29 de junho de 2014

Sem zebra

Jornal O Estado do Maranhão
          
          O aspecto mais positivo da Copa até o momento, em minha opinião, independe de ação governamental e é inerente a nossa maneira de ver o mundo e nele a nós mesmos: a hospitalidade dispensada aos visitantes. Essa atitude nos deixará um legado positivo que, bem aproveitado, nos trará benefícios inestimáveis em futuro próximo e mais adiante, contribuindo com uma imagem positiva do Brasil no exterior e o incremento do fluxo turístico de lá para cá. O comportamento ordeiro dos torcedores e a contenção pela polícia, com o uso legítimo da força, dos baderneiros de sempre, impedidos de se aproximarem dos estádios, é a prova de que, havendo prioridade pela manutenção da ordem pública, é possível, sim, alcançá-la não só na Copa, mas no dia a dia de nossas cidades. Os cidadãos precisam ter a liberdade, assegurada pela Constituição, de ir vir. A conduta dos bons é insuficiente para a tranquilidade de suas comunidades; é indispensável a repressão aos desordeiros. Deveria haver Copa no Brasil todo ano. Só assim a segurança pública poderia melhorar. Fora dos gramados, a vergonha dos preços adicionados a preços, promessas não cumpridas e prazos estourados continuará. Mas, esse é assunto a ser tratado pelos brasileiros, terminado o torneio. Dentro de campo as coisas estão indo bem, até mesmo na aparente anormalidade das zebras.
          Eis o que desejo dizer. Zebras acontecem em todas as Copas e campeonatos. O futebol seria muito chato se sempre fosse possível prever com exatidão o resultado de cada partida. Qual seria a graça, se assim fosse? A emoção estaria banida do esporte. Quem se apaixonaria por algo tão insosso? Mas a zebra, sem nunca deixar de dizer presente, não prevalece no final da luta. Até este ano, pelo menos, nunca prevaleceu. Já explico com números.
          Em dezenove Copas já realizadas (esta é a vigésima), em dezoito delas um destes quatro países disputou a final e ganhou no mínimo duas vezes: Brasil, Argentina, Itália e Alemanha. Juntos eles somam quatorze títulos, ou quase 75% do total em disputa desde 1930. Se adicionarmos as seleções que foram campeãs apenas uma vez, Inglaterra, França e Espanha, três títulos em conjunto, então chegaremos a apenas sete vitoriosos em dezessete Copas, ou em 90% delas. Os quatro primeiros são os que eu chamo de potências do futebol, os outros três, potências intermediárias. Eles têm uma característica em comum: possuem populações grandes, requisito tão somente necessário, contudo não suficiente na explicação do motivo da concentração dos títulos em tão poucas mãos. Temos de adicionar uma segunda característica: seus nacionais praticam o futebol em quantidade superior a populações de muitas nações. Não é o caso da China, ou da Índia, onde as populações estão acima de um bilhão de pessoas mas o esporte não é popular. Da quantidade, surge a qualidade na forma de craques que de maneira consistente sustentarão a qualidade futebolística de uma nação por longos períodos.
          Repito: somente têm sucesso na Copa países com populações grandes e em que o esporte é popular. Essas condições são atendidas por todos os vitoriosos na competição. Eles formam a elite do futebol.
          Perguntarão muitos: E o Uruguai, com sua minúscula população, metade da do Maranhão? Bem, o Uruguai é quase um exceção à regra. Digo quase porque, campeão em dois Mundiais, há sessenta e quatro anos não ganha nada de importância, tempo bastante longo para colocá-lo fora do grupo de potências. Hoje, é como se nunca tivesse ganho. Quem não vence há mais tempo depois do Uruguai é a Inglaterra, 48 anos. Se eu quisesse ser bastante rigoroso, poderia tirá-la do grupo de potências, o que em nada iria alterar o meu raciocínio. Outra equipe, no entanto, pode querer desmentir a regra, ganhar desta vez e entrar no grupo dos vencedores. Não digo que os fora do G7 não possam prevalecer nunca. Digo apenas isto: serão sempre a exceção a confirmar a regra.
          Por isso tudo, posso afirmar: no resultado final da Copa não existe zebra, embora ela apareça em algumas partidas isoladas.

27 de junho de 2014

Haddad transforma a degradação de São Paulo em atração turística

Blogs e Colunistas

27/06/2014
 às 6:25

O príncipe e o plebeu das ideias: Haddad transforma a degradação de São Paulo em ponto turístico. Ou – A confissão do secretário do prefeito: programa “Braços Abertos” ignora a lei e aceita a venda de crack. Pior: na prática, Prefeitura financia a operação

O príncipe e o servil plebeu das ideias; desnecessário explicar quem é quem
O príncipe e o servil plebeu das ideias; desnecessário explicar quem é quem
A nobreza europeia gosta de paisagens e países exóticos, uma herança, vá lá, cultural das duas grandes ondas colonialistas, a do século 16, que se fixou nas Américas e nas costas africanas, e a do século 19, que buscou o interior da África, com as potências fazendo a partilha formal das terras ignotas. O que está fora da Europa é o “outro”. Antes, imaginava-se que aqueles mundos estranhos pudessem ser civilizados; hoje em dia, com o triunfo do pensamento politicamente conveniente, que classificam, impropriamente, de “politicamente correto”, há um troço que eu chamaria de “tolerância antropológica”. Os europeus se divertem com os hábitos dos exóticos. Não pensem que isso é só virtude. O pai de Harry, por exemplo, o príncipe Charles, é um ecologista convicto. Está entre aqueles que acham que o nosso papel é conservar macacos e florestas, deixando a tecnologia para os europeus…
Mas não vou me perder no atalho. Não sou do tipo que se envergonha de ser brasileiro. Nem me orgulho. Indivíduos são indivíduos em qualquer parte. Há coisas no Brasil que adoro. Há outras que abomino. Mas também as haveria de um lado ou de outro se meu país fosse a Suécia. A cada vez, no entanto, que vejo autoridades brasileiras se orgulhando da nossa miséria, da nossa degradação, da nossa desgraça, sinto revirar o estômago de puro constrangimento. E foi precisamente essa a sensação que tive ao ler as várias reportagens sobre a visita de Harry à Cracolândia, em São Paulo, devidamente escoltado pelo prefeito Fernando Haddad, com seu ar de deslumbramento servil, depois de ter esperado pelo príncipe por longos 45 minutos.
O rapaz foi levado para conhecer o programa “Braços Abertos”. Ninguém poderia ter dado melhor definição do programa do que um de seus formuladores, o secretário de Segurança Urbana, Roberto Porto, um dos queridinhos de certa imprensa descolada. Ele resumiu assim o espírito da visita do príncipe à Cracolândia: “Pelo contato que tive, que foi limitado, ele gostou do que viu. Ele quis saber a lógica de se ter um local monitorado, com as pessoas continuando a venda de crack”. Ele é promotor. Deve conhecer o peso das palavras. A venda de uma substância ilegal se chama “tráfico”; se tal substância é droga, é “narcotráfico”. Dr. Porto diz que o nobre inglês gostou de saber que há um pedaço no Brasil em que não se respeitam a Constituição e o Código Penal.
Sempre afirmei neste blog que o programa “Braços Abertos” era, na prática, uma ação coordenada de incentivo ao consumo de drogas. Talvez Harry tenha ficado mais espantado ainda ao saber que a Prefeitura garante o fluxo de dinheiro a uns 400 e poucos viciados, aos quais oferece moradia gratuita — em nome da dignidade, é claro! Quando foi informado, se é que foi, de que os dependentes não precisam se submeter a nenhuma forma de tratamento, deve ter pensado: “Como são estranhos esses brasileiros! Na Inglaterra, nós recuamos até das liberalidades que haviam sido criadas para o consumo de maconha”. Ao olhar a paisagem que o cercava, deve ter dado graças aos céus pelo vigilante trabalho dos conservadores de seu país.
Sim, senhores! Antes da visita do príncipe, a Cracolândia passou por uma rápida maquiagem, com lavagem das ruas, coleta de lixo, retirada do entulho que os zumbis vão largando por ali. Assim como deveríamos ter Copa o ano inteiro para que as autoridades fossem um tantinho menos incompetentes, a realeza europeia poderia nos visitar amiúde. As ruas seriam mais limpas, eu acho. Nem que fosse apenas para inglês ver.
O príncipe, o prefeito, seus auxiliares e os outros deslumbrados se foram — antes da hora prevista porque teve início um tumulto. Meia hora depois, os dependentes retornavam para o tal “fluxo”, aquele perambular contínuo marcado por consumo, tráfico, escambo, degradação pessoal, desordem pública… Um dos viciados sentenciou, informa o Estadão, pouco antes de ameaçar a reportagem com uma pedrada: “Venha quem vier, mas a Cracolândia sempre vai ser nossa”.
Eis o programa de combate ao crack que Haddad prometeu implementar na campanha eleitoral de 2012. Não sei quantos anos vai levar para a cidade se recuperar das consequências trágicas da gestão deste senhor. Para encerrar: em qualquer democracia do mundo, o Ministério Público — ou seu homólogo — levaria o prefeito Fernando Haddad e seu secretário de Segurança Urbana aos tribunais. Basta ler a Constituição. Basta ler o Código Penal. Basta ler a lei antidrogas. Quem responde por essa tragédia moral? Em primeiro lugar, os que a promovem. Em segundo lugar, os que, com o seu voto, puseram Haddad onde ele está.
Texto publicado originalmente às 2h52
Por Reinaldo Azevedo

26 de junho de 2014

Decisão de Barroso sobre não petistas é vergonhosa, preconceituosa e escandalosa. Que se declare logo que os petistas estão acima da lei. Seria mais honesto intelectualmente

26/06/2014
 às 15:06


Roberto Barroso: um homem de olhar penetrante e juízos heterodoxos
Roberto Barroso: um homem de olhar penetrante e juízos heterodoxos
Se Romeu Queiroz e Rogério Tolentino quiserem trabalhar fora, vão ter de fazer como José Dirceu e Delúbio Soares: inventar um emprego para enganar a Corte. Aí o ministro Barroso topa. O ministro, que já confessou curtir Taiguara e Ana Carolina, certamente conhece Cazuza… Deve cantarolar por aí: “Mentiras sinceras me interessam/ me interessam…”. Até lamento associar um roquinho bacana da década de 80 a Barroso, que vem de décadas muito anteriores, do tempo em que o direito servia mais a um pensamento, a uma ideologia, do que ao império do texto legal.
Então vamos ver: com base na decisão tomada ontem por expressiva maioria do Supremo — 9 a 1 —, ele liberou para o trabalho externo também Delúbio Soares, aquele que sabidamente gozava de privilégios na cadeia, o que está fartamente demonstrado, desrespeitando um dos requisitos para o trabalho externo, que é justamente o bom comportamento do “apenado”, como diria o ministro, que gosta de rasgos poéticos.
Certo! Mas Romeu Queiroz e Rogério Tolentino, ah, esses não! O primeiro queria trabalhar na própria empresa e contratar o outro. É esquisito? É, sim. Mas é muito mais esquisito do que Delúbio trabalhar na CUT??? Ora, tenham a santa paciência! Na central, Delúbo é chefe, com direto a motorista particular e tudo. Ocupa-se lá exatamente do quê? Quem tem condições de vigiar as suas tarefas? Está fazendo na central o que sempre fez: política. E Dirceu como contínuo interno de um advogado estrelado, ganhando R$ 2,1 mil por mês — o que, dados os seus padrões, digamos, de consumo social não serve nem para cobrir a cova do dente. Desculpo-me por usar uma metáfora pré-programa Brasil Sorridente… Hoje, como a gente sabe, não há mais desdentados no Brasil, certo? Sumiram por um decreto político do PT.
É interessante a forma, digamos, combativa como Barroso entende as leis. Por alguma razão, desde a raiz do seu raciocínio, os petistas acabam sempre beneficiados. “Ah, e no caso de Genoino?” Bem, no caso de Genoino, ele sabia que iria perder e não quis agasalhar a derrota. Afinal, depois do escândalo protagonizado pelo advogado Luiz Fernando Pacheco, não havia chance de o pleito ser aprovado. Mas não se esqueçam de que, mais uma vez, Barroso transformou Genoino num herói. Com a negativa para o trabalho externo de Queiroz e Tolentino, o ministro só demonstra preconceito contra a inciativa privada.
Em suma, às respectivas defesas desses dois não petistas, só resta apelar mais uma vez, inventando, desta feita, um trabalho externo à moda Delúbio e Dirceu. Se o tribunal tivesse negado o pleito dos petistas, a esta altura, a crônica política livre como um táxi estaria escandalizada. Pelos outros dois, não se vai derramar um miserável adjetivo. Ou vocês viram alguém com peninha de Roberto Jefferson, por exemplo? Ao contrário: fez-se blague de suas restrições alimentares. Ninguém liga para a suas entranhas. Já o sistema circulatório do ex-presidente do PT parece assunto de segurança nacional.
Por que os petistas não propõem logo uma emenda constitucional deixando claro que os membros do partido não são pessoas comuns, como as outras, como nós? E olhem que haverá juízes, também fora do Supremo, que iriam concordar, não é? Jamais me esquecerei de um manifesto da tal Associação Juízes para a Democracia, que escreveu para a escândalo da história:“Não é verdade que ninguém está acima da lei, como afirmam os legalistas e pseudodemocratas: estão, sim, acima da lei, todas as pessoas que vivem no cimo preponderante das normas e princípios constitucionais e que, por isso, rompendo com o estereótipo da alienação, e alimentados de esperança, insistem em colocar o seu ousio e a sua juventude a serviço da alteridade, da democracia e do império dos direitos fundamentais”.
Ora, os petistas, como sabemos, sempre estão lutando por direitos, não é mesmo? Que sejam declarados logo homens acima da lei. E ponto e basta!
Por Reinaldo Azevedo

15 de junho de 2014

Vai ter Copa



Jornal O Estado do Maranhão


          É bobagem das grandes desejar a derrota do Brasil na Copa sob o argumento de que, vitoriosa, a Seleção ajudaria a presidente Dilma na tentativa de reeleição em outubro próximo, como se houvesse relação de causa e efeito entre vitória (ou derrota) no futebol e avaliação positiva (ou negativa) do governo dela ou de qualquer outro. A administração federal por certo é muito ruim, mas não será o resultado da competição que fará as pessoas mudarem de ideia a respeito do governo do PT e sobre o próprio partido.
          Equívoco de natureza semelhante, todavia diferente no objeto de crítica, é o relativo ao volume de recursos públicos aplicados na construção de estádios e ampliação de sistemas urbanos de transporte de massa. O total desses dinheiros é, relativamente às necessidades imediatas de investimentos públicos, pequena. O problemas não está aí, está na falta de cumprimento das promessas, como a de uso exclusivo de recursos privados nas obras e de obediência aos orçamentos exibidos por ocasião da apresentação da candidatura do Brasil a sediar a Copa.
          Ora, nada disso foi cumprido. Recursos públicos foram utilizados em quase 100% dos casos assim como os orçamentos em muito foram aumentados, criando a suspeita da existência de esquemas de corrupção de agentes públicos, como é frequente acontecer. Houve atrasos nas obras. Várias delas estavam incompletas no dia da abertura do torneio ou foram prometidas para o fim do ano. Algumas sequer foram iniciadas e foram cortadas da lista dos compromissos, chamada de caderno de encargos pela burocracia da Fifa. Muitos pessoas contrárias à competição, o são por esses motivos. Outras, os revolucionários do Leblon, no Rio de Janeiro, ou dos Jardins, em São Paulo, o são por ideologia, aquela responsável nos países socialistas, como a antiga União Soviética, China, Vietnã, Camboja, Cuba e diversos países da falecida Cortina de Ferro pela morte de milhões de pessoas por fuzilamento, fome, exposição ao frio extremo, trabalhos forçados e más condições de higiene.
          Vai ter Copa, sim, e o futebol brasileiro irá brilhar, como já o fez na abertura do torneio quinta-feira passada, contra a Croácia, com destaques no nosso time para Neymar e Oscar. Muitos dirão que o juiz deu um pênalti inexistente em Fred e terão razão em dizê-lo porque a falta não ocorreu. Pois seja. Na ausência da marcação equivocada o placar seria de 2 a 1, em vez de 3 a 1. Mas, esperem aí. O juiz, Yuichi Nishimura, não é o mesmo do Brasil contra a Holanda na Copa de 2010? Não foi ele quem deixou de dar um pênalti a nosso favor, cometido em Kaká como resultado de uma “tesoura voadora” de um jogador holandês no brasileiro dentro da própria grande área da Holanda? Os erros dos juízes fazem parte do esporte. Àquela altura do jogo de 2010 o Brasil vencia por 1 a 0. Se chegasse a 2 a 0 com o pênalti não marcado, dificilmente nossa equipe deixaria de vencer. O juiz não errou somente a favor do Brasil. Errou também em 2010, contra. São ridículas as teorias conspiratórias de que o Brasil comprou a Copa.
          Um amigo, um dos milhões de entendidos em futebol (eu me divirto com a previsão dos entendidos, que sempre veem as outras seleções como mais “perigosas” do que de fato são) me disse: “Se o Brasil por acaso levar um gol antes de fazer o seu, não terá força de se recuperar contra os croatas”. Aconteceu o contrário em condições mais adversas do que se poderia imaginar. Além de sair perdendo, tal situação surgiu de um gol contra, fato ocorrido pela primeira vez com o Brasil em Copa do Mundo. O inesperado da situação poderia ter desequilibrado emocionalmente nossa equipe o que não aconteceu.
          O povo continua sua velha história de amor com a Seleção. Não será meia dúzia de agitadores do PSTU, partidos congêneres e movimentos associais delinquentes que irão sequestrá-la das mãos de milhões de brasileiros. Afinal, ela é uma das poucas instituições capazes de despertar em nós orgulho de nosso (não deles) país e o sentimento de sermos membros da mesma comunidade de cidadãos livres e iguais em direitos e deveres.

1 de junho de 2014

Futebol e memória

Jornal O Estado do Maranhão

          A espécie humana tem uma característica especial, a capacidade de lembrar. Sem ela não seria possível sequer a estruturação da nossa própria personalidade. Uma das evidências disso está em doenças degenerativas como o Alzheimer. Varrendo o passado da mente das pessoas dele acometidas, destrói também a personalidade.
          Mas, é preciso não cair em armadilhas. A ninguém é estranha a afirmação: “No meu tempo tudo era melhor”. A mente é seletiva ao recordar. Passado algum tempo de certos acontecimentos em nossas vidas, ela começa a selecionar apenas os fatos mais agradáveis, esquecendo muita coisa nociva ao equilíbrio psicológico. Lembrar tudo do passado seria terrível maldição. Eu mesmo tive experiência que costumo apresentar como exemplo de como eliminamos as más lembranças.
          Quando fui estudar economia nos Estados Unidos, na Universidade de Notre Dame, passei cinco anos sem colocar o pé no Brasil. Depois dos dois primeiros anos, meu inconsciente começou a eliminar de minhas recordações os costumes, atitudes, hábitos e outras usanças daqui que sempre muito me irritam mas, naquele período desapareceram quase completamente de minhas considerações conscientes: a mania de só nos divertirmos com música a todo volume, sem consideração pela vizinhança com seus moradores e pelas leis proibitivas de tal absurdo (afinal temos o exotismo de leis que não pegam e não adianta apelar, como se faria em outros países, às autoridades, em especial às polícias e ao Ministério Público estadual, pois eles irão ignorar o queixoso); o desrespeito permanente às leis do trânsito; o descumprimento sistemático de horários; a desconsideração do mérito pessoal em favor do apadrinhamento político no acesso a posições na administração pública, etc. Tivesse eu vindo de férias alguma vez nesse período, talvez houvesse decidido ficar por lá.
          Esses pensamentos me ocorrem porque em época de Copa do Mundo como agora se ouve muito dizerem que Seleção boa mesmo foi a de 1982, ou de 1970, ou de 1958 e assim por diante. Os da geração de meu pai poderiam dizer, com relação aos jogadores, que Leônidas da Silva, artilheiro da Copa de 1938, quando o Brasil ficou em 3º lugar, foi o melhor de todos; os da minha, Pelé; os da de hoje, Neymar. Aquilo presenciado por nós na juventude parece o melhor, pelo menos na visão da maior parte das pessoas, exatamente porque os defeitos, os aspectos menos agradáveis são escondidos mais tarde por nossa psique, mesmo (ou principalmente) aqueles incômodos a ponto de tornarem-se traumáticos.
          Vejamos a Seleção de 1982, tratada pela imprensa e torcedores como quase perfeita, embora derrotada pela Itália, que se classificou na fase de grupo com três empates, mas no final venceu a Copa. Os torcedores pensam naquela equipe brasileira com tanta nostalgia porque esquecem de um membro daquele agrupamento de excelentes jogadores, um autêntico perna-de-pau certificado, o sr, Serginho Chulapa, conhecido pela falta de diálogo adulto com a bola. Ele furou uma cabeçada facílima aos 12 minutos de jogo, perdendo clara oportunidade de marcar o gol. Nem minha finada avó Marcelina, pequenina como ela era, erraria. Também, o lado direito da nossa defesa foi sacrificado porque o ala Leandro não tinha a mesma ajuda que no direito Éder dava à defesa, recuando a fim de ajudá-la, conforme afirmou Falcão em seu livro Brasil 82: o time que perdeu a Copa e conquistou o mundo, de 2012. Mais ainda, ao falhar miseravelmente nos três gols da Itália, o time mostrou não ter os requisitos para ser considerado o melhor de coisa nenhuma. A verdade é esta: passado o tempo, só lembramos das virtudes daquele conjunto e esquecemos os defeitos.
          Atualmente, há análises tendentes a reavaliar a Seleção de 1994, tão criticada apesar de campeã. Segundo alguns analistas, ela foi a inspiradora do tipo de futebol jogado depois pelo Barcelona e pela seleção da Espanha, com tão bons resultados. Quem sabe, passadas mais duas ou três Copas, a Seleção daquele ano e a deste, ganhe ou perca, sejam vistas como “uma das melhores de todos os tempos”.

Novos empregos serão abertos, para enfrentar a tarefa hercúlea de atualizar nossa literatura

Globo On Line - 1/6/2014
João Ubaldo Ribeiro


          Não sei se vocês lembram, ou que fim levou, aquela história de censurarem, expurgarem ou proibirem um livro infantil de Monteiro Lobato, por aspectos considerados racistas. De vez em quando, fico um pouco impaciente e pergunto por que não proíbem logo “Os Sertões”, com tanto racismo contido na parte que todo mundo diz que leu, mas não leu, a referente ao homem. Deve ser porque de fato não leram, senão a grita ia poder começar até mesmo por Itaparica, onde somos todos, de acordo com a visão dele, mestiços neurastênicos do litoral. A antropologia da época tinha convicções que podem hoje ser qualificadas de racistas, mas era a ciência de então e no mesmo barco estão outros cuja obra haverá de merecer ser reescrita ou banida, como Oliveira Vianna ou Sílvio Romero. Imagino que devemos até nos surpreender por ainda não terem começado uma reavaliação da figura de Machado de Assis, sob a acusação de ele ter sido um mulato alienado metido a branco, ou uma condenação da crítica, por não o haver qualificado de maior escritor negro do Brasil.
Mas, no caso de Machado, dizem as novidades, não se trata de racismo, trata-se da elaboração, com a chancela e o apoio do Estado, de versões populares, ou acessíveis à maioria, de obras dele. Segundo o que saiu nos jornais, concluíram que os jovens e pessoas menos cultas não leem Machado porque não entendem as palavras e não percebem o que querem dizer certos arranjos sintáticos. Ou seja, o problema é com Machado, cujos textos obsoletos são preservados supersticiosamente e já não têm serventia para as gerações presentes. Urge, portanto, que nos livremos dessa tralha inútil e elitista, corrigindo o muito que clama por atualização.
          A observação inicial que se pode fazer sobre tal premissa é que ela se fundamenta na crença, comum entre pessoas semiletradas e analfabetos funcionais, de que, na obra literária, existe uma diferença, ou separação, entre forma e conteúdo. O conteúdo seria a “história”, o “enredo”. A forma seriam as palavras usadas pelo escritor e seu jeito de narrar. O que interessa aos que reescrevem Machado é esse “conteúdo”, que pode ser contado de diversas maneiras. Assim, “Dom Casmurro” seria basicamente o mesmo, quer tendo sido escrito por Machado, quer por Dostoiévski, Balzac ou Jorge Amado. Isto, realmente, é de uma estupidez inexcedível e contribui para que ganhe corpo a noção primária de que é possível conhecer a literatura de um país, simplesmente ouvindo, da boca dos que já as leram, as histórias contadas pelos grandes escritores, não vindo ao caso suas palavras, seu estilo, suas sutilezas, suas referências.
          É curioso como iniciativas desse tipo se veem como antielitistas. As elites, o que lá seja isso por aqui, querem preservar para si mesmas a fruição da grande arte. Só quem tem vocabulário e fez esforços para ser um bom leitor é que pode desfrutar de Machado de Assis? Não, senhor, agora qualquer um, mesmo com vocabulário restrito e praticamente inculto em todas as áreas, vai poder ter esse privilégio. Para isso, vamos rebaixar, vamos reduzir os textos a uma voz tatibitate, modernosa e linguisticamente irresponsável, vamos limitar o vocabulário e tomar outras medidas simplificadoras. Não se nota como essa posição — ela, sim — é presunçosa, arrogante e elitista. Não se pensa em estender a todos o que hoje é visto como das elites, pensa-se em baixar o nível e assim ser democrático, quando o que ocorre é o contrário.
          Os laços lógicos desse paternalismo condescendente desafiam a imaginação e, num contexto em que cada vez mais o Estado (ou seja, no nosso caso, o governo) mete o bedelho na vida individual de seus súditos, podemos temer qualquer coisa. Quanto a Machado de Assis, não se pode fazer mais nada, além de reescrever seus textos. Mas, quanto aos autores vivos, pode-se incentivá-los (ou obrigá-los, conforme o momento) a ater seus escritos ao Vocabulário Popular Brasileiro, que um dia destes pipoca por aí, tem muita gente no governo sem ter o que fazer. Constará ele das 1.200 palavras compreensíveis pela melhor parte da juventude e do povo brasileiros e, para não ser elitista, quem publicar livro ou matéria de jornal não deve passar delas e quem usar uma palavra considerada difícil não apenas será sempre vaiado quando em público, como pagará uma multa por vocábulo metido a sebo.
          Novos empregos serão abertos, para enfrentar a tarefa hercúlea de atualizar nossa literatura. Para que os poetas precisam de tantas palavras, quando as do Vocabulário seriam suficientes para exprimir qualquer sentimento ou percepção? Ou o elitista diria o contrário, menosprezando preconceituosamente a sensibilidade e a criatividade do povão? E rima, meu Deus do céu, para que se usou tanto rima, uma coisa hoje em dia completamente superada? E ordens inversas, palavras postas fora do lugar, que só podem confundir o leitor comum? Por essas e outras é que os jovens também não leem poesia.
          E a lição se estende da literatura às outras artes. O povo não gosta de música erudita porque são aquelas peças vagarosas e demoradas demais. De novo, a solução virá ao adaptarmos Bach a ritmos funk, fazermos arranjos de sinfonias de Beethoven em compasso de pagode e trechos de no máximo cinco minutos cada e organizarmos uma coleção axé das obras de Villa-Lobos. Tudo para distribuição gratuita, como acontecerá com os livros de Machado reescritos, pois continuamos a ser um dos poucos povos do mundo que acreditam na existência de alguma coisa gratuita. E talvez o único em que o governo chancela, com dinheiro do cidadão, o aviltamento de marcos essenciais ao autorrespeito cultural e à identidade da nação, ao tempo em que incentiva o empobrecimento da língua e a manutenção do atraso e do privilégio.

João Ubaldo Ribeiro é escritor

Machado de Assis no Amazon