3 de outubro de 2004

Ranger de dentes

Jornal O Estado do Maranhão 
Contaram-me que, no sábado, a turma, velho costume, estava no maior bate papo, todo mundo despreocupado da vida, copo de cerveja na mão num bar da Litorânea. Conversa de futebol, eleição e mulher. Curtição da manhã de sol e de vento forte e gostoso dessa época do ano aqui na Ilha. Gente de meia idade, com a vida mais ou menos arrumada, aparentemente sem grandes problemas. O celular toca ­– mais um – e uma voz conhecida diz que está chegando com uma novidade. “Por telefone não tem graça, quando chegar aí, eu digo. Quero ver a cara de vocês”.
O pessoal ficou mudo quando ele contou. Até os vira-latas da calçada em frente sentiram a mudança dos ânimos no bar. O sujeito chegou com uma história sobre o desprestígio do pênis. De cara, pensaram ter ouvido “do tênis”. Qual tênis? Seria um exemplar de alguma velha marca, fora de moda, incapaz de sustentar os esforços prolongados de quem o coloca nos pés? Ou seriam todos os calçados desse tipo, que, de tanto usados, perdem o vigor e vacilam no desempenho de funções vitais, ante os olhares angustiados de seus outrora orgulhosos proprietários? Alguém pensou em jogo de tênis e criticou Guga pelas últimas derrotas, como se não fosse bastante sua contribuição ao esporte no Brasil. É o tal negócio. Ou o cara tem um desempenho perfeito sempre ou caem de pau nele. Mas, claro, não se tratava de tênis de nenhum dos dois tipos.
A fonte da notícia estava no livro Uma mente própria: uma história cultural do pênis, de um tal de David M. Friedman. Dita assim, a seco, sem preparação, sem nenhum preâmbulo, a novidade poderia parecer brincadeira ou, até, falta de jeito ou de jeitinho. No entanto, o caso era sério.
O mais coroa do grupo disse que, de fato, percebera ultimamente a perda de prestígio mencionada pelo amigo. Ele notara que o desprestigiado chegava num órgão público, por exemplo, e acabava servido de chás-de-cadeira. Esperava um tempão, humilhado, encolhido, quase invisível, no fundo de uma poltrona na ante-sala do chefão. Já sem esperança de conseguir alguma coisa, depois de tanta expectativa, não agüentava mais e decidia relaxar. Dava uma volta lá fora durante um bom tempo. Ao retornar, porém, continuava cabisbaixo, sem força até para se levantar, com vergonha de entrar sem ser autorizado, sem coragem de se mostrar, incapaz de crescer nesses momentos de crise, como faria alguém de mais fibra. Quanto sofrimento, quanta incompreensão, quanto desprezo injustificado! Pior ainda, ninguém atinava com a origem dessa rejeição.
Quem diria! Havia pouco tempo, continuou o coroa, o agora enjeitado entrava altivo em qualquer ambiente, cabeça erguida, firme, em atitude desafiadora. Carregava aquele porte marcial de guerreiro destemido, armado de determinação inquebrantável, sem receio de nada, pronto para qualquer desafio, imune a fracassos, psicologicamente em perfeito estado. Era a imagem perfeita da pujança, da força da natureza, disposto a encarar qualquer desafio, superar qualquer obstáculo, por mais difícil que parecesse, a seu avanço impetuoso, desajeitado mesmo, por vezes, temos de admitir.
Ele sequer se importava com as acusações de ser uma ferramenta de opressão, de fazer tudo errado, de ser um cabeça-oca. Contudo, como na canção, o seu mundo caiu e o fez ficar assim, caído daquele jeito. Quem te viu e quem te vê, pobre coitado! Tu que acreditavas nas glórias deste mundo materialista, depravado e indiferente a quem tem valor e é capaz de avançar sem pestanejar em direção a seus legítimos objetivos!
A vida é assim. Uma hora estamos por cima, outra por baixo. Os desprestigiados de hoje podem ser os prestigiados de amanhã. Aí, então, não será surpresa ouvir gritinhos e ranger de dentes.

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