9 de fevereiro de 2003

Lisboa, nova cidade

Jornal O Estado do Maranhão 
Chego a Lisboa. No caminho até o hotel o motorista de táxi me informa de que, havia pouco, devido ao despiste de um autocarro duas pessoas haviam se ferido. Isso, dizia ele, estava a acontecer freqüentemente nos últimos tempos. Penso na longa viagem e sinto o cansaço. Eles certamente estavam a afetar minha compreensão das coisas mais simples ditas em português, mas resolvo ficar calado a fim de não dar a impressão de não saber a língua.
Antes, no aeroporto, ao entrar no elevador com a minha bagagem eu havia encarado aquele aviso: “carregue o botão”. Ora, como eu podia carregá-lo se ele estava firmemente fixado? Além do mais, poderia alguém fazer algo de útil com ele, se fosse possível levá-lo? Seria um brinde insólito aos recém-chegados, para ajudá-los a ter uma boa estada em solo português? Ou quem sabe tratava-se de algum tipo de espionagem eletrônica destinada ao controle dos brasileiros em Portugal? Agora me aparecia a história do despiste. Eu despistei, fiz que tinha entendido e disse que já não se podia mais confiar nesses perigosos autocarros. Bom mesmo são os aviões que não se despenham a toda hora.
O simpático motorista percebendo meu interesse por futebol fala do jogador brasileiro Jardel, o maior goleador do campeonato português até o ano passado e um dos mais eficientes de todos os campeonatos europeus durante várias temporadas.  Acaba fazendo referência a um jogo amigável a ser realizado no dia seguinte. Empolga-se quase tanto quanto um torcedor corintiano e se distrai. Tem então de aplicar um forte travão no carro, para evitar um acidente. Refere-se também ao fanatismo dos adeptos do Sporting, de Lisboa, do Benfica e de outros times.
Depois do susto pergunto se ele já ouviu falar de Robinho, um novo gênio brasileiro do futebol, de dezoito anos. Quando ele diz que não eu, enchendo o peito de orgulho patriótico, recomendo que ele anote esse nome, pois em pouco tempo vai ouvir falar dele como o novo Pelé. Qual um personagem de Nélson Rodrigues, digo e repito, de olho rútilo, sem desfitá-lo, a mão esquerda crispada no seu braço direito: o novo Pelé.
No apartamento do Hotel Fênix na praça Marquês de Pombal, curioso acerca das novelas brasileiras na televisão portuguesa, tento ligar o aparelho de TV, mas atrapalho-me ao tentar usar o telecomando e tenho de recorrer ao auxílio dos solícitos funcionários. Quanto ao meu telemóvel, nem pensar. Não posso me comunicar através dele em terras lusitanas.
Nas folgas do trabalho, pude ver Lisboa. Vê-la, na Baixa, com a rua Augusta ligando a praça do Comércio à do Rossio, é, em grande parte, ver uma cidade dos séculos XVIII e XIX, com a qual a São Luís histórica tem semelhanças. É também admirar-se da excepcional obra de reconstrução, de Pombal, ou, mais propriamente, de construção de uma nova da cidade no local da antiga, após o grande terramoto de 1o de novembro de 1755.
A este seguiu-se uma onda gigantesca e um grande incêndio. Tudo isso destruiu mais de um terço da cidade, fez desaparecer a maior parte dos traços da antiga cidade medieval de então e matou de 10 a 15 mil pessoas numa população entre 160 mil e 200 mil habitantes. O palácio real, o recém-construído edifício da ópera, a Casa da Alfândega, a Casa da Índia e o Terreiro do Paço, onde foi construída a praça do Comércio, transformaram-se em entulhos.
Pombal deu à nova cidade uma grande uniformidade arquitetônica. As ruas foram traçadas num formato quadriculado e os novos prédios foram erguidos em dimensões padronizadas, segundo o historiador inglês Kenneth Maxwell. A idéia era estabelecer um lugar de comércio e de governo, embora não tenha sido construído nenhum palácio real, colocando-se, todavia, como símbolo do poder do rei, a estátua eqüestre de D. José I na praça do Comércio. A Lisboa reconstruída é um monumento ao gênio criador dos portugueses.
Ah, sim, despistar-se é sair da pista, carregar é apertar, autocarro é ônibus, despenhar-se é cair de grande altura. Faz sentido.

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