29 de agosto de 2004

O senhor ouvidor

Jornal O Estado do Maranhão 
Em 1543 quando era corregedor da Justiça em Elvas, no Alentejo, em Portugal, o cidadão Pero Borges recebeu do rei D.João III a incumbência de supervisionar a construção de um aqueduto. A obra ia pela metade quando parou. A verba acabara. Os vereadores da cidade indignaram-se, talvez por não terem a oportunidade de participar do trabalho de dar sumiço aos recursos destinados ao aqueduto. Enviaram, então, uma carta ao rei, solicitando uma investigação sobre as razões da carência dos fundos que eles pensavam ser bastantes a tão necessária obra, destinada a matar a sede de água dos habitantes da cidade e, como se vê, de dinheiro de Pero e seus comparsas.
O rei deu autorização para a abertura de um inquérito, tão “rigoroso”, suponho eu, como os de hoje. Os investigadores chegaram à óbvia conclusão. O corregedor colocara no bolso 50% da verba, correspondente a um ano de seu salário. Três anos depois ele foi condenado a devolver ao erário o dinheiro surrupiado, e proibido por três anos de exercer cargos públicos.
Prestem muita atenção agora. Esse espertalhão foi nomeado em 1548, pelo mesmo rei D. João III, como ouvidor-geral da América Portuguesa, o primeiro na sua história, uma espécie de ministro da justiça. Recebeu ainda a promessa de nomeação para o cargo de desembargador da Casa de Suplicação, correspondente a um Supremo Tribunal, em Lisboa, “se bem servisse”. Teve mais. A mulher de Pero, Simoa da Costa, receberia uma pensão anual de 40 mil reais, uma forma de diminuir sua solidão e evitar tentações materiais, durante a estada do marido por estas bandas, sendo o salário dele de 200 mil reais anualmente. Ele embolsou o valor correspondente ao primeiro ano desta generosa remuneração antes mesmo de sua partida, a fim de exercer a nobre missão de distribuir a justiça, zelar pela honesta aplicação dos recursos reais e ajudar na centralização administrativa da América Portuguesa, por meio da criação de uma imensa burocracia a partir da implantação no ano seguinte do primeiro governo-geral.
Não seria esse o primeiro episódio, o ato fundador do muito que se vê nos nossos dias de malversação do dinheiro público, de corrupção, de nepotismo e de pura e simples roubalheira, com resultados favoráveis, quase sempre, ao malfeitor, em vez de contrários, com uma punição exemplar?
Essa mentalidade de “o crime compensa”, da centralização excessiva, desnecessária e inócua, do controle exagerado e ineficiente, da formalidade das vírgulas, ponto-e-vírgulas e pontos, do procedimento processual obscuro e irracional se entranharam de tal forma e com tanta força na nossa cultura, que ganharam foros de normalidade, de necessidade, de indispensabilidade, de racionalidade e de imperatividade.
Tudo isso se combina para travar o país e impedir a plena utilização de suas enormes potencialidades. Tomo como exemplo as Olimpíadas. Com o nível médio de renda do Brasil, com sua numerosa população e área, melhores resultados poderíamos alcançar, relativamente aos que apresentamos. Se não os temos é porque não nos organizamos com o fim de obtê-los, por culpa, em boa parte, de nossa incapacidade de superar alguns daqueles entraves culturais. O voleibol é uma exceção a confirmar a regra. Felizmente, temos ainda, na ginástica olímpica, a extraordinária Daiane dos Santos, exemplo de maturidade e talento, prova de que nem tudo está perdido, e, no futebol feminino, esse grupo de abnegadas que luta solitária e competentemente pelo Brasil.
Por falar em cultura, lembro da Academia Maranhense de Letras, lugar de alta cultura. Naquela Casa, tomarei posse na cadeira número 8, cujo patrono é Gomes de Sousa, na próxima quinta-feira, dia 2, às 20 horas. O leitor fica convidado para a solenidade.

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