6 de março de 2016

Populismo, essa outra Zika



Luiz Alfredo Raposo

Economista. Bancário aposentado

          Os mensalões e petrolões, produtos da engenharia pesada petista, inauguraram um ramo novo da grande indústria nacional. Mas ramo tão mal cheiroso, tão malsão, que se formou entre os brasileiros, com força e ronco de tsunami, uma demanda de saúde pública muito específica: de grandes obras de saneamento... moral. Demanda que terá de ser atendida com urgência. E pelo sucessor desse governo atual, que deve acabar antes do tempo. Por falta de chão. Tão enleado está ele em falcatruas de deixar incrédulo um são Tomé que as visse com seus olhos; e tão mau gerente (meteu o país numa crise econômica cruel, numa entaladela de que só revela todo dia não ter a mínima ideia de como nos livrar), que muito em breve não sobrará vivalma solta na rua para lhe dar apoio. E aí, nem será preciso como no samba de Blecaute cutucar por baixo, que ele cai. E vira uma página infeliz de nossa história...

          Quando este dia chegar, teremos de pegar na mão do Brasil, ajudá-lo a levantar-se e voltar a caminhar sem tropeçar. Urgente é nos prepararmos, e a primeira tarefa é topar, no terreno ideológico, a briga que nos propõe o populismo, do qual o petismo é a fina flor. A esperança é que, em tal disputa, as melhores ideias se propaguem por círculos, como pedras lançadas num lago. Quem achar uma que puder ajudar, que se ganhe em discutir– que a apresente bem corregida. É o dever intransferível e inadiável do intelectual progressista. E a razão de ser dos blogs e das revistas de opinião. Pois convenhamos: ai da democracia, se ela não fosse o regime da opinião. Se as pessoas não se deixassem convencer de boas razões; se só enxergassem seus interesses imediatos e se mostrassem alérgicas à discussão; se fechassem os olhos à realidade, e não soubessem estabelecer relações de causa e efeito entre decisões e resultados. Se contasse unicamente a força bruta da pirâmide sócio-demografica. Fosse assim, a democracia, pela qual minha geração lutou e sofreu, teria sido um sonho vão e não valeria a pena fazer blogs nem revistas. Nem ler o que neles se escreveu. E o Brasil seria para sempre um grande Haiti.

          Dito isso (mãos à obra!), quero submeter à discussão uma interpretação (não sei se muito pessoal) do fenômeno do populismo. E começo pelo óbvio, de que o populismo, essa zika política latino-americana, prospera no ambiente pantanoso das desigualdades. Em países como os nossos, de fatura colonial à base da dominação étnica, mas onde o grupo dominante chegou, ficou e assumiu uma identidade nacional nova[1]. Sua economia terminou cindida em duas: de um lado, um setor moderno, a que se liga uma fração minoritária da população; de outro, um setor dito, aqui, por contraposição, arcaico, que abriga a maioria sub-proletária. Constitui-se esta do excesso permanente de mão de obra, do exército de trabalhadores que nunca tiveram acesso firme ao mercado de trabalho do setor moderno. E que, em consequência, carecem dos bônus que estão deste outro lado. Das condições de vida que só uma sociedade moderna pode oferecer. A clivagem está aí: na dualidade do moderno e do arcaico. E não, como maldosa e interesseiramente garganteia a turma populista, na oposição entre “eles e nós”. Entre elites e povo, ou pior ainda, entre brancos e não-brancos.

          Enfocando especificamente o Brasil: até a metade do século que passou, o setor arcaico, resumido à roça, se bastava com sua economia de subsistência. E fazia as vezes de um enorme reservatório de mão de obra, “regulando” (para baixo) o nível de salários, na economia moderna. A dualidade, então, era em certo sentido funcional. Mas a situação se inverteu espetacularmente, com a urbanização da população, combinada com um crescimento demográfico explosivo, de 1950 para cá. Em números redondos, naquele ano éramos 52 milhões; hoje somos 200 milhões. A zona rural alojava 70% dos brasileiros; atualmente, são pouco mais de 15%. O fenômeno, na prática, significou uma migração em massa do Brasil arcaico para a periferia das cidades. Neste período, de menos de três gerações, as cidades brasileiras ganharam cerca de 150 milhões de novos habitantes, sobre os 16 milhões iniciais. A população rural diminuiu ligeiramente, em termos absolutos. Parte da urbanização (pequena) é mero efeito estatístico da promoção de povoados a vilas ou cidades. O que não invalida a constatação: em gigantismo de escala, transumância tal só encontra paralelo, na história humana, no que está a ocorrer, de duas décadas para cá, na China e na Índia.

          O resultado é que se criou um antagonismo entre os dois pedaços, pois o ambiente suburbano torna, a rigor, impossível a economia de subsistência. E leva o Brasil arcaico a buscar reproduzir-se, nutrindo-se do excedente, das sobras do Brasil moderno, num caso de mais-valia às avessas. Mas há algo além: a transferência para a cidade implica a adoção, em algum grau, dos seus modos de vida. Daí que a urbanização acelerada tenha adquirido um aspecto patológico de inchaço. Colocou sobre a sociedade, em especial sobre o poder público, demandas impossíveis de atender a tempo e a hora. A infraestrutura e os serviços urbanos ficaram gritantemente insuficientes, assistiu-se à proliferação de toda sorte de aglomerados habitacionais subnormais (favelas, morros, alagados...), ao aumento alarmante da violência urbana, da anomia e da tensão social...

          Não adianta continuar o desenho familiar. Nem discutir, agora, as razões de tamanho êxodo. Muito menos querer fazer, como alguns bem que gostariam, um júri post mortem da velha ordem agrária. Quaisquer que tenham sido as causas do fenômeno, uma coisa é certa: nunca que a roda gigante da história irá girar ao contrário e levar a população de volta ao campo. A única tentativa recente nesse sentido deu na novela macabra do kmer vermelho, no Cambodja.

          O que vale é a pergunta: que pensam dessa dualidade, ou melhor ainda, como têm, na prática, reagido a ela as principais tendências políticas? No período pós-regime militar, a revolução sócio-demográfica já ganhara corpo e aguçara-se a consciência dos dois Brasis. Assim é que, na Constituinte de 1987-88, dominada pelas chamadas forças de centro-esquerda, a “universalização dos direitos” passara ao primeiro plano das preocupações. Começando pelos direitos políticos, foi estendido aos ágrafos (ou analfabetos como se dizia antes das delicadezas atuais...) o direito de voto. E bem assim, aos maiores de 16 anos. No terreno dos direitos sociais, procurou-se em particular a proteção social à camada sub-proletária E para algumas áreas, a Constituição criou mecanismos (como o SUS, na saúde) que puderam começar desde logo a ser implantados. Em outras, os novos direitos (p. ex., ao ensino público fundamental) ficaram algum tempo no papel, pela ausência de tais dispositivos operatórios. Uma terceira categoria, como o seguro-desemprego, contemplava o contingente ligado ao setor moderno.

          Na Constituição de 1988, tenho (e não apenas eu) a impressão de ver a contraluz a marca d’água do paternalismo. Ou melhor, a projeção de uma espécie de populismo elegante, belle époque: um bando de cavalheiros patrícios ansiosos por reconhecer uma dívida social (para com os excluídos), a ser honrada pelo Estado. Tocante de generosidade, Constituição Cidadã, mas descuidada de orçamento e de reformas urgentes. Por isso, como eu acabo de chamar, à falta de melhor, populista belle époque[2]. E criadora de nós no campo da despesa pública, ainda hoje carentes de desate, segundo discussões recentes de especialistas... Depois dela, veio a aventura Collor, finda a qual, assumiu o poder federal e lá se manteve até a epifania lulista um terço de tropa com uma visão diferente, friamente sociológica e rica de implicações práticas. A dualidade, sim, era o grande PROBLEMA. E a solução só podia ser superá-la pela via da modernização do país: da incorporação do setor arcaico ao setor moderno. Sabia, com (pa)ciência histórica, esse grupo que a solução requereria duas ou três gerações e, por isso mesmo, precisaria ser encarada desde logo. Resultou numa política em duas frentes:

          -no horizonte do curto prazo, a construção de uma “rede de proteção”, que, de um lado, moderasse a tensão social e, de outro, preparasse o contingente sub-proletário para a gradual inclusão no setor moderno;

          -na perspectiva do longo prazo, as “reformas” modernizadoras. Modernizadoras no sentido de favorecer a dinamização do setor moderno, como condição para uma mais rápida absorção do setor arcaico.

          O trabalho de política social feito naquele período, com o programa de bolsas, a universalização do ensino fundamental (Fundef), a simplificação da assistência médico-sanitária (PSF, o padrão genérico de medicamentos etc.); e as reformas econômicas, como a criação do real, o saneamento do sistema bancário e das finanças dos entes federativos, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o modelo do tripé (câmbio flutuante-metas de inflação-metas fiscais), as privatizações– tudo tinha esse claro sentido modernizador.

          Ajunte-se que custou caro: um aumento de carga tributária inédito, de 8 pontos percentuais (de 25 para 33%) de pib em 10 anos. Calculo que metade disso tenha ligação direta com a oficialização daquela mais valia às avessas acima referida: eram recursos para financiar os programas sociais. E em vez do semáforo, a escola; em lugar do apurado do biscate, a bolsa do governo. Incrível, brasileiramente surreal é que, depois da obra feita, tenham os adversários logrado grudar em seus autores o rótulo de neoliberais. Estranhos neoliberais esses que, com tais objetvos, aumentaram assim tão brutalmente o tamanho do Estado...

          Na esteira das contrariedades suscitadas por tanta mudança (privatizações, abertura externa, aumento da carga tributária, desavença com interesses corporativos na área do funcionalismo público, do ensino universitário etc.), um segmento da classe média, tradicionalmente não petista (em 1989, preferira Collor!), atravessou a rua e se juntou ao eleitorado do PT. Chega este ao poder e como responde à questão da dualidade? Com um populismo de novo corte. A deduzir do conjunto da obra, para ele a dualidade era SOLUÇÃO. Com efeito, ele cancela a agenda de reformas, que sempre combateu (interrompeu em meio, p. ex., o projeto de privatização do setor elétrico, e agora, relutantemente, o retoma) e amplia a rede de proteção social, que, aliás, seria ampliada de qualquer jeito, fosse vencedor o partido adversário, que a criou. O estranho é que os petistas se opuseram à rede, quando da sua criação, tachando-a de ferramenta de uma política de acomodação com o grande capital, parida pelos tecnocratas do Banco Mundial. No poder, transformam-na, porém, noutra coisa: uma rede de arrasto dos votos das periferias. Um instrumento para a “fidelização” (ou “curralização”) de algo como 35 milhões de votos. Os criadores do programa original não ganharam talvez nenhum voto ali. Até porque, a estrutura de gestão original emprestava-lhe o caráter de instrumento de cidadania, libertador do tacão do chefete local, fosse líder comunitário ou coronel dos grotões. Lula&Cia, depois do fiasco do grotesco Fome Zero, como procederam? Fundiram as bolsas numa só, politizaram a gestão, arranjaram-lhe outro nome, e até hoje o vendem como um presente de pai ou de mãe aos mais pobres. É isso: eles são pais extremosos e, para realizar sua incoercível vocação, precisarão sempre de pobres...

           Não há negar que a intenção de congelar os dois Brasis, preservar em benefício próprio a dualidade se trai, bem traída, na interrupção das reformas e no sotaque novo que ganhou a política social. E tem sua lógica: avanço rumo a uma sociedade moderna, sem setor arcaico, sem desemprego estrutural de monta daria perigosamente na vera democracia, de cidadãos livres de cabresto. E adeus, base de poder. Pensando bem, é escandaloso. Ainda mais que, desde o primeiro dia, a turma acampou com ânimo de ficar. De eleição em eleição. Rejeitou o mercado político e a negociação congressual costumeira, e partiu para a “ação direta” da compra de apoios. O negócio era ir buscar o voto-muamba direto no baixo clero, em geral atropelando as lideranças partidárias e congressuais. E arrecadar o dinheiro da reeleição, em particular o dinheiro de pagar o trabalho que o enorme exército de cabos eleitorais passou a fazer, de exploração do potencial eleitoral das comunidades pobres brasileiras, criado pela Constituição de 88. Arrecadar como? Montando e azeitando um aparelho de roubo de dinheiro de estatais de escala nunca vista antes “na história deste país” ou de outros. O mensalão e o petrolão são exemplares dessa engenhoca.

          Com relação à ladroagem, não sei o que dirá um petista sincero. O mais provável é que guarde um obsequioso silencio. Mas, quanto à política social e econômica, ele se erguerá indignado da poltrona e gritará: calúnia!, o Brasil não ficou congelado. Os anos de petismo trouxeram crescimento econômico, o pleno emprego e milhões de famílias subiram acima da linha da pobreza, consulte as estatísticas insuspeitas do IBGE/PNAD e da ONU. E não vê só de olhar quem não quer que o padrão de vida das camadas mais pobres melhorou como nunca: o pobre hoje viaja de avião, possui celular e sua casa dispõe dos mesmos eletrodomésticos que qualquer outra de classe média.

          Nem tanto, nem tanto, meu petista sincero, objetaria eu, rodrigueanamente. Os milhões de empregos extras, boa parte deles não passa de ilusão estatística: já existiam informalmente e vieram à luz graças a medidas de formalização, como o Simples tributário, contra a qual o PT votou, embora depois as tenha até ampliado (com o Simples Nacional e o MEI). A linha da pobreza foi pulada principalmente por beneficiários do Bolsa Família que, como dito, o PT não queria, embora depois tenha triplicado de tamanho. E essas aparências de prosperidade que a gente vê nos shoppings e nos aeroportos foram compradas a crediário. Tenho números do BC de um ano atrás (abril/2015) sobre endividamento de pessoas físicas: subiu o tempo todo, desde 2005, quando começou a série, e, naquela data, alcançava 46% da renda anual. E talvez tenham exagerado na dose e transformado o remédio em veneno: na mesma data, a prestação levava 22% da renda familiar. Hoje, o saldo da dívida não deve ser maior, mas a inadimplência com certeza subiu. Em parte, tem-se, aí, para o bem ou para o mal, outro subproduto (esse, real, com efeito no bolso) do CNPJ e da carteira assinada que o Simples proporcionou. Em suma, meu petista sincero, de seu discurso eu saco duas conclusões: uma (da outra falo a seguir) que é fácil atribuir-me eu todo o mérito de uma obra anterior. Que eu continuei, mas, às vezes, dependesse de mim, nem começado teria. Fácil, mas feio.

          Na verdade, o traço básico da era petista é, sim, a falta de dinamismo econômico. Nos dois governos Lula, tempo de vacas gordas no mundo, o Brasil cresceu, é verdade, mas bem abaixo (a cerca de 60%) da média mundial, constatam as mesmas fontes. Dilma tudo indica entregará ao sucessor um país produzindo menos, em termos reais absolutos, do que aquele que recebeu. Um Brasil que andou para trás! E por que desempenho assim tão medíocre? Porque, no fundo, é da essência do populismo. É isso mesmo que ele quer por instinto. Ele precisa, para funcionar, ser antimodernizador, ou seja, conservador no pior sentido. Senão, cadê os pobres dos eleitores? Ao resistir, por duas décadas, a reformas (previdenciária, trabalhista etc.) que nada mais são do que a remoção de entulhos que impedem o setor moderno de andar mais ligeiro; e ao retroceder, p. ex., com a abolição do mecanismo da concessão na exploração do petróleo do pré-sal, agora felizmente em vias de ser reimplantado– ele agiu segundo sua natureza e deu um prejuízo enorme ao projeto do Brasil moderno. Mas aí mora o furo: quem vê o moderno quer o moderno, não se conforma mais com menos, comprovam os próprios fatos de que os petistas se ufanam. Ora, se se criam obstáculos ao moderno, como atender a demanda do moderno? Não dá e, completo a resposta ao meu petista sincero, a ascensão das classes C e D vira fogo de artifício...

          E aqui o nó aperta mais. O ethos antimudancista dessas forças progressistas-só-na-TV é percebido por todos, em particular pelo empresariado, e tem um efeito geral de frenagem. A queda decenal do investimento privado com que o empresariado respondeu aos governos petistas é seu modo de dizer que, em parte desiste de ampliações e modernizações, porque não está minimamente confiante no governo nem no futuro. E como vem das empresas perto de 20% da demanda macroeconômica, uma retração de 10% no investimento privado basta para, multiplicador à parte, produzir uma queda de 2% no teto do pib.

          Lula ainda tratou com certa cerimônia o setor moderno, de medo do apocalipse. A ameaça que era sua eleição causou pânico no mercado, a fuga de capitais foi colossal, o dólar passou de R$ 4,00, chegou perto de R$ 5,00. O jeito foi Zé Dirceu ir a Washington confessar-se com Mr. Bush, um escrito na mão e a alma de joelhos, como se estivesse indo a Canossa... De mais a mais, a equipe inicial, muito mais esclarecida, sabia que da vaquinha leiteira da economia moderna é que vinha o leite dos programas sociais. E (por razões táticas?) continuou com o modelo de gestão macroeconômica que encontrou. A sensação geral foi de alívio: “ainda bem, poderia ter sido muito pior”. Mas, aí, assumiu com Dilma a ala esquerda do petismo, francamente anticapitalista (ou, numa interpretação mais benigna, partidária de um dirigismo forte que nunca deu certo em lugar nenhum), e botou as mangas de fora. Partiu para a política da bordoada: redução por decreto dos juros bancários, rebaixa na marra da tarifa de energia elétrica, congelamento de preços dos combustíveis e condenação à morte por inanição do setor alcooleiro, aumento inimaginável do crédito “direcionado” etc., etc. Cuidados com o equilíbrio orçamentário? Coisa de guarda-livros antiquado, bolorento... A vaquinha ficou ainda mais assustada e passou a esconder o leite. Cada vizinho de um setor atingido pensava consigo: eu posso ser a próxima vítima de uma marrada dessas da czarina zangada... Ou: depois de madame, o dilúvio...E a conjunção dos populismos velho e novo deu no desastre que está aí. Na ladeira abaixo em que o país vai. E eles, no íntimo, convictos e impenitentes, põem a culpa na vaquinha...

          Em conclusão, contrastado com o modo de pensar e agir dos progressistas, o caráter reacionário do populismo salta aos olhos e é vergonhoso. Os progressistas buscam implementar um projeto de país, de um Brasil moderno e democrático. Os populistas da estirpe petista se batem, simplesmente, por um projeto de poder. Projeto antidemocrático, requer a continuidade do saque do dinheiro público para manter sob controle o eleitorado da periferia. E para as massas, mil e um presentinhos, que fingem ser progressismo. Adulação em vez de elevação. Mas o erro de cálculo deles é fatal. Primeiro, como já assinalado, a política populista dá necessariamente na estagnação. E as inevitáveis patacoadas de condução, devidas às deformidades ideológicas, são o pai e a mãe da crise econômica. Depois, a Justiça, essa deusa de olhos sutis, vem descobrindo e castigando os crimes ligados ao financiamento da máquina eleitoral populista. Last but not least, a porção moderna do Brasil é inerentemente dinâmica, cresce de um jeito ou de outro, na economia ou nas mentes, queiram ou não os reacionários de todos os naipes, dos caciques petistas aos seus amigos coronéis. E ganha espaço a cada dia (ou cada noite...). E esse Brasil moderno enxerga a fraude, em sua completa extensão. Os mais pobres, alguns não a veem ainda, embora ela lhes doa, cada vez mais, na pele e na alma. Donde a obrigação dos que já viram: o alerta bem que encurta caminho a essa pedagogia do sofrimento. E uma vez acesa a luz, convencida a cidadania da urgência da mudança, uma capela imensa soará pelo país. Será a senha para que os poderes do Estado, Legislativo e Judiciário, façam seu dever constitucional. E a esperança peregrina volte a nossa casa.

           Sim, vai passar... Embora dolorido e demorado: uma década de aperto e trabalho sério para recuperar o perdido. E aí bate em mim, caboclo velho, sertanejo sonhador, uma espécie de sonho conselheirista: o de um país que, no ramerrão diário, nunca deixe de exibir a joia milionária de nossa diversidade cultural; e, de par com ela, os valores que nos unem numa grande e alegre pátria comum. Sobretudo, essa barriga de gordo de neto do senhor Dom João VI, que até hoje tem sido capaz de digerir, de dissolver os antagonismos étnicos, regionais, políticos, religiosos, por agudos que pareçam, muito antes que eles degenerem em ódio irreconciliável entre irmãos. Mas, no campo social, que eu ainda possa ver que viramos um país que deu certo e se vacinou bem vacinado contra os contos de vigário. Um São Paulo Grande, que a todos ofereça trabalho, bem-estar e dignidade. Um sonho-quase-uma-prece...

          Poço da Panela (Recife), fevereiro/2016



[1] O estilo da segunda onda colonialista, nos sec. XVIII e XIX, que retalhou a África , o sudeste da Ásia e o Oriente Médio entre as potências europeias, foi oposto: o grupo dominante não se nativizou, até porque constava sobretudo de agentes imperiais, funcionários públicos e militares. Findo o período colonial, repatriou-se. Não há, em número significativo, ingleses na Índia, nem holandeses na Indonésia, nem franceses na Argélia ou no Senegal etc. E os poucos que permaneceram se reconhecem como ingleses, holandeses, franceses. E vivem à parte, em guetos, a sociedade ao largo nas mãos da população autóctone.


[2] De um populismo diferente do getulista, em intenções e natureza. O público de Getúlio eram os trabalhadores urbanos do setor formal (indústria, comércio, serviços, artesãos autônomos) e o funcionalismo público. É bom não esquecer que, em seu tempo, o voto era restrito à população alfabetizada.

Machado de Assis no Amazon