18 de fevereiro de 2001

Almas vivas

Jornal O Estado do Maranhão
Leio nas folhas, vejo na televisão que, por falta de pagamento, vão despejar os mortos dos cemitérios do Gavião, São Cristóvão, Maracanã, Vila Maranhão, Tibiri, Santa Bárbara, Anjo da Guarda e São Raimundo. “A medida, apesar de funesta, é amparada por leis federais e municipais”, diz O Estado do Maranhão. Deve ter mesmo o tal amparo legal. É um pressuposto do contrato de terceirização da administração dos cemitérios que a prefeitura de São Luís assinou com a empresa Centurion.
De qualquer modo, quando se pensava que os mortos estivessem na paz eterna, eis que resolvem perturbá-los. Centurion é a denominação inglesa de centurião, comandante de uma centúria que, como sugerido pelo nome, era uma centena de soldados que formavam uma companhia nas tropas romanas. Haverá aí uma insinuação de que a ameaça de despejo é pra valer, podendo a empresa, se necessário, convocar o poder das armas para fazer cumprir a “funesta” lei?
Como se sabe, as irrevogáveis leis da natureza demitem todos da vida, mais dia menos dia, e nos mandam, pobres mortais, de retorno ao pó e ao nada. É verdade que uns poucos resolvem se antecipar, antes de mandados embora, evitando o curso comum das coisas: nascimento, crescimento, envelhecimento e morte natural. Esses são a exceção à regra do apego forte e instintivo à vida. Devem ser também os que maior fé têm na vida depois da morte. Não fosse assim, não se apressariam em aliviar seus sofrimentos terrenos.
O que não se sabia era de uma segunda morte, por culpa dos vivos. Alguns destes são tão vivos que não pagam ninguém. Por que pagariam, então, a dívida dos mortos? Estão lá, os amados defuntos, gozando de merecido repouso, certos da ressurreição e da vida eterna. De repente, alguém lhes lança aos ossos a pecha de caloteiros e os ameaça de despejo! É morrer novamente, a morte dentro da morte.
Por força dessa situação teremos que mudar nossa idéia de última morada. Antes supúnhamos que fosse o lugar onde ficaríamos para sempre, depois de passar desta pra melhor. Ou onde ficariam eternamente as lembranças daquilo que fomos. Lá, os que nos sucedessem na curta e bela aventura da vida, poderiam, enquanto vivessem, velar por nossa memória. As sucessivas gerações velariam, da mesma forma, até a consumação dos séculos. Vemos, agora, que pode ser apenas o lugar aonde chegamos mais recentemente. A última morada, sim, mas só até sermos mandados para outro local.
Não posso deixar de lembrar do romance Almas mortas, do escritor russo Nicolai Gógol. Na Rússia, de antes da revolução comunista de 1917, a riqueza de um proprietário rural era avaliada pelo número de almas, ou servos, que possuía. Por sugestão do seu compatriota, o poeta Púchkin, Gógol escreveu a história de um daqueles proprietários, que compra almas mortas por baixo preço e contabiliza-as, como vivas, por muito mais. Com esse aumento fictício da riqueza obtém financiamentos do governo, multiplicando sua fortuna.
Aqui em São Luís, parece dar-se o inverso. Em vez de aumentar as almas, a empresa deseja, pelo despejo, diminuí-las, com respaldo da lei. Mas só na aparência. O que ela quer mesmo são novas almas vivas, pagantes pontuais e, de preferência, caladas. Do tipo que não reclama de nada. Na ficção como na vida, ou melhor, na morte, igual é o desejo de aumentar o patrimônio. O que não deve surpreender porque, afinal de contas, empresas não investem para salvar almas, mas, como podemos ver nesta situação, para serem salvas por elas que podem gerar bons lucros.
Ao fim, uma boa ação poderá resultar dessa história. Pode ser, como na poesia de Alfonsina Storni, que os mortos estivessem mesmo enfastiados do cantar das aves dos cemitérios e quisessem mudar de ares.

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