3 de agosto de 2003

Justos e pecadores

Jornal O Estado do Maranhão
Os fora-da-lei de todos os tipos – traficantes, assaltantes, assassinos – que, num momento de descuido do nosso sistema de administração de justiça, acabaram presos, condenados e colocados em alguma penitenciária, começaram, há algum tempo, (vejam só a esperteza imprevisível!) a usar celulares pré-pagos a fim de se comunicar com seus comparsas e dirigir seus lucrativos negócios.
Alguma coisa tinha de ser feita, e foi, com o propósito de impedir a comunicação entre eles. Uma medida foi tomada, para ninguém se meter a acusar as autoridades de indiferença ante a sorte do povo e desconhecimento de seus problemas. Por sinal, foi a mais apropriada providência, em um momento de aumento do desemprego no país e crescentes preocupações com o aumento das invasões de propriedades na zona rural em todo o Brasil e de prédios nas cidades.
De agora em diante, pela nova lei de número 10.703, todo adquirente dos pré-pagos será obrigado a cadastrá-los nas operadoras do serviço de telefonia, cujo atendimento aos usuários, como todos estão cansados de saber, não é lá essas coisas. Quem a descumprir, terá a linha telefônica bloqueada e pagará multa de cinqüenta reais.
Para bem se avaliar a eficiência dessa exigência legal e seus resultados benéficos para a sociedade, basta dizer-se que no Brasil é impossível a falsificação de um documento de identidade. Isso é mais verdadeiro ainda quando se fala dos bandidos. Eu não posso imaginar, nem ninguém pode, um desses caras, esperto quanto possa ser, falsificando o número da carteira de identidade, do CPF, ou mentindo descaradamente sobre seu verdadeiro endereço, com o fim de conseguir o registro de seu telefone.
Afinal, não se pode suspeitar assim, sem uma boa razão, das pessoas. Elas são inocentes até prova em contrário. Todos falam a verdade, nada mais que a verdade, até serem apanhados na mentira. Do indivíduo comum, sempre às voltas com mil problemas, sem dinheiro, sem nada, é que se podem esperar atos de desespero. Eles poderão chegar, até, a tentativas de burlar a nova lei pelo uso de informações falsas. O objetivo oculto dessa peça de legislação deve ser esse, de agarrar esse tipo de gente.
Se não tiver sido essa a intenção do legislador, então foi mesmo a de infernizar a vida das vítimas potenciais dos malfeitores, de massacrá-las com uma exigência burocrática descabida, o que é uma forma de prisão, como Kafka já mostrou. Os bandidos, por definição, vão sempre dar um jeito de falsificar o registro de seus celulares. As outras pessoas, vinte e sete milhões neste caso, terão de passar mais uma vez pela aporrinhação de fazer um cadastro neste país dos cadastros.
Mais uma vez prevalece a fé na capacidade de uma simples lei, simplória lei, de resolver um problema complexo, refratário a soluções fáceis. O resultado prático, porém, será a criação de um ônus para o cidadão ordeiro, pelo desperdício de seu tempo, sem a inibição simultânea da ação dos criminosos. Pagam os justo pelos pecadores. E que pecadores!
A não ser que se imagine uma conversão dos malfeitores, por bem-vinda conseqüência da lei, milagre até hoje desconhecido, ela será inócua. Não demora muito, alguém vai propor a proibição do uso daquele tipo de telefone no Brasil, por causa do mau uso que dele possam fazer.
Por que não usar a própria tecnologia no combate aos criminosos? Falou-se muito, há algum tempo, na implantação, em volta dos presídios brasileiros, de um sistema de bloqueio eletrônico de celulares, para evitar o uso desses aparelhos pelos presidiários. Depois, a imprensa calou-se sobre o assunto, talvez porque os encarregados de fazer o sistema funcionar também se calaram. A tecnologia existe e está disponível. Será tão complicado assim, ou tão caro, implantá-la? Contra os delinqüentes fora dos presídios, que se usem outros recursos tecnológicos disponíveis, se aparelhem as polícias, se treine seu pessoal e se paguem bons salários.
De certo, há o seguinte: justos e pecadores foram colocados no mesmo saco.

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