses fantásticos livros de auto-ajuda que proliferam com tanta facilidade. Seu comportamento familiar é modelar, pois são, com as exceções de sempre, monogâmicos convictos. Chocar os ovos é tarefa tanto da mãe quanto do pai, sem aquela de o tempo todo o macho vir com a mesma história: “Querida, vou dar uma volta no lixão e volto já”, mas só voltar tarde da noite cheio de penas desconhecidas e com o bico de quem andou aprontando alguma.
Eles formam famílias ampliadas por associação com os parentes. Quem garante que ao mandá-los para o Maranhão os piauienses não destruiriam essa exemplar união, separando maridos de mulheres, irmãos de irmãos, primos de primos, tios de sobrinhos? Será um exagero chamá-los, depois de removidos para Presidente Dutra, de sem-lixão, à semelhança dos sem-terra ou dos sem-teto? Consideremos esse drama e mais isto. O Coragyps atratus é um ser ecológico porque elimina do ambiente matéria orgânica em decomposição, sendo uma espécie de reciclador natural.
Onde está a Sociedade Protetora dos Urubus, tão calada até agora? Os ambientalistas não vão dizer coisa alguma?  Ninguém vai fazer nada? Será que só as tartarugas marinhas (Eretmochelys imbricata) e os micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia) são dignos de protestos e palavras de ordem? Essa omissão não levará a uma guerra entre o Maranhão e o Piauí, à Guerra do Coragyps atratus, semelhante à Guerra da Lagosta (Procambarus clarkii) entre Brasil e França nos anos 60, enquanto os urubus passeiam entre os girassóis?

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