27 de outubro de 2002

Em torno da casa

Jornal O Estado do Maranhão 
Toda minha infância e adolescência, eu as vivi em um bangalô no Monte Castelo, em frente ao Senai, na avenida Getúlio Vargas, parte do Caminho Grande dos tempos antigos, de onde somente saí para constituir minha própria família. Tenho lembranças muito tênues da mudança para lá, no início dos anos cinqüenta, vindos nós da rua Cândido Ribeiro, talvez em 1952. Tento deduzir o ano a partir das histórias ouvidas depois dos mais velhos em bate-papos familiares. Quase todos os que poderiam, hoje, dar-me alguma informação já retornaram ao pó, têm a memória enfraquecida pelo tempo e pela vida ou também não se lembram bem.
Uma daquelas narrativas era sobre a ocasião de nossa ida para o Areial, como era chamado o bairro, classificado de fim de mundo por muita gente. Falava, pelo que eu podia perceber das conversas, da morte de meu avô materno, Luís de Melo Raposo, poucos dias antes do nascimento, em dezembro de 1949, de meu irmão Luís Carlos. Ele devia ter uns três anos quando nos mudamos. Era o terceiro degrau, eu o segundo, na escadinha de irmãos que iria aumentar todos os anos até completar sete batentes.
A outra história era sobre o quinto degrau, José Ricardo. Eu ouvia dizerem ser ele o primeiro a vir à luz naquelas lonjuras, em 1953, e ser Cursino, o quarto na escada, o último a nascer na casa do centro da cidade, em dezembro de 1951. Portanto, o ano mais provável da mudança é 1952 mesmo.
Algumas vezes, eu bem pequeno, fui com meus pais visitar a casa, durante a construção. Eu olhava aquilo tudo e pensava, não tão consciente como digo agora, se seria possível morar naquela confusão de barro e cimento. Digo ter visto as obras, mas, será que as vi de verdade? De tão imprecisa a lembrança, não posso dizer com certeza. Nunca podemos estar totalmente seguros de muitas de nossas recordações. Elas podem ser apenas construções ou reconstruções feitas a partir de coisas ouvidas após aquilo que achamos ter vivido. De uma certa forma, podem ser, tão-somente, um pedaço das recordações coletivas da família, incorporadas à imaginação individual de tão repetidas.
Certeza tenho, sim, da avenida sem asfalto, com a poeira vermelha acumulando-se por todos os lugares da casa, nas camas, nos móveis, nas mesas, em tudo e em todos, e do bonde elétrico se arrastando em direção do Anil, com seu som agudo e penetrante nascido do atrito do ferro das rodas contra o dos trilhos. Andava quase com a mesma lentidão das carroças puxadas a burro que circulavam o dia inteiro pelo bairro todo, conduzidas pelos carroceiros de chicotes de couro às mãos. Nunca pude saber se o estalo seco vinha do golpe vibrado no ar ou no próprio lombo dos animais.
Sobre aquelas balizas metálicas, caminhos de ferro estendidos por boa parte da acanhada cidade, iríamos, poucos anos depois, colocar lâmpadas velhas para serem trituradas à passagem do veículo pesado e vagaroso. O pó de vidro resultante seria a matéria prima do cerol que usávamos nas linhas dos nossos papagaios, nas batalhas aéreas de fins de semana. Mas, na maioria das vezes, era mesmo em pilões de ferro que preparávamos o material dessa emocionante guerra feita de linha, papel, talas de bambu e sangue dos dedos feridos pela linha cortante.
Os gritos de “lá vai” anunciavam a vitória nas lanceadas. Era quando um dos papagaios, vibrante e desafiador até certo momento, no seguinte como que se abandonava à derrota, ao sentir cortada pela linha de um outro a que o sustentava, indo cair lá longe, depois de uma lenta, leve e longa dança. Os meninos das ruas, com suas compridas varas, corriam para apanhá-lo, ressuscitá-lo e novamente colocá-lo soberano nas alturas, por breve tempo.
Sempre que me ocorre pensar naquela casa e em fatos de minha infância passados em torno dela, lembro-me destes versos de um poema do escritor Luiz Alfredo Raposo, meu primo, dedicado à minha mãe nos seus oitenta anos: “Com suas saias godês e aquele sorriso americano,/ela era princesa e castelã da Casa do Areial.”

20 de outubro de 2002

Machado e o Maranhão

Jornal O Estado do Maranhão 
Era freqüente a citação de escritores e coisas do Maranhão por Machado de Assis, nos seus artigos na imprensa do Rio de Janeiro. Jean-Michel Massa, autor de A juventude de Machado de Assis, observando essa ocorrência, ao coligir e anotar várias crônicas de Machado para os Dispersos de Machado de Assis, tentou explicá-la dizendo haver uma benevolência do escritor carioca com o Grupo Maranhense e o Estado, por causa de sua amizade com Joaquim Serra.
No entanto, conforme argumentei há meses, aqui, melhor explicação está na admiração de Machado pelo talento do Grupo. Na época, o Rio de Janeiro era ainda uma cidade provinciana, embora experimentasse um acelerado crescimento. O Maranhão, por seu lado, gozava de prestígio literário em todo o Império, em boa parte originado no surto de crescimento econômico desde o final do século XVIII. Assim, não deveria causar surpresa um escritor do Rio de Janeiro admirar os maranhenses, a ponto de mencioná-los repetidas vezes.
Independentemente, porém, desses motivos, as referências são interessante. Uma das mais curiosas foi a de um morador de Viana, feita em 1864, no dia 11 de setembro, no Diário do Rio de Janeiro. O vienense vira, ou imaginara ver, lágrimas nos olhos de uma imagem de Santa Teresa. Machado deixa escapar uma ponta do ceticismo que, com o passar dos anos – ele tinha, então, 25 anos – se tornaria mais acentuado e amargo, ao comentar: “Fora longe se continuasse a referir estas ocorrências que puseram em alvoroço os crédulos vianenses.”
No dia 7 de março de 1865, no mesmo jornal, ele dá uma boa notícia. Os manuscritos dos dramas Beatriz di Cenci e Boabdil, de Gonçalves Dias, considerados perdidos, haviam aparecido. Incomum foi o modo como foram encontrados. Sua viúva, Olímpia da Costa Gonçalves Dias, colocara um anúncio pedindo a entrega de qualquer papel do poeta maranhense que pudesse estar em mãos de particulares. Machado diz que, vinte e quatro horas depois, um escravo estivera na casa de Olímpia e lhe entregara uma caixa contendo os dramas bem como várias poesias dele e alguns de seus trabalhos sobre educação pública. Em seguida, desaparecera. Afirma, também, ter a imprensa do Maranhão dado a notícia antes da do Rio.
A notícia seria retificada pela viúva, conforme a crônica do dia 21, do mesmo mês de março. A devolução se dera, em verdade, somente cinco dias depois da colocação do anúncio, tendo sido noticiada primeiramente pela imprensa carioca, a 5 de fevereiro. Machado atribui seu erro, quanto ao número de dias decorridos até a entrega, à imprensa do Maranhão, mas admite ter se equivocado a respeito da prioridade da imprensa do Maranhão.
Haverá melhor dia para comentar uma sátira com o título O dia de Finados do que o próprio Dia de Finados? Machado o fez em 1877, na Ilustração Brasileira. Depois de alguns comentários sobre essa peça do maranhense Artur Azevedo, ele acrescenta que num ponto o autor havia ido longe demais, quando mostra uma jovem mulher, abatida pela dor da morte do marido, casando-se novamente um ano depois. “A culpa não é da viúva, é da lei que rege esta máquina, lei benéfica, tristemente benéfica, mediante a qual a dor tem que acabar, como acaba o prazer, como acaba tudo. É a natureza que sacrifica o indivíduo à espécie”. Bem machadianas, essas observações.
Em 1888, Machado narra, em 21 de maio, na Imprensa Fluminense, poucos dias, portanto, após a Abolição da Escravatura, um fato passado em Bacabal. A lei da libertação fora obedecida em todo o Império, menos naquela cidade. Diz que, se morassem no Maranhão alguns ex-escravos do Rio de Janeiro que, alforriados anteriormente, adquiriram seus próprios escravos, menor seria sua melancolia pela perda destes, pois, sendo ex-senhores, agora, depois da Lei Áurea, não deixariam de ser ex-escravos. Seu comentário: “Bem diz o Eclesiastes: Algumas vezes tem o homem domínio sobre outro homem para desgraça sua. O melhor de tudo, acrescento eu, é possuir-se a gente a si mesmo”.

13 de outubro de 2002

Reforma política

Jornal O Estado do Maranhão
Os Estados mais populosos do Brasil, particularmente os do Sul, sempre se queixaram de sub-representação na Câmara dos Deputados. É comum ouvir-se dizer, de um eleitor do Acre, para ficarmos no exemplo citado com mais freqüência, que ele vale diversas vezes um do Estado de São Paulo porque, para ser eleito neste, um deputado federal precisa de muito mais votos do que no outro. Se, no caso paulista, por hipótese, forem necessários cem mil votos para eleger um desses representantes e no acreano apenas dez mil, então, claro, o eleitor do Acre equivale a dez sulistas.
Essa é, de fato, a situação. Ela surge de uma limitação imposta pela Constituição federal, com respeito à representação dos Estados na Câmara. O número de representantes de cada um aí é estabelecido na proporção direta, em princípio, de sua população. A maiores populações, portanto, deveriam corresponder, linearmente, maiores representações. Caso não houvesse limite algum, uma unidade da federação com uma população dez vezes maior do que a de outra teria uma bancada também dez vezes maior. A Constituição federal, todavia, no seu artigo 45, parágrafo primeiro, determina que as bancadas não podem ter menos de oito ou mais de setenta deputados. Esse dispositivo causa uma quebra na proporcionalidade estrita, com respeito aos Estados mais e menos populosos.
No primeiro caso, o limite cria uma sub-representação, fazendo com que, em lugar de São Paulo ter, vamos supor, oitenta deputados, número diretamente proporcional á sua população, ele fique no limite de setenta. No caso das unidades federativas menos populosas, dá-se o inverso. Em vez de terem um ou dois deputados, na proporção direta de suas populações, eles acabam ficando com oito, o número mínimo.
Mas, a questão não se esgota em apontar essa distorção, porque a intenção do constituinte foi exatamente essa, de contrapor ao poder econômico estadual que, na maioria dos casos, anda junto com o tamanho da população, uma limitação política, expressa no tamanho da representação dos Estados na Câmara. Não fosse assim, o poderio econômico dos mais populosos seria reforçado pela superioridade numérica de sua representação, criando, dessa forma, a possibilidade de um indesejável desequilíbrio federativo.
Por todas essas razões, é uma ironia a eleição, justamente em São Paulo, de deputados com cerca de duzentos ou trezentos votos. Embora por motivos diferentes dos relacionados aos critérios de estabelecimento do número de deputados de cada Estado, esses eleitores paulistas passaram a valer muitas vezes mais do que os acreanos. A razão está no arcaico sistema de eleição proporcional ainda adotado no Brasil e na Finlândia, apenas. Um candidato, Enéas, de um partido nanico, teve uma quantidade muito grande de votos, sem que isso representasse necessariamente apoio ao partido. Tratava-se somente de um tributo popular ao histrionismo do candidato.
Ao obter uma grande votação, Enéas “elegeu”, na carona de seu bom desempenho individual, vários candidatos de seu partido. No Maranhão, pessoas com uma boa votação não se elegeram, enquanto outras, com pouquíssimos votos, ganharam um mandato. Como, aliás, acontece em todos os pleitos. A aberração surge desse sistema de eleição proporcional, pelo qual um partido que conte com um “puxador” de votos é capaz de eleger outros de seus filiados com uma quantidade pequena de sufrágios, deixando de fora pretendentes de outros partidos com mais votos, mas sem os tais “puxadores”.
Acredito que já exista no país um consenso, reforçado pela ocorrência dessa distorção, que o povo não entende, sobre a necessidade de uma reforma político-partidária. Poderíamos adotar o sistema distrital de escolha dos deputados, a fidelidade partidária e o financiamento público das campanhas. Essas seriam medidas indispensáveis para dar mais estabilidade e representatividade ao sistema obsoleto atualmente em vigor e facilitar a implantação de outras reformas necessárias ao Brasil.

6 de outubro de 2002

Democracia em marcha

Jornal O Estado do Maranhão
O Brasil mostra ao mundo, ao realizar as eleições de hoje, a solidez e a maturidade de sua democracia. Quem viveu, como eu vivi, os anos ditatoriais após o golpe de Estado de 1964 e, especialmente, os seguintes à edição do AI-5 em dezembro de 1968, pode avaliar a importância de termos hoje uma disputa eleitoral com a perspectiva de vitória de um candidato de um partido, o PT, cujas origens no movimento sindical, contudo, não gera rumores de intervenções das Forças Armadas no processo político nem de mudanças nas regras da disputa nem de interferência aberta ou oculta dos Estados Unidos. Mas, já foi assim.
Uma afirmação como essa, pode parecer estranha às novas gerações. Elas cresceram vendo a realização periódica de eleições livres, sem questionamentos de seus resultados. Os jovens não conheceram, a não ser nos livros de história, os chamados senadores biônicos, eleitos indiretamente por indicação do presidente da República, este, por sua vez, um general selecionado nos quartéis e confirmado formalmente no Congresso Nacional controlado; os governadores escolhidos indiretamente pelas Assembléias estaduais, as quais tinham capacidade nula de dizer não aos desejos da caserna; o bipartidarismo artificial criado à força, no qual somente o partido do governo, a Aliança Renovadora Nacional, Arena, podia triunfar, sob pena de mudarem-se as regras da eleição a fim de transformar a derrota em vitória; a cassação de mandatos e de diretos políticos de parlamentares de oposição e, até, de governistas rebeldes; a deposição de ocupantes do Executivo; a perseguição a magistrados, aos movimentos sociais e ao estudantil; as prisões arbitrárias seguidas de tortura; a censura prévia à imprensa e a todas as formas de expressão artística; e muitas outras arbitrariedades desconhecidas hoje.
A volta à democracia, porém, não esteve livre de dificuldades. Passada a euforia do crescimento econômico acelerado do fim dos anos sessenta e primeira metade dos anos setenta, para o qual contribuíram várias circunstâncias favoráveis nos mercados internacionais, veio a crise do petróleo, decorrente do conflito entre árabes e israelenses, que, depois de uma pequena defasagem, afetou negativamente a economia brasileira. A pouca legitimidade política conferida ao regime militar pela expansão econômica anterior, desapareceu. Veio daí o processo de abertura “lenta, gradual e segura”, conforme expressão do general Ernesto Geisel, quando ocupava a Presidência da República.
É preciso mencionar, para fazer-se justiça, o papel de grande importância desempenhado pelo presidente José Sarney na condução do país durante esse processo de transição rumo à plenitude do estado de direito. Em um momento em que nossas instituições, mal recuperadas de um longo período de mutilação e castração, ainda estavam tentando reafirmar sua importância para a vida do país, ouvia ele a toda hora um mau conselho. Era o de “dar um murro na mesa”, atitude ensaiada pelo general Figueiredo, quando presidente, com resultados desastrosos. A compreensão, pelo presidente Sarney, de que a consolidação democrática deveria ter o menor grau possível de agitação institucional, permitiu-lhe, em meio a grandes dificuldades na economia, ter um comportamento sereno e conciliatório. Ele foi capaz, assim, de entregar a presidência a seu sucessor tendo a certeza da impossibilidade de qualquer retrocesso. Essa, penso, foi sua grande obra política.
Neste momento, o mundo nos admira pela nossa estabilidade institucional democrática, mas também econômica, esta tornada possível pela outra. Tornamo-nos imunes às desconfianças e ao nervosismo do mercado. É prova de nossa maturidade como nação. Além disso, podemos ter orgulho de sermos o único país a ter uma eleição totalmente informatizada, com acentuada diminuição da probabilidade de fraude como a da Florida.
Isso tudo nos autoriza a apontar os grandes vencedores do pleito de hoje: a democracia e a sociedade brasileiras.

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