11 de janeiro de 2004

As Fichas

Jornal O Estado do Maranhão 
A polêmica sobre o fichamento de visitantes brasileiros na chegada aos Estados Unidos e de americanos ao Brasil mostra bem o acerto da observação de Machado de Assis sobre a facilidade de suportar-se com paciência a cólica alheia. O calo apertado no pé dos outros provoca talvez um leve bocejo e só.
Enquanto apenas os brasileiros iam ser obrigados a submeter-se a esse procedimento, o problema não existiu para o governo americano ou pareceu tão-só o resultado de lamentações de gente pobre e atrasada. No entanto quando o juiz federal titular da 1ª Vara na Seção Judiciária de Mato Grosso, Julier Sebastião da Silva, provocado pelo Ministério Público federal, tomou a decisão de colocar em prática o princípio da reciprocidade, obrigando o Executivo brasileiro a proceder como os americanos, passou a ser algo discriminatório, mas somente porque praticado aqui.
Qualquer pessoa de bom senso há de concordar com este raciocínio simples. Se a idéia de fichar os visitantes era boa antes, quando foi planejada pelas autoridades americanas com o fim de abranger brasileiros e cidadãos de diversos países, então não há razão para deixar de sê-lo agora só porque inclui americanos em visita ao Brasil. Deveria, sendo assim, ter sua aplicação mantida pelos dois lados. Se contudo não era algo razoável e não havia motivação justa para sua adoção, então certamente é um contra-senso insistir em sua manutenção como vem sendo feito. Haveria, pois, de ser revogada imediatamente por ambos. Elementar! Em qualquer hipótese não faz sentido permitir seu uso por um mas não pelo outro.
Um porta-voz do governo americano, Richard Boucher, depois de reconhecer o direito do Brasil de identificar quem quer que chegue ao país, seguindo o caminho aberto pelos Estados Unidos, disse haver solicitado a nossas autoridades procedimentos mais rápidos e cômodos. É um pedido razoável. Mas como fazer nossa burocracia agir com mais eficiência a fim de não estressar os turistas americanos? É muito simples. Basta o fornecimento por Tio Sam ao Brasil, sem custo algum, da tecnologia necessária ao aperfeiçoamento do nosso sistema de identificação. Só não pode ser da mesma qualidade da utilizada na apuração de eleições presidenciais na Florida.
O governo do Rio de Janeiro ameaça recorrer da decisão do juiz – se já não o fez – ante o olhar indeciso do executivo federal. Argumentam que o fichamento afastaria potencias turistas americanos dispostos anteriormente a vir gastar seus preciosos dólares no Brasil. Não sei se os cariocas têm razão, visto ser essa afirmação apenas uma suposição sem base em pelo menos uma única experiência anterior. Sei que ao utilizar-se um argumento de cunho unicamente utilitarista como esse perde-se o essencial da discussão.
A questão não pode e não deve ser vista exclusivamente do ponto de vista econômico. As disputas nesta área acabam se resolvendo de uma forma ou de outra. Suas seqüelas podem ser facilmente compensadas através de acertos adicionais mais adiante, a depender da eficiência econômica de cada um e de sua força relativa na arena internacional. Mas a construção de uma nação e o orgulho de um povo não são feitos apenas de crédito, débito e força bruta ou não são principalmente construídos dessas coisas.
Há um forte simbolismo em gestos que em algumas circunstâncias seriam encarados como triviais, corriqueiros, prosaicos, mas em outras não, como nessa de cruzar fronteiras entre nações e receber o devido respeito que é um importante alicerce na construção e reconstrução do sentimento de dignidade e auto-respeito de uma nação. Aqueles símbolos não permitem a instalação exclusiva do interesse econômico no comando das relações de qualquer país com os outros. Em algumas ocasiões mais vale sentir fome e frio do que engordar e se aquecer na indignidade disfarçada de espírito prático e objetivo.
Americanos e brasileiros serão capazes de compreender essas necessidades sem mais conflitos. O leitor pode colocar suas fichas nessa oposta.

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