31 de agosto de 2008

Independência e morte

Jornal O Estado do Maranhão

Vê, leitor, como funcionam as coisas na arena internacional. Em fevereiro deste ano, Kosovo, província da Sérvia, de maioria albanesa, declarou independência com o apoio dos Estados Unidos e alguns países da Europa. Outros, como a Espanha, Grécia, Bulgária e Chipre, se abstiveram de apoiar a posição americana por um motivo prático: eles têm também complexos problemas de separatismo em seus territórios. Na Ásia, a China, pela razão óbvia da luta do Tibete por sua separação, ficou calada, condenando com seu silêncio a ex-província sérvia. Na África, o Sudão não vê com bons olhos a onda separatista por causa da rebelião da província de Darfur. Agora, poucos meses depois, os mesmos Estados Unidos se dizem a favor da integridade territorial da Geórgia, ex-república soviética onde nasceu Stálin, que nunca chegou a falar russo sem sotaque, estimulada pelo governo ianque a se integrar à Otan, aliança militar ocidental hostil à Rússia. Os americanos declaram-se também contra a secessão das regiões georgianas chamadas Ossétia do Sul e da Abkhásia, que na prática já eram protetorados russos. Foram, no entanto, como vimos, contra a integridade da Sérvia, país eslavo de maioria cristã ortodoxa, como a Rússia, e desta aliado desde os tempos dos czares. Mas, não seriam eles a favor da integridade da Geórgia apenas porque, usando um raciocínio bem americano, Kosovo tinha viabilidade econômica, mas não as duas ex-províncias? Não. Esses novos “países” são inviáveis por qualquer critério, seja econômico ou de outra natureza. A separação, no caso georgiano, é apenas o primeiro passo para a anexação à Rússia. Em outro contexto, em que os interesses em jogo são muito menores, e em outra proporção, eles são como a maioria dos inviáveis municípios criados em tempos recentes no Maranhão. Quantas ossétias, abkhásias e kosovos existem aí pelo interior do Estado! A verdade é esta: a razão imediata da atual crise foi a tentativa da Geórgia, em cujo território passam dutos de transporte de gás e petróleo russos em direção à Europa Ocidental, de submeter à força aquelas duas regiões, ao preço da morte de muitos inocentes, com uma fracassada iniciativa militar, logo rechaçada pela Rússia. Esta não só expulsou as tropas adversárias daqueles territórios, como ocupou parte da terra de Stálin, atitude que não seria menos drástica por parte dos Estados Unidos se, por exemplo, a Venezuela tentasse anexar à força antigas áreas em disputa com um de seus vizinhos, ampliando sua área de influência anti-americana. A Geórgia é uma das venezuelas russas. É conhecida a política de Bush de usar esse pequeno país como apoio à estratégia de debilitar as posições russas na região. Esse, o motivo da insistência de seu governo em propor a entrada dos georgianos na Otan. Sem fazer julgamentos de ordem moral, que não servem de suporte a análises das relações internacionais, podemos dizer que a reação da Rússia não é surpreendente. O presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, quis testar a reação dela. Pagou para ver e viu, incorrendo num custo alto. Os russos mostraram que seus interesses globais têm de ser levados em consideração. Os protestos e reações aparentemente indignadas, nobres e radicais dos Estados Unidos e aliados, mas comedidas em termos práticos, porque o custo de reagir de verdade seria muito alto comparado com os benefícios de contemporizar, irão rapidamente sumir do noticiário internacional, mas não o conflito latente. Um empresário americano, grande exportador de frangos e porcos para a Rússia, Jim Summer, disse "que é importante separar economia de política". É a regra do jogo entre grandes potências, a chamada realpolitik mais uma vez. Independência e morte é regra do jogo. Ou dependência sem morte.

24 de agosto de 2008

Emoção na noite

Jornal O Estado do Maranhão

A noite da sexta-feira, dia 15 de agosto, assinalou o momento cimeiro das comemorações do
Centenário da Academia Maranhense de Letras, que, no entanto, não terminaram naquele dia. Continuarão até o final do ano com o lançamento de livros, inauguração da Exposição do Centenário e palestras de Antônio Martins de Araújo, da AML e da Academia Brasileira de Filologia, sobre Artur Azevedo; Alberto Vieira da Silva, da AML, sobre o padre Antônio Vieira; Ivan Junqueira, da Academia Brasileira de Letras, sobre Gonçalves Dias; e Domício Proença Filho, também da ABL, sobre Machado de Assis. Quando os fundadores – Alfredo de Assis, Antônio Lobo, Astolfo Marques, Barbosa de Godois, Corrêa de Araújo, Clodoaldo Freitas, Domingos Barbosa, Fran Paxeco, Godofredo Viana, I. Xavier de Carvalho, Ribeiro do Amaral e Armando Vieira da Silva – foram chamados pelo decano da Casa e palestrante da noite, José Sarney, ao mesmo salão em que a criaram em 1908 e os vimos entrar conduzidos pela magia das palavras do orador, capazes de torná-los tão real quanto a nossa alegria em recebê-los em meio a geral aclamação, senti que não estávamos ali por mero acaso, mas por um mandado do destino que nos trouxe até aqui, neste jovem século, neste ano, neste mês, naquele dia, naquela hora e naquele instante, com o fim de celebrar o Primeiro Centenário, de muitos a serem festejados, e reafirmar nossa fé nas coisas do espírito, as únicas de fato indeléveis. A presença na solenidade da Academia Brasileira de Letras, representada pelo ex-Presidente Marcos Vilaça e pelo Presidente Cícero Sandroni, é, como este me afirmou em sua chegada a São Luís, prova do apreço daquela Casa pela nossa, herdeira de tantas tradições. Nisso, a ABL, que tantos maranhenses tem tido em seu quadro de membros efetivos e entre seus patronos e fundadores, segue o exemplo de seu primeiro Presidente, Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, admirador do Maranhão e seus homens de letras, em especial Gonçalves Dias, entre os quais tinha amigos próximos, como Joaquim Serra, sobre quem escreveu bela crônica por ocasião de sua morte em 1888. Quando o próprio Machado morreu em sua residência, no Cosme Velho, no Rio de Janeiro, numa época em que se morria em casa cercado do consolo dos familiares e amigos e não no ambiente indiferente, frio dos hospitais (hoje parece que já não morremos, mas somos mortos por antecipação por meio de sedação, que nos conduz ao nada antes do nada definitivo), estavam a seu lado os maranhenses Coelho Neto, Graça Aranha e Raimundo Correia, todos, como Joaquim Serra, patronos de Cadeiras na AML, como estavam também Mario de Alencar, Euclides da Cunha, José Veríssimo e Rodrigo Otávio, seus amigos de outros Estados. Grande tem sido a receptividade pela sociedade às nossas iniciativas com respeito às festividades, durante este ano: empresas e outras instituições privadas, gente da área cultural, o setor público. Constantes, as palavras de apoio e de reconhecimento aos nossos esforços com o fim de dar às celebrações do Centenário a dignidade devida à instituição guardiã de nossas mais caras tradições de cultura, evidência do respeito dos maranhenses por ela. Permanente, o apoio incondicional dos membros da Diretoria e dos acadêmicos residentes aqui e fora do Estado. Sinto-me feliz e orgulhoso pelo brilhantismo das comemorações. Ao assumir a Presidência da Academia por escolha dos confrades, eu tinha conhecimento das dificuldades inerentes à administração de uma instituição que, de um lado, não dispõe de muitos recursos materiais, mas, de outro, tem um patrimônio de inestimável valor, embora intangível, medido e contabilizado na moeda do prestígio por nós herdado dos fundadores e sucessores. Para se fazer muito, isto não é pouco.

17 de agosto de 2008

Ouvidores e juízes

Jornal O Estado do Maranhão

Mílson Coutinho, que lançará na próxima sexta-feira, dia 22 de agosto, às 20 horas, na Academia Maranhense de Letras, à rua da Paz, em mais um evento comemorativo do Centenário da Casa de Antônio Lobo, depois da bela sessão solene da última sexta-feira, em homenagem à fundação da Casa, o livro Ouvidores-gerais e juízes de fora: livro negro da justiça colonial do Maranhão (1612-1812), costuma se dizer um mero repórter de coisas antigas, lembrando de seu tempo de militância na imprensa maranhense. Este livro prova, mais uma vez, ser essa auto-avaliação parte da insuperável e sincera modéstia de Mílson. Mais de uma vez eu já disse, ao apreciar outras obras do autor, que poucos pesquisadores de nossa história têm faro tão aguçado para, indo às fontes primárias e embrenhando-se no aparente caos de milhares de documentos, deles extrair uma narrativa não verdadeira, num sentido ingênuo, pois sabemos que o estabelecimento da “verdade” passa pelo filtro ideológico ou de interesses pessoais dos cronistas da história, mas verossímil, essência da boa narrativa histórica ou de qualquer natureza. Pois é isso que mais uma vez fica evidente ao leitor atento. Louvando-se principalmente no acervo documental do Catálogo dos manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Mílson estabelece pioneiramente a crua história dos representantes do sistema jurídico colonial português no Maranhão num período de 200 anos, até quase a Independência. Emerge da leitura de Ouvidores-gerais e juízes de fora, um retrato não tanto da natureza do sistema de justiça e administração coloniais nesta parte da América portuguesa, mas especialmente de como, dadas certas condições sócio-políticas, certo ambiente, o ser humano é capaz de se comportar em relação a seus semelhantes, revelando o torpe e baixo nele existente, embora se reconheça ser ele capaz igualmente de gestos nobres que, segundo um ceticismo radical, não passa de atitude interessada da qual não se sabe ainda a motivação, consciente ou inconsciente. Não existiria nunca gesto desinteressado? Ouvidores e juízes de fora, homens de “elevada cultura jurídica e humanística”, como assinala o autor, foram presos, deportados de volta ao Reino, excomungados por bispos arbitrários envolvidos nas paixões terrenas locais, expulsos da magistratura por governadores que ainda lhes faziam ameaças e os desterravam para regiões insalubres no interior do Estado, devendo-se ter em mente que as autoridades que dessa forma os castigavam não eram muito piores do que os punidos. Estes, apesar de suas próprias faltas, sofriam sem possibilidade de defesa na colônia e à revelia de formalidades legais ou de preocupações com as aparências. Governadores houve famosos pela desonestidade e arbitrariedade de suas decisões, atributos que os igualavam aos membros da magistratura perseguida por eles. A distância dos centros decisórios em Lisboa, a decadência de Portugal e a conseqüente escassez de recursos materiais para a manutenção e boa administração de seus domínios, a cultura patrimonialista portuguesa, o absolutismo então reinante, tudo isso contribuía para a caótica situação político-administrativa. A pretensão de Mílson não é de modo algum oferecer grandes linhas de interpretação da história do Maranhão, neste aspecto particular da atuação dos magistrados, pela utilização de abrangentes teorias da história, de qualquer linha de pensamento. É de desentranhar de uma rica documentação uma narrativa coerente num estilo caracteristicamente jornalístico com traços de uma oralidade própria do agradável conversador que ele é. O livro comemora os 195 anos de criação do Tribunal de Justiça do Estado, que dessa forma se associa às festividades da AML.

3 de agosto de 2008

Costumes Primitivos

Jornal O Estado do Maranhão

As velhas eleições, de um tempo de que não me quero lembrar agora, por certa antiguidade, eram exemplos de como poluir uma cidade impunemente. Ainda no tempo das cédulas de papel, que muito serviram para emprenhar urnas, método pouco ortodoxo de ganhar eleições, mas de modo nenhum estranho à política da época, o término da disputa eleitoral era ocasião de se ver ruas cobertas de papel, num ridículo arremedo de fim de festa de carnaval, postes enrolados em cartazes de papel vagabundo e de muito mau gosto e muros pichados com inscrições numa língua que chegava a lembrar em alguns detalhes a língua de Camões e Vieira. Depois veio a fase do showmício, palavra em processo de morte junto com a morte da coisa designada por ela, que deu emprego temporário a muita gente, mas desempregou a consideração pelo direito dos cidadãos de não ouvir música da Bahia e não aturar os astros da música axé com a farda típica da profissão: bonés de aba frontal virada pra trás, bermudão folgado até o meio da canela, camisão de cores berrantes estampado com flores, tênis de marcas famosas, ou não tanto, combinados com meiões até os joelhos, pulinhos ditos atléticos ao ritmo da batida insalubre (faz mal à saúde pelo alto volume de execução) do axé e gritos de “alô galera maravilhosa”. Os cantores de trios elétricos, como todos sabem, chamam todas as “galeras” de maravilhosas e amam desde pequenininhos a cidade onde se apresentam, sendo modestos, ainda, ao comentar a qualidade do próprio desempenho musical, assim como o são os jogadores de futebol, que ao marcar gols, nunca admitem ser competentes, mas apenas ter tido a “felicidade” de acertar um bom chute, graças a Deus, ajudando a equipe a conseguir um “resultado positivo”. Como no caso da bem-vinda e salvadora de vidas Lei Seca, que anda derrubando estatísticas de mortes no trânsito, como evidência de ser possível a legislação mudar velhos hábitos assim como velhos hábitos acabam gerando nova legislação, de alguns anos para cá novas leis eleitorais acabaram com a poluição visual causada pelas eleições, até mesmo com os showmícios, que até então pareciam existir desde o Big Bang, mas que terminaram, como tudo termina, no esquecimento e no pó. No entanto, a poluição mudou de forma, agora é principalmente sonora. Com a evolução da tecnologia de amplificação de som, qualquer carrinho se transforma num trio elétrico. Os candidatos a prefeito e vereador dispõem agora, a preços módicos (afinal de contas pra que serve o real valorizado senão para comprar, bem baratinhos, eletrônicos importados?) dispõem de equipamentos de som capazes de incomodar a paz universal. Pensam em ganhar votos, com certeza, mas os arrebenta-quarteirões com que eles jogam pelas ruas, só irritam os eleitores, fazendo os pretendentes perderem votos, depois de terem perdido a vergonha de incomodar a cidade. Aqui em São Luís a coisa está feia. Os candidatos não escolhem hora nem lugar para desrespeitar a legislação, ansiosos de lançarem poluidores sonoros no ambiente. Conheço de perto o caso da Raposa, outro município da ilha, a que vou pelo menos duas vezes por semana. Crime é a classificação a ser dada ao que eles fazem lá. Numa cidade com sua principal via urbana estreita em sua maior parte, eles agridem os eleitores mandando desfilar durante o dia todo carros de som a todo volume naquela via. É hábito antigo na cultura das eleições municipais. A Raposa deveria seguir o exemplo de Codó, onde todos, Ministério Público, Procon, autoridades policias e candidatos, se juntaram com o fim evitar esse tipo de perturbação da ordem pública? Onde estão as autoridades que não tomam providências? A justiça eleitoral não sabe disso? E o Ministério Público? Está na hora de mudar esses costumes primitivos.

Machado de Assis no Amazon