26 de dezembro de 2010

A missa do galo


Jornal O Estado do Maranhão

Entre as muitas obras primas do conto produzidas por Machado de Assis, uma é de minha especial predileção, Missa do Galo. O conto é narrado em primeira pessoa por um adulto, Nogueira, incapaz de entender acontecimentos de muitos anos antes, na véspera de Natal, na casa de Meneses, escrivão, contando o rapaz de então dezessete anos. Era ali que Nogueira se hospedava quando vinha de Mangaratiba. Conceição, casada com o dono da casa, tinha trinta anos. Naquela noite especial, o escrivão “foi ao teatro”, senha que usava quando de suas idas à casa da amante, local de seus pernoites uma vez por semana. As pessoas da casa – a esposa, sua mãe e duas escravas – já estavam recolhidas. Nogueira ficou na sala à espera de um amigo com quem iria à Missa do Galo à meia noite em uma igreja próxima. Depois de algum tempo, Conceição veio à sala. Na conversa entre ela e o rapaz, nada acontece objetivamente, mas tudo, subjetivamente. O comportamento dela é ambíguo, como em muitas mulheres na obra ficcional de Machado, numa atmosfera de solidão, sensualidade e erotismo, situação não compreendida por ele em sua ingenuidade adolescente, senão intuitivamente ou nem dessa forma.
Como exemplificação da atmosfera do conto e da atitude de Conceição, basta este trecho: “De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos”.
Que Machado tenho localizado a situação na véspera do Natal, criando um contraste entre esta comemoração religiosa e a atitude de Meneses, indo dormir na casa da amante, e também a de Conceição, relativamente ao rapaz, mais nos faz perceber a maestria do Bruxo do Cosme Velho. Tão marcante é o clima da narrativa que às vezes nos esquecemos desse choque.
Falo desse conto porque as missas do galo não são mais celebradas à meia noite em nossa cidade, mas bem antes, às 8 horas ou mesmo às 7 horas da noite. O motivo está na a preocupação com a segurança dos fiéis. O horário tradicional, como ainda ocorre na maioria dos outros lugares, os exporia a assaltos e outros tipos de violência. Como não há segurança pública adequada em São Luís, o jeito é a antecipação. Felizmente para seus frequentadores, a televisão faz a transmissão da Missa do Galo celebrada pelo bispo de Roma. Pelo menos os que se contentarem com essa forma de estar presente ficarão satisfeitos.
Uma das explicações dadas pelos pesquisadores do assunto, de sua realização à meia noite, é esta. Seu início a essa hora, junto com o começo do dia de Natal, fazia com que, ao retornarem a suas casas, os fiéis pudessem ouvir os primeiros cantos dos galos na madrugada já adiantada, pois aquela não era celebração breve. Em Roma, ela vem do século V, na basílica de Santa Maria Maior. Hoje, no entanto, é feita na basílica de São Pedro. Outra explicação é a da lenda pela qual um galo teria cantado à meia noite de 24 de dezembro, anunciando a chegada de Jesus Cristo e teria sido essa a única vez em que o fez nessa hora. Outra ainda fala da batida das 12 badaladas da meia noite de 24 de dezembro. Cada lavrador de Toledo, na Espanha, matava nesse momento um galo, em memória daquele que cantou três vezes quando Pedro negou Jesus. A ave era, depois, levada até a Igreja como oferenda aos pobres. Cada um de nós pode escolher a melhor explicação a seus olhos. Mas a tradição existe e cativa cristãos e não cristãos.
É pena que, tão bonita como é, e tocante mesmo para os não crentes aculturados na doutrina católica, tenha de ter a tradição alterada porque bandidos bem humanos estejam à vontade na prática de seus crimes. Não sei se irão para o inferno. Não sei mesmo se esse é um lugar suficientemente ruim para abrigar esses tipos. Não sei sequer se o inferno existe. Mas existem cadeias e lá deveria ser o local de residência permanente deles de onde não deveriam sair nem para ir à missa algemados.

12 de dezembro de 2010

Sapo, queijo, nada


Jornal O Estado do Maranhão

Eu morei 10 anos em Brasília onde, entre muitas coisas boas de sua concepção urbanística, há um sistema de endereços capaz de permitir a alguém de fora, sem experiência prévia com a cidade, uma orientação fácil, sem perda de tempo e sem necessidade de perguntas a ninguém no meio da rua. Bastam explicações sucintas sobre a lógica do sistema, tarefa de não mais de cinco ou dez minutos. Falo especificamente do Plano Piloto.
A cidade foi concebida na forma de avião e construída sobre dois grandes eixos, referências fundamentais dos endereços. O eixo maior é o corpo, ou charuto, do avião. Na extremidade na direção leste, está a cabine do piloto, com a Praça dos Três Poderes, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto. Na outra, a oeste, uma grande Torre de TV, o Memorial JK, o Palácio do Buriti, sede do governo do Distrito Federal e diversos órgãos públicos. Entre os extremos estão os prédios dos ministérios e a catedral de Brasília. Cruza este eixo, mais ou menos na metade, outro, na direção norte-sul, como asas de um avião. Na intercessão, a primeira rodoviária do Distrito Federal que, de terminal interurbano, transformou-se em terminal de integração de transporte urbano.
A asa direita (lembremo-nos da posição da cabine) é a Asa Sul e a esquerda, a Asa Norte. A área de moradia está sobre estas ou estava exclusivamente, antes da expansão do Plano Piloto em relação ao projeto original de Oscar Niemeyer.
O sistema é cartesiano porque qualquer ponto na área delimitada por uma linha imaginária de ligação dos pontos extremos dos eixos, formando, com as linhas dos próprios eixos, um quadrilátero com os quatro quadrantes clássicos dos eixos cartesianos, está perfeitamente determinado, uma vez dadas as suas coordenadas. Por exemplo, eu morei na SQS 112. Tradução: SQ, Superquadra e S, Sul. Esta última informação me diz que o endereço é na Asa Sul. O SQ é a informação sobre o número da Quadra, que segue uma ordem numérica. Se partirmos das primeiras, próximas ao charuto, numeradas com o número dois (SQS 102 e SQS 302, esta atrás da primeira) e nos deslocarmos pela Asa Sul na direção de sua extremidade, veremos à nossa direita, ou lado oeste (W), as quadras SQS 103, SQS 104, SQS 303 e SQS 304, etc. – as duas últimas por detrás das outras – e à esquerda, ou lado leste (L), as SQS 203, SQS 204, SQS 403 e SQS 404, e dessa forma sucessivamente até as últimas quadras, SQS 116 e SQS 316, SQS 216 e SQS 416. Todo o raciocínio se aplica, espelhado, à Asa Norte. Isso é muito mais fácil de mostrar e entender com um desenho muito simples do que com palavras. É a velha luta com elas.
Dou essa volta toda por causa de uma história recente. Um empregado (ou colaborador, como é moda agora dizer?) de um centro de atendimento de uma operadora de telefonia (sempre elas) foi o causador de um mal entendido, transformado em piada na internet. Um cliente, necessitando da atualização do endereço de entrega de sua conta do apartamento novo, ligou para a telefônica. O atendente, nada de compreender o endereço e o significado de SQN 214. Será tão difícil assim, ver que N significa Norte? Quinze minutos de conversa e a coisa não desengatava. O consumidor pensou em algo parecido com o código fonético internacional em que cada letra é reconhecida pela inicial de uma palavra identificável no mundo inteiro. A letra S é representada por Sierra, Q por Quebec, N por November e assim por diante. Sem conhecimento seguro do assunto, o cliente utilizou outras palavras, assim: Sapo, Queijo, Nada, cujos iniciais são, como se vê, SQN. Pois bem, o sujeito da telefônica colocou como novo endereço Sapo Queijo Nada 214 e a conta foi enviada dessa maneira, felizmente com o CEP, informação suficiente para a correta entrega.
Haverá um custo tão alto assim, de treinamento dos empregados das operadoras, com a utilização de um simples mapa com o esquema de endereços de Brasília? A falta de preparação do seu pessoal será a razão de serem elas campeãs de reclamação nos órgãos de defesa dos consumidores?

Machado de Assis no Amazon