21 de novembro de 2004

A invisível

Jornal O Estado do Maranhão 
No meu tempo de criança, morria-se em casa, ou pelo menos ali se faziam os velórios. Era a época das mulheres encalhadas e do recolhimento aos conventos ou deportação para o Rio de Janeiro, forma certa de morte social, daquelas moças ou esposas que se “perdiam”, davam passos em falso, em compreensíveis momentos de fraqueza. Hoje em dia, não sei se para melhor ou pior, as mulheres não encalham, a não ser por vontade própria, não sendo isto propriamente um encalhe, em cujo caso não se diz que ela ficou pra titia, as “fracas” não são enviadas ao Sul ou obrigadas a se retirar deste mundo e de suas tentações, como castigo de seus pecados da carne, nem se morre ou se velam os queridos mortos no próprio lar onde, na época de meus pais, se nascia.
Lembro perfeitamente da morte de um vizinho. Apesar de doente havia meses, ele nunca fora, pelo menos na minha lembrança, a um hospital, dos poucos de então. O médico, sim, eu soube depois, o visitara diversas vezes, pois os tempos eram igualmente de eles consultarem os doentes em casa e não de estes correrem, como hoje, aos hospitais públicos superlotados e lá enfrentarem intermináveis filas, sem garantia de atendimento, no momento certo, de suas necessidades de remédio para o corpo e, muitas vezes, a alma ferida pelo sofrimento.
Estava eu em cima do muro comum com os vizinhos do outro lado, seu Sampaio e dona Antônia, empinando papagaio com um pequeno amigo – Zé Aniesse ou Zé Wellington Trovão? –quando alguém gritou que seu Regino, esse era o nome dele, estava morrendo. Com medo, mas também curioso, corri, ou corremos (seria Marcelo Teles o meu companheiro?) imediatamente, até lá.
Eu olhava assustado a agonia dele no quarto, sem saber como me comportar, querendo ir embora e ficar ao mesmo tempo, despercebido no meio do corre-corre geral, entre seus parentes, conhecidos e amigos. Pensava na razão de não tentarem salvá-lo, pois eu não via ninguém lhe dar um remédio qualquer, sem saber, naquela hora, das inúmeras e inúteis tentativas anteriores de curá-lo. Eu achava que sempre seria possível evitar a morte das pessoas conhecidas. Antes, morrer sempre fora algo distante, acontecimento com desconhecidos, abstrato, parte das histórias contadas pelos mais velhos, assunto de conversas dos adultos. Eu ainda ouvia ecos das histórias da “greve” de 1951, quando houve mortes de muita repercussão. Agora, era ali ao lado e eu estava presente, testemunha da aflição dos vivos, mas talvez não da aflição daquele homem, no minuto final. Voltei ao papagaio, mas não conseguia vê-lo bem lá no alto, apesar de refletir o brilho da manhã ensolarada, preso pela linha às mãos trêmulas do menino aqui embaixo.
Esse drama mudou na forma e na substância, como tudo muda o tempo todo, neste caso para pior. Hoje já não se morre mais em casa, próximo a parentes e amigos, consolados por eles ou pela fé e ritos da tradição, se fé houver na vida eterna após o fim da vida propriamente dita. Atualmente, pode se aspirar apenas a um tratamento em uma UTI, lugar onde dias e noites se confundem e confundem a mente e matam as lembranças, longe das referências que temos de nossos ilusórios pequenos e grandes triunfos, sempre, na essência, indistinguíveis uns dos outros, tratando o corpo e maltratando a alma e a quem amamos, sem chance de rebelião, prisioneiros de alheias vontades, angustiados pela estranheza e frieza do lugar e talvez das pessoas.
A morte comum tornou-se invisível, anônima, solitária, secreta. É tão-só a sua notícia. Nem os outros doentes lhe servem de testemunha, presas eles igualmente dos sedativos e do monitoramento de aparelhos com seus tubos, gráficos digitais e eternos bips.
Não seria possível humanizar esse fim inevitável?

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