29 de maio de 2011

Qual língua?

Jornal O Estado do Maranhão 

O Ministério da Educação, com assiduidade envolvido em trapalhadas, achando, quem sabe, a educação uma grande brincadeira, coisa de (peço licença aos politicamente corretos) Chapeuzinho Vermelha sendo comida pelo Lobo Mau, deu de patrocinar mais uma lambança, com essa história de “os livro ilustrado”.  
          O debate gira em torno de um chamado preconceito linguístico (hoje, tudo é preconceito e dar um simples, porém incontrolável, espirro num ambiente fechado pode ser considerado preconceito ambiental e sujeitar o espirrador a uma ação na justiça). As discussões começaram quando o Ministério autorizou a compra com recursos públicos de um livro didático que seria adotado nas escolas de todo o país (não será mais) e tentou se omitir de responsabilidades ao deixar a escolha a uma comissão de deslustrados desconhecidos. O título da obra, adotado por certo com intenção irônica, é Por uma vida melhor.  
          Mas, o que há no livro? Há enfática defesa do uso desta construção: "Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado". Diz também, na página 15: “Mas eu posso falar ‘os livro’? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”. Para sermos justos com os autores, havemos de informar o leitor sobre a explicação da coautora Heloísa Ramos. A passagem se encontra num capítulo em que as diferenças entre escrever e falar são explicadas, mas, diz ela, o livro não ignora caber “à escola ensinar as convenções ortográficas e as características da variedade linguística de prestígio”.  
          Dito dessa forma, fica-se com a impressão de se estar fazendo muito barulho por nada. Todo mundo sabe disto: quando falam, as pessoas adotam sintaxe e formas de expressão diferentes das usadas quando escrevem. Ninguém vai ao bar da esquina tomar uma cerveja e começa a conversar como se estivesse num seminário de linguística e vice versa. Quem o fizesse seria ridicularizado. A obviedade disto nos dispensa de gastar tempo com o assunto. A questão não é essa, é esta: lamentavelmente, os autores do livro colocam a norma culta da língua em pé de igualdade com as variações linguísticas, tanto sociais, que parecem ser aquelas mencionadas por eles, quanto de outros tipos.  
          Os idiomas podem ser ditos de cultura exatamente porque possuem normas cultas, que resultam da sistematização de usos linguísticos dos melhores escritores e das classes letradas em geral. É a partir da existência delas, das normas, que se pode falar de variações, definidas relativamente a elas, de maneira análoga à concorrência perfeita, na teoria econômica , padrão pelo qual se estudam as demais formas de concorrência (ou sua ausência), tais como as monopolistas, oligopolistas, etc. Se a gramática normativa não existisse no português de hoje, ela seria rapidamente formalizada. As línguas ágrafas, exatamente por o serem, não formalizam suas gramáticas. Mesmo assim, elas existem, como nos dizem os estudiosos do assunto e é fácil de entender. Parece-me haver no livro confusão entre a ciência linguística, com a missão de estudar a língua como ela é, e a gramática normativa, com a de dizer como ela deve ser.  
          É obrigação da estrutura educacional ensinar o modelo representado pela norma culta. Insistir em algo diferente confunde o aluno, tira-lhe oportunidades de progresso, já tão escassas, e perpetua, isso sim, as diferenças sociais supostamente combatidas por essa política equivocada. Semelhante à de cotas, que tenta corrigir tardiamente na própria Universidade defeitos da educação oferecida pelo setor público aos mais pobres desde os níveis primários e médios do ensino. Melhor seria começar a evitar as falhas ainda no início, quando os jovens ingressam na base do sistema. Eles necessitam de guia seguro não apenas com o fim de terem acesso à cultura formal, mas para as necessidades práticas de sobrevivência no mercado de trabalho. Para isto, não precisam de escola para aprender o idioma que já falam espontaneamente. Precisam aprender bem a norma culta, sem demagogias infantis do esquerdismo.

15 de maio de 2011

Contra a vontade

Jornal O Estado do Maranhão        

Carlos Orlando Rodrigues de Lima, falecido no dia 9 deste mês de maio, viveu longa e proficuamente. Viver por um tempo tão dilatado, 91 anos, idade a que chegou no dia 14 de março de 2010, tendo nascido, portanto, em 1920, não transforma ninguém no seu contrário: de perverso em bom, de desonesto em honesto, de pessoa de má índole em pessoa de boa índole e vice versa. Somos iguais a nós mesmos a vida inteira, sem mudanças essenciais, ainda que sofrendo a poderosa influência, benéfica ou maléfica, do ambiente.
          Como prova dessa afirmação e para a felicidade dos próximos a seu Carlos - esta a forma pela qual todos o chamávamos -, menciono o uso, em todas as circunstâncias, sempre, que fez de seu tempo sobre a Terra, com o fim de confirmar seu jeito de ser a figura extraordinária, querida e, chego a dizer sem nenhum exagero, amada de todos os seus amigos, conhecidos e, em especial, de sua família: dona Zelinda - com quem conviveu por 71 anos, entre namoro e casamento -, filhos e netos. Quando digo extraordinária, quero expressar o sentido original e restrito da palavra: alguém fora do comum, fora ou além do ordinário, excepcional, pouco encontrado, raro.
          Ele foi produtivo até que a chegada de algo que também vencerá a nós todos algum dia, sem exceção, sob uma de mil formas traiçoeiras, começou a roubar-lhe as forças com tanta humanidade empregadas durante décadas e décadas. Foi invariavelmente um homem gentil, amigo de seus amigos e alegre, em suas múltiplas atividades e nas instituições de que foi parte: funcionário do Banco do Brasil, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, da Comissão Maranhense de Folclore, do Conselho Estadual de Cultura, quando era Secretário da área Phelipe Andrès, e da Academia Maranhense de Letras, onde tomou posse no dia 21 de fevereiro de 2008, ano do Centenário da casa, sendo o primeiro a fazê-lo no período de minha presidência, no biênio 2008-2010; ator de cinema e teatro, historiador, folclorista, escritor, poeta e colaborador deste jornal. Sua bibliografia é vasta, abrangendo romance, conto, crônica, cordel, folclore, poesia e diversos livros sobre a história do Maranhão.
          No ano passado, numa sessão ordinária da Academia Maranhense de Letras, quando o homenageávamos pelos seus noventa anos, depois das falas de diversos acadêmicos, eu disse que atribuía sua longevidade, não como o fator exclusivo, mas como o mais evidente, ao senso de humor tão dele. No entanto, pensando mais tarde sobre essa característica, vi que ela andava junto com seu estar de bem com a vida, inafastável otimismo, temperamento conciliador e maneira corajosa e tranquila de encarar a morte. Eu admirava a forma como ele falava dessa volta ao nada, sem medos e angústias, aceitando-a como parte do viver, a outra face da moeda única da existência.
Nada nem ninguém conseguiam tirá-lo do sério que, neste caso, não era propriamente "do sério", mas do estado de alegria interior e felicidade perenes. Mas, se acontecia de se aborrecer com alguém, a chateação não durava uma hora. Essa, minha impressão. Não se conhecem seus inimigos porque ele não os tinha, embora eu não duvide de que em tal condição alguém, porventura não o conhecendo bem, houvesse planejado colocá-lo. Não conseguiu nem conseguiria jamais, frustrando-se assim as intenções desse autonomeado e desavisado rival.
         Volto agora a seu bom humor e presença de espírito únicos, capazes de levá-lo a fazer brincadeiras até com ele, mesmo diante da possibilidade de morrer. Já enfraquecido pela doença e percebendo a gravidade de seu estado, ditou a familiares a inscrição da lápide de seu túmulo: "Aqui jaz Carlos de Lima, contra a vontade". Quantos, ante a perspectiva tão dolorosa de fim próximo, teriam essa capacidade de rir e fazer rir, de alegrar aqueles em sua volta, de certa forma consolando-os? Certamente no seu féretro ia um homem contrariado com a morte, mas alegre como o fora em todas as ocasiões, exceto pela saudade que sentirá, igual à que sentiremos.
          Foi-se contra a própria vontade e de igual modo contra a nossa.


6 de maio de 2011

Candidatura de Antonio Carlos Lima à AML

          O jornalista Antonio Carlos Lima deu entrada hoje na Academia Maranhense de Letras de pedido de incrição para concorrer à cadeira 5 daquela Casa, vaga com o falecimento de Clovis Sena. Ele veio de Brasília, onde trabalha, com o fim especial de cumprir essa obrigação de candidato.
         Após um período de algumas semanas de reflexão e de avaliação de suas chances, ele chegou à conclusão de que poderá ser eleito. Antonio Carlos me disse que o número de apoios que recebeu até agora de acadêmicos residentes aqui e fora do Estado foi importante para sua decisão. Ele acha que a eleição será dura, mas ao final prevalecerá.

2 de maio de 2011

Artigo de FHC

          Em artigo publicado ontem, dia primeiro de maio, no blog de Noblat, no Globo On Line, Fernando Henrique Cardoso faz referência a livro publicado em São Luís, Memórias de um soldado de milícias, de Luiz Alfredo Raposo. Este, que é doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas, dedica o livro a este escriba. Abaixo, a íntegra do artigo:

Um novo Brasil 
Décadas atrás havia uma discussão sobre a "modernização" do Brasil. Correntes mais dogmáticas da esquerda denunciavam os modernizadores como gente que acreditava ser possível transformar o País saltando a revolução socialista. Com o passar do tempo, quase todos se esqueceram das velhas polêmicas e passaram a se orgulhar das grandes transformações ocorridas.
Até mesmo pertencermos aos Brics, uma marca criada em 1999 pelo banco Goldman Sachs, passou a ser motivo de orgulho dos dirigentes petistas: finalmente somos uma economia emergente!
Na verdade, o Brasil é mais do que uma "economia emergente", é uma "sociedade emergente" ou, para usar o título de um livro que analisa bem o que aconteceu nas últimas décadas, somos um novo país (ver Albert Fishlow, O Novo Brasil, Saint Paul Editora, 2011).
Para entender as dificuldades políticas que foram transpostas para acelerar estas transformações basta ler a primeira parte de um livrinho que tem o instigante título Memórias de um Soldado de Milícias, escrito por Luiz Alfredo Raposo e publicado este ano em São Luís do Maranhão.
Embora os livros comecem a registrar o que é este novo Brasil - e há outros, além do que mencionei -, o senso comum, especialmente entre os militantes ou representantes dos partidos políticos e seus ideólogos, ainda não se deu conta por completo dessas transformações e de suas consequências.
Os fundamentos deste novo País começaram a se constituir a partir das greves operárias do fim da década de 1970 e da campanha das Diretas-Já, que conduziram à Constituição de 1988. Este foi o marco inicial do novo Brasil: direitos assegurados, desenho de um Estado visando a aumentar o bem-estar do povo, sociedade civil mais organizada e demandante, enfim, liberdade e comprometimento social.
Havia na Constituição, é certo, entraves que prendiam o desenvolvimento econômico a monopólios e ingerências estatais. Sucessivas emendas constitucionais foram aliviando essas amarras, sem enfraquecer a ação estatal, mas abrindo espaço à competição, à regulação e à diversificação do mundo empresarial.
O segundo grande passo para a modernização do País foi dado pela abertura da economia. Contrariando a percepção acanhada de que a "globalização" mataria nossa indústria e espoliaria nossas riquezas, houve a redução de tarifas e diminuição dos entraves ao fluxo de capitais.
Novamente os "dogmáticos" (lamento dizer, PT e presidente Lula à frente) previram a catástrofe que não ocorreu: "sucateamento" da indústria, desnacionalização da economia, desemprego em massa, e assim por diante.
Passamos pelo teste: o BNDES atuou corretamente para apoiar a modernização de setores-chave da economia, as privatizações não deram ensejo a monopólios privados e mantiveram boa parte do sistema produtivo sob controle nacional, seja pelo setor privado, seja pelo Estado, ou em conjunto. Houve expansão da oferta e democratização do acesso a serviços públicos.
O terceiro passo foi o Plano Real e a vitória sobre a inflação, não sem enormes dificuldades e incompreensões políticas.
Juntamente com a reorganização das finanças públicas, com o saneamento do sistema financeiro e com a adoção de regras para o uso do dinheiro público e o manejo da política econômica, a estabilização permitiu o desenvolvimento de um mercado de capitais dinâmico, bem regulado, e a criação das bases para a expansão do crédito.
Por fim, mas em nada menos importante, deu-se consequente prática às demandas sociais refletidas na Constituição. Foram ativadas as políticas sociais universais (educação, saúde e Previdência) e as focalizadas: a reforma agrária e os mecanismos de transferência direta de renda, entre eles as bolsas, a primeira das quais foi a Bolsa-Escola, substituída pela Bolsa-Família.
Ao mesmo tempo, desde 1993 houve significativo aumento real do salário mínimo (de 44% no governo do PSDB e de 48% no de Lula).
Os resultados veem-se agora: aumento de consumo das camadas populares, enriquecimento generalizado, multiplicação de empresas e das oportunidades de investimento, tanto em áreas tradicionais quanto em áreas novas.
Inegavelmente, recebemos também um impulso "de fora", com o boom da economia internacional de 2004-2008 e, sobretudo, com a entrada vigorosa da China no mercado de commodities.
Por trás desse novo Brasil está o "espírito de empresa". A aceitação do risco, da competitividade, do mérito, da avaliação de resultados. O esforço individual e coletivo, a convicção de que sem estudo não se avança e de que é preciso ter regras que regulem a economia e a vida em sociedade.
O respeito à lei, aos contratos, às liberdades individuais e coletivas fazem parte deste novo Brasil. O "espírito de empresa" não se resume ao mercado ou à empresa privada. Ele abrange vários setores da vida e da sociedade.
Uma empresa estatal, quando o possui, deixa de ser uma "repartição pública", na qual o burocratismo e os privilégios políticos, com clientelismo e corrupção, freiam seu crescimento.
Uma ONG pode possuir esse mesmo espírito, assim como os partidos deveriam possuí-lo. E não se creia que ele dispense o sentimento de coesão social, de solidariedade: o mundo moderno não aceita o "cada um por si e Deus por ninguém".
O mesmo espírito deve reger os programas e ações sociais do governo na busca da melhoria da condição de vida dos cidadãos.
Foi para isso que apontei em meu artigo na revista Interesse Nacional, que tanto debate suscitou, às vezes a partir de leituras equivocadas e mesmo de má-fé.
É inegável que há espaço para as oposições firmarem o pé neste novo Brasil. Ele está entre os setores populares e médios que escapam do clientelismo estatal, que têm independência para criticar o que há de velho nas bases políticas do governo e em muito de suas práticas, como a ingerência política na escolha dos "campeões da globalização", o privilegiamento de setores econômicos "amigos", a resistência à cooperação com o setor privado nos investimentos de infraestrutura, além da eventual tibieza no controle da inflação, que pode cortar as aspirações de consumo das classes emergentes.
Para ocupar esse espaço, entretanto, é preciso que também as oposições se invistam do espírito novo e sejam capazes de representar este novo Brasil, tão distante do pequeno e às vezes mesquinho dia a dia da política congressual.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República



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