9 de maio de 2004

Incertezas

Jornal O Estado do Maranhão 
Para as crianças de classe média como eu, nos anos cinqüenta no distante bairro do Areal, depois Monte Castelo, era um grande acontecimento ficar doente de cama, se isso não indicasse algo grave. Uma gripe, uma queda, uma garganta inflamada, como essa a me incomodar agora, ao nos prender em casa, depressa tornavam realidade nosso desejo não tão secreto de faltar às aulas pelo menos por um dia. Nessas ocasiões, meu pai pegava no centro da cidade um dos carros de praça da época, no Posto Vitória, telefone 1400, com seus choferes, hoje taxistas, conhecidos de toda na cidade, com seus belos e pesados carros importados, e trazia o médico pediatra (as médicas eram raras ou inexistentes) para ver os filhos que deixara sob os cuidados da minha mãe, que os considerava uns santos, ao contrário dos pequenos amigos deles, legítimos capetas em forma de gente.
Eu via nos médicos uma aura mágica e indefinível. Não me passava pela cabeça continuar doente por mais de vinte e quatro horas depois da visita daquele salvador esperado ansiosamente. O ritual daquele sacerdote da vida, de pedir para eu esticar a língua, o pedido já me dando engulhos, como ainda hoje me dá, só de pensar na palheta que ele ia usar para baixar minha língua e olhar lá dentro de minha garganta com a ajuda de uma lanterninha, apalpar em seguida o meu ventre ou dar leves toques com a ponta dos dedos de uma mão sobre a outra espalmada naquela região, a fim de, pelo som da pancada, avaliar alguma coisa totalmente fora do alcance de minha compreensão, inspecionar os meus olhos avermelhados e lacrimosos, colocar o termômetro nas minhas axilas, não sem antes sacudi-lo, eu não sabia para quê, segurando-o ente o polegar e o indicador, tudo isso era sinal de coisa boa por vir, em meio do abatimento físico e o desânimo daqueles momentos. A recuperação só poderia ser breve, eu pensava.
Quantas vezes dr. Amaral de Mattos foi à nossa casa! Cinqüenta anos depois eu fui eleito, pouco tempo depois de sua morte, para a Academia Maranhense de Letras, da qual ele veio a se tornar membro em 1995. Ele chegava com seu ar sério, carregando o estetoscópio e outros instrumentos de trabalho na sua pequena maleta de médico, para impor-nos suas mãos e sua ciência, como ele fez a várias gerações de maranhenses, e realizar o milagre da cura nos nossos organismos jovens de então. Era do farmacêutico a tarefa de ler a receita, decifrando a letra quase ilegível, tão misteriosa quanto o latim da missa ali perto, na igreja da Conceição, onde era pároco o padre Ribamar Carvalho, membro também, a partir de 1959, da Academia. O mistério daquele manuscrito era mais uma evidência da sabedoria do dr. Amaral.
O tempo passou, as práticas mudaram. Implantou-se em nosso país um sistema de saúde que massacra tanto o médico, psicológica e financeiramente, quanto o doente, levando a relação entre esses dois pólos humanos do sistema a um nível de tensão prejudicial a todos. No entanto, os médicos têm demonstrado, como regra geral, uma capacidade incomum de manter um comportamento profissional irrepreensível do ponto de vista ético. Eles têm lutado com o fim de manter intacta a ameaçada dignidade da profissão. Mas, como toda regra deve ter exceções para confirmá-la, não me surpreenderia em achar uma delas, como de fato achei há pouco. O leitor logo irá entender por que tomei a liberdade de usá-la como exemplo, mesmo tendo um caráter pessoal, e me desculpará.
Minha mãe, Maria da Conceição Raposo Moreira, hoje com 82 anos de idade, não mais espera com ansiedade e esperança o pediatra chegar para curar seus filhos. A doente desta vez é ela. Doente do tempo que, mais dias menos dias, a todos adoece, e também de tudo daquilo que a vida pode adoecer em nosso corpo e em nossa alma. Está, dessa forma, internada na Unidade de Terapia Intensiva – UTI, do Hospital Português. Na segunda noite de sua internação, meu irmão José Cursino ligou para lá, à noite, a fim de se informar sobre o estado dela. Posto em contato telefônico com o médico de plantão, Ariosvaldo Gaioso, recebeu dele em tom de impaciência e irritação escassas informações. Ele afirmava que não adiantaria dar muitas explicações, porque Cursino não poderia compreender mesmo e interrompeu a conversa, desligando o telefone. Esse médico pensa tudo saber. Mas, em verdade, dá a impressão de não saber de nada e de supor nos outros sua própria capacidade de entender apenas dos aparelhos e tubos de uma UTI. Será estranho para ele tudo que é humano? Ele parece não entender de gente, não entender de vida, não entender de morte. Saberá como tratar alguém – digo aqui no sentido de curar, pois no outro já vimos que não –, numa hora de angústia, de ameaça à vida, como são essas nos hospitais? Quem poderá jamais responder com certeza?

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