13 de abril de 2003

Dependente do boi

Jornal O Estado do Maranhão 
Tem gente que olha para as rádios AM com uma atitude de superioridade. Segundo esse pessoal, elas não passam de um lugar de desinformação ou de informação superficial e incompleta, de uma conversa entre vizinhos. Essa turma acha-lhes todos os defeitos do mundo, sem se lembrar dos bons serviços prestados diariamente por elas. A vida inteligente teria de lá desaparecido há milênios, sem esperança de retorno nas próximas mil gerações. É claro, porém, não ser possível concordar com esse preconceito. Este, sim, nasce da desinformação, muito comum nos nossos dias.
Todavia, é verdade também que algumas vezes ouvem-se nelas coisas inusitadas, como uma pergunta formulada por um ouvinte de um programa muito popular que eu vinha ouvindo outro dia no rádio do carro, a caminho do serviço: “A brincadeira de bumba-meu-boi pode provocar dependência psicológica em seus brincantes?”.
Expressa aqui e agora, assim dessa forma, sem a impostação de voz solene dele ao telefone, a pergunta não parece tão transcendental. Mas é. Foi, posso dizer, como se o motorista ao meu lado, ante um obstáculo imprevisto, tivesse freado repentinamente o carro para evitar um acidente. Um travão, como diriam nossos irmãos portugueses, suficiente para interromper as profundas reflexões filosóficas que eu vinha fazendo a respeito da importância do cafezinho no desempenho do setor público. Foi essa a minha sensação, tal o inesperado da interrogação. Houve, desse modo, um despistamento do meu raciocínio anterior. Eu nunca mais consegui recuperá-lo, apesar de muitas tentativas.
Claro, todo mundo conhece os males causados às pessoas pela dependência psicológica em muitas coisas, nem sempre mencionáveis de público. Um deles resulta em inconvenientes cuja esperança de eliminação está no viagra. Contudo, há um outro, do tipo que pode causar prejuízos incalculáveis, sem possibilidade nenhuma de reparo. É a do sujeito viciado em sexo.
Um conhecido ator de filmes americano confessou publicamente sua tentativa de livrar-se desse vício. Aliás, até ser advertido por sua gentil genitora, após uma festa dada por ela para ex-colegas de turma, na California, em comemoração aos cinqüenta anos da formatura delas em Direito, ele considerava isso um bem, com a concordância de algumas de suas amigas, inimigas por sua vez das primeiras dez esposas dele. Não se sabe ainda o resultado do tratamento.
Mas, voltando à vaca magra, isto é, ao boi magro. Eu jamais havia pensado na brincadeira do bumba-meu-boi como capaz de causar problemas a quem quer que fosse, acompanhada ou não de cachaça, um fator agravante do mal, segundo as palavras do ouvinte. Em verdade, alguém lhe havia feito anteriormente a mesma pergunta transcendental e ele estava agora tentando respondê-la na AM da maneira mais científica possível, sem preconceitos, de maneira totalmente independente.
O brincante que não resiste ao boi (não me venham com insinuações sobre a macheza desse homem nem pensem em alguma vaca tresmalhada envolvida nisso) apresenta um comportamento semelhante ao dependente de qualquer droga. De manhã cedo, quando sua mulher o procura e encontra somente o travesseiro vazio, ou a rede, um tiroteio começa: “Assim não agüento mais. A gente dá as costas e ele some. Esse sem-vergonha foi pro boi de novo. Esse negócio de dependência é papo furado. Ele não passa de um safado. Isso é desculpa pra tá na rua toda hora. Com essa história de boi ele vai acabar com chifres. Eu mostro pra ele.”
No entanto, o problema é sério. Quando a situação chega a esse ponto, não há outra saída senão procurar ajuda de um profissional especializado no tratamento da doença. Será tão difícil encontrar quem esteja capacitado a tratar desse distúrbio psicológico?
­– Doutor, o senhor não vai acreditar, mas eu tenho dependência psicológica com respeito à brincadeira de boi, agravada pela cachaça.
– O senhor também não vai acreditar, mas eu não trato desses casos. Sou especializado em vacas de presépio.

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