30 de dezembro de 2001

Previsões

Jornal O Estado do Maranhão 
Fim de ano é época de fazer previsões. A temporada, curta e intensa, começa logo depois do Natal e vai até os primeiros dias do Ano Novo. É um bocado de gente tentando adivinhar os acontecimentos do ano seguinte, com o ar mais sério deste mundo, e do outro, e aquela segurança condescendente de quem sabe o que está dizendo.
O mundo artístico vai ser abalado pela morte de um astro popular, uma grande transação no futebol – a venda de um jogador brasileiro no mercado europeu – vai agitar o meio esportivo mundial, o Brasil enfrentará dificuldades econômicas, o conflito no Oriente Médio ainda não terá solução, haverá terremotos e enchentes pelo mundo, os argentinos continuarão pensando que são europeus, e por aí vai. Coisas quase impossíveis de serem previstas. Trabalho de especialistas que, a troco, apenas, da satisfação de fazer o bem à humanidade, prevenindo possíveis tragédias, oferecem aos deficientes de dons adivinhatórios, como nós, a chance de acautelarem-se contra os males escondidos no futuro.
Véspera de Natal. Venho andando pelo shopping, distraído, pensando nessas coisas, até arriscando, comigo mesmo, alguma filosofia sobre a importância da adivinhação na prosperidade e felicidade dos povos. Vejo, saindo de uma loja, um velho amigo com quem não me encontrava havia anos. Tapinhas nas costas, tudo bem, há quanto tempo. Como eu poderia adivinhar que ele agora morava em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e faturava uns trocados baseado em suas previsões, feitas em uma cadeia nacional de rádio? Afinal de contas, o adivinhão era ele, não eu.
Pois é essa sua principal atividade. Mas, claro, ele arranjou um nome mais bonito para a profissão. Ele é um Previsor de Eventos Aleatórios com Influência sobre o Comportamento Humano – Precomo. Diz praticar a Previsão Transcendental – Pretrans que não se pode confundir com uma qualquer, dessas trombeteadas a toda hora por “esses charlatões que andam soltos por aí desacreditando a classe”.
Quero saber, então, se ele pode arriscar uma previsão, apenas uma, para mim. Em nome da velha amizade. Ele hesita por um segundo. Logo, porém, esboça um meio sorriso. Imagino ver em seus olhos uma certa desconfiança com respeito a minha crença na sua capacidade preditiva. Resolve, contudo, atender meu apelo, sob a condição de fazer somente uma previsão e de eu anunciá-la somente neste domingo, depois de sua divulgação, por ele mesmo, lá no Sul.
Xuxa, a apresentadora de televisão, afirmou meu amigo, continuará, em 2002, a cruzar o caminho de duendes, como ela afirma ter feito em 2001. Ela fará um acordo com um deles. Pelo contrato, a ser testemunhado por Paulo Coelho e Elba Ramalho, experientes em assuntos correlatos, o duende e Xuxa irão gerar um irmãozinho para filha dela, Sasha, a fim de diminuir um pouco a solidão da menina. Meu amigo só não pôde revelar, por se tratar da intimidade do casal, se a concepção será por inseminação artificial ou pelo método tradicional. Nem se o rebento puxará ao papai ou à mamãe. Duende ou humano? Quem sabe uma mistura dos dois. Não especificou também se o pai, esse pequenino, travesso e inofensivo ser de orelhas pontudas, é brasileiro, estrangeiro, cidadão celestial ou até um extraterrestre que nem de cidadania terráquea precisa.
Curioso, pensei em perguntar sobre outras figuras famosas do meio artístico. Mas, mantive-me fiel à promessa. Ele cumpriu a dele, de me revelar sua previsão mais interessante para 2002. Teria de cumprir a minha de não perguntar mais nada.
Continuo pelo shopping. Fico pensando na possibilidade de chamar os duendes para ajudar o Brasil a tornar realidade as previsões que todo brasileiro gostaria de fazer. De que o país vai crescer e livrar-se de todos os seus problemas, o apagão entre eles, e de que, para a felicidade do povo, venceremos a Copa do Mundo de futebol de 2002, pela quinta vez.
A minha própria previsão é de um próspero e feliz Ano Novo para todos os leitores. Essa não vai falhar, tenho certeza.

23 de dezembro de 2001

Noite amiga

Jornal O Estado do Maranhão
É de Machado de Assis o famoso verso “mudaria o Natal ou mudei eu?”. É parte do “Soneto de Natal”, que fala de um homem que “naquela noite amiga” relembra seus dias de garoto. Quer, melancólico, reviver com versos as impressões de sua infância feliz. Mas, frente à folha branca, que hoje seria a tela do monitor de vídeo do computador, a inspiração se ausenta, “frouxa e manca”. Só lhe ocorre “o pequeno verso”, que se tornou grande com o correr dos anos.
Que a expressão tenham permanecido, a ponto de entrar para o patrimônio particular de nossa bela língua, como um baú de onde todos podemos tirar um quinhão de filosofia popular e de senso comum, é prova da força extraordinária do fundador da Academia Brasileira de Letras. O soneto começa dando a impressão de desejar falar exclusivamente sobre o dilema do homem comum, dilacerado entre o desejo de expressar sentimentos e a incapacidade de fazê-lo.
Exatamente como Pestana, do conto “Um Homem Célebre”, do próprio Machado. Sendo um compositor de sucesso, de polcas muito populares, o personagem não conseguia compor peças clássicas, como gostaria. Quando sua mulher morreu, na noite de Natal, ele jurou compor um réquiem para a missa de um ano da morta. Em vão. Só lhe saíam plágios involuntários de Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann e de outros.
O soneto termina, então, em uma nota surpreendente, com a famosa pergunta. De repente, somos transportados do problema existencial da oposição entre querer fazer e ter a capacidade de fazer, para o outro, muito mais abrangente, o da mudança versus permanência, que tem criado muita discussão entre filósofos, de verdade e de botequim, com imenso gasto de tempo, tinta e papel.
É claro que a pergunta é apenas retórica. Bem sabe Machado que o Natal mudou, como nós mesmos, o tempo todo.
Quem não se lembrará dos natais de sua época de criança? Ia-se dormir cedo para receber logo os presentes que Papai Noel vinha trazer. As tentativas de ficar acordado, mas de olhos fechados, fingindo estar dormindo, esperando o bom velhinho, eram inúteis. O sono sempre vencia a ansiedade e a curiosidade. Quando se percebia alguma coisa, os presentes já estavam debaixo da cama.
Fico a imaginar, muitas vezes, meus pais entrando no quarto, na ponta dos pés, contemplando nossos rostos sonhadores de crianças, para cumprir a tradição milenar, eterna, de nossa cultura. Quem ficava mais feliz? eles ou os filhos? Vejo hoje que acordávamos com a sensação de que a felicidade era o estado natural e permanente do ser humano.
Mudou o Natal, afinal? Lembro que os brinquedos não tinham sofisticação nenhuma, comparados com os de agora, sendo relativamente caros pelos padrões mais recentes. A fábrica de brinquedos Estrela tinha um tal domínio do mercado que ficávamos decpcionados, se ganhávamos um de outra marca. Em compensação, a variedade era menor, com escolhas mais restritas. Acho curioso os papais noéis de hoje, com aquele ho-ho-ho meio ridículo, copiado dos americanos.
Mudamos nós? Mudamos. Nossas atitudes se modificaram, muitos preconceitos caíram, somos mais tolerantes, melhoramos materialmente de vida. Mudamos nossa maneira de querer mudar o mundo. Agora, tentamos transformá-lo com mais cuidado, para evitar a repetição dos desastres humanos e sociais que vimos no século XX e continuamos a ver neste.
Mas, acho que foi na maneira de presentear que mais alteramos nosso comportamento. Passamos a encarar essa simbologia da amizade como mera obrigação. O dar e receber presentes no Natal perdeu um pouco o espírito natalino. Muita gente não faz mais a ceia de Natal. Prefere viajar,  fugindo do estresse urbano, para encontrar nas estradas congestionadas, e nos aeroportos e aviões cheios, mais estresse.
O fato é que, mesmo mudando, o Natal permanece como o metáfora da paz universal possível, apesar da violência e irracionalidade do mundo em que vivemos. Esse é, para mim, hoje, seu verdadeiro sentido. É o que permite desejar feliz Natal a todos.

16 de dezembro de 2001

Cantar

Jornal O Estado do Maranhão
A próxima terça-feira, dia 18 deste mês, será o dia do Coral João Mohana da Auditoria Geral do Estado – AGE fazer sua primeira apresentação, no centro administrativo do Estado, às 17:30 h.
O grupo surgiu de uma iniciativa dos funcionários, por ocasião da implantação do Programa de Qualidade Total no órgão. A direção da casa acredita na importância dessa atividade para a criação de um clima de harmonia e entendimento entre os funcionários e, como conseqüência, para a melhoria dos serviços prestados à sociedade. Por isso, aceitou a sugestão e criou o coral, com o importante apoio da Fundação Estadual da Cultura, através de seu presidente, Dr. Bulcão.
Alguém poderia supor que pessoas que trabalham com balanços, balancetes, orçamentos, relatórios, informática, cálculos financeiros, como é o caso na AGE, não poderiam interessar-se pelo canto coral, visto como atividade incompatível com as outras. A verdade, no entanto, é outra. Apesar de terem objetos diferentes, todas elas são iguais na satisfação que proporcionam a seus praticantes.
Vejo, por exemplo, em todos os funcionários da Auditoria, o orgulho de realizarem um trabalho, o de controle interno do Poder Executivo, reconhecido na administração estadual como de alto nível. Para os bons profissionais como eles, tal reconhecimento compensa a eventual aridez dos meios usados em seu trabalho. Afinal, a deles é uma tarefa nobre, a de evitar o desperdício de recursos públicos, saídos de nossos próprios bolsos.
O orgulho é semelhante ao proporcionado pelo coral a seus componentes, assim como a todos os outros companheiros que, talvez por julgarem-se sem dotes para o canto, apenas acompanham, mas com muito interesse, os progressos durante os ensaios. O canto em grupo, cujos bons resultados dependem não apenas do esforço individual, mas do esforço coordenado tendo em vista um fim único previamente acordado, que é um repertório a ser bem executado, provoca também esse mesmo sentimento de orgulho. Vale aí o lema “um por todos, todos por um”. Tudo isso fala, certamente, à alma e ao coração de todos.
Mas, ninguém se engane. Alcançar a beleza nascida do canto depende de freqüentes ensaios, duros exercícios tão exigentes quanto as atividades de controle interno.
O nome do coral, João Mohana, é uma homenagem a um homem que dedicou grande parte de seu esforço intelectual, durante trinta anos, à reunião de um riquíssimo acervo musical, motivo de satisfação para nossos conterrâneos. Constituída de músicas de compositores maranhenses ou por eles recolhidas, a coleção contém 2.125 partituras de missas, marchas, óperas, operetas, ladainhas, valsas, hinos, pastorais, dobrados, polkas, sambas.
João Mohana, de uma família de imigrantes libaneses, era médico, sacerdote, escritor e membro da Academia Maranhense de Letras, onde ocupou a cadeira número três. Escreveu dois romances, Maria da tempestade e O outro caminho, este premiado pela Academia Brasileira de Letras. Publicou vários livros de aconselhamento para casais. O mais conhecido é A vida sexual dos solteiros e casados, best seller no Brasil e no exterior. Suas obras estão traduzidas em vários idiomas. Ele faleceu em 1995.
A regente é a professora Zélia Matias, da Escola de Música do Maranhão. Sua competência é indiscutível. É uma qualidade necessária, mas não suficiente para o sucesso de um empreendimento desse tipo. Foram sua paciência, dedicação e persistência os principais ingrediente na manutenção da coesão do grupo e da consciência de que somente o esforço, não digo uníssono, pois o coral tem quatro vozes, mas conjunto, na mesma direção, seria capaz de fazer o coral ouvido e apreciado.
Dizem que quem canta seus males espanta. Pode ser. O coral João Mohana irá cantar, porém, não para espantar seus males. Eles são poucos e passageiros. Será, também, para despertar naqueles que irão escutá-lo o sentimento de comunhão com seus semelhantes que só a música, sob a inspiração de sua musa, Euterpe, pode criar em nós.

9 de dezembro de 2001

A tia

Jornal O Estado do Maranhão
Sou de uma geração criada em famílias grandes. Grandes não apenas porque os casais tinham muito mais filhos do que têm hoje, mas, também, pela convivência das gerações. Tinha-se contato freqüente, além dos irmãos e dos pais, com tios, primos e avós. O estilo de vida era outro e as exigências de sobrevivência econômica menores. Havia sobra de tempo para uso em formas de socialização hoje em desuso.
Sem a televisão, computadores e jogos eletrônicos, as crianças tinham a oportunidade de estar mais vezes com as outras de sua idade. Os adultos podiam visitar os parentes e amigos à noite ou em fins de semana, sem nenhum sentimento de culpa pela conversa jogada fora. Os aniversários eram grandes e alegres reuniões familiares nas quais o espírito de camaradagem espontânea estava sempre presente. Ou dizer isso, agora, será mera idealização? Fico sem saber ao certo. Em famílias grandes, os conflitos são inevitáveis.
Entre as minhas tias, uma participou mais de perto das vidas de todos os sobrinhos. Foi a tia Dayse. Para imensa tristeza da família, ela acaba de morrer, sem filhos biológicos, com a idade de oitenta e um anos. Faço este registro por achar que não apenas os famosos e ricos merecem necrológios. Talvez eles sejam os menos precisados dessas homenagens, por já receberem sua cota  de muitos e entusiasmados elogios em vida, algumas vezes até com justiça.
Única dos nove irmãos a entrar no novo século, foi a eles se juntar na desconhecida e misteriosa terra do após vida. Por que nunca se casou? Não sei. Sabe-se de olhares para os rapazes de sua época, sendo mais de uma vez correspondida. Nunca chegou, porém, a falar sobre o assunto. Eternos, esses mistérios do coração! Tenho comigo, porque conheci seu amor pelos sobrinhos, que ela pensava ser impossível, casando, ter a quantidade de filhos que veio a ter sendo tia-mãe, como foi. Escolha admirável.Ajudou a criá-los todos, com incansável dedicação. Foi assim com os filhos da irmã Aldenora e dos irmãos João e Carlos Saturnino Moreira, meu pai. Não apenas ajudou a encaminhar-nos na vida mas criou, mesmo, três de nós, minhas irmãs Lina e Erina e meu irmão João Carlos.
Quem, em tempos mais recentes, a ouvisse fazer referências a “os meninos” ou “as meninas” não pensaria que ela estava falando de pessoas de quarenta ou cinqüenta anos, ou mais, que já lhe haviam dado netos e até bisnetos. Não dizem que, para as mães de verdade, os filhos nunca crescem? São sempre frágeis e desamparadas crianças sem capacidade para enfrentar o mundo cruel lá fora, na ausência da proteção materna? O melhor a fazer é protegê-las carinhosamente, as pobres criaturas.
Aí está a origem de sua preocupação, quase uma obsessão, com a alimentação das “crianças”. Durante os meus dez anos de residência em Brasília, eu vinha muitas vezes, a serviço, a São Luís e ficava com ela. As ofertas, quase imposições, de papas e mingaus, na hora de dormir, ou de doces e outros mimos o dia inteiro, era tantas que eu tinha de alegar ordens médicas ou o peso acima do normal para evitar os excessos. Resistir inteiramente era impossível, especialmente deitado na rede que ela armava quando eu chegava.
Uma das lembranças mais vivas para mim são suas celebrações gastronômicas. Nada era combinado. Mas sabíamos que, se aparecêssemos na casa dela, antes de seguir para os festejos de Carnaval ou para os arraiais de São João, iríamos encontrar o mingau de milho, o bolo de tapioca, o manuê, o bolo de chocolate, os pudins, a feijoada, a galinha ao molho pardo, a bacalhoada, a peixada, a torta de camarão e tudo o mais que os médicos proíbem aos diabéticos como ela. Ela aproveitava essas ocasiões para alegremente contrariar as recomendações médicas.
Restam agora as lembranças perenes. Elas povoarão nossa memória. Seremos testemunhas da herança que a tia Dayse deixou. Não foi exatamente como a do poeta Tribuzi, de “filhos e sonetos”. Mas foi de sua parte mais nobre, a de filhos. E mais de netos, bisnetos e amigos.

2 de dezembro de 2001

O leão e cabul

Jornal O Estado do Maranhão
O leão de que falo não é nenhum valente guerreiro tribal afegão, possível herói da defesa de Cabul, na batalha recente que, afinal, não houve, pela sua posse. É o rei da selva mesmo, de nome Marjan, do zoológico da cidade. Seguindo sua natural propensão para devorar seres humanos insensatos o suficiente para aproximaram-se demais dele, especialmente quando o irrecusável apelo da fome se apresenta, abocanhou um combatente. O super-homem havia entrado na jaula para demonstrar valentia. O irmão do imprudente, num acesso de fúria santa que seria aplicada com melhores resultados nos campos de batalha, vingou-se jogando uma granada no animal, arrancando-lhe um olho e deformando-lhe o focinho. Pobre leão! Pôde apenas conservar sua vasta juba, restos inúteis de sua majestade espezinhada.
Melhor sorte teve outro rei, o do Afeganistão, Mohammed Zaher Sha. Retirado, em 1973, de posto vitalício, onde pretendia ficar por toda sua eternidade terrena, foi, deposto, para a Itália, cercado de poucos mas fiéis súditos e amados familiares. Saiu ileso, fisicamente, embora justamente desiludido com a ingratidão humana. Em Roma, teve o tempo de 27 anos para filosofar sobre a transitoriedade do poder e da vida e sobre a importância da lealdade, em falta no seu país.
Mas, ao contrário de seu colega animal, conservou algo de sua majestade, tendo melhor destino do que seus sucessores. Mohammed Daoud, seu substituto, foi assassinado em 1978; Noor Mohammed Taraki, substituto do substituto, foi chacinado, em 1979, por Hafizullah Amin, que lhe tomou o lugar, apenas para ser eliminado quando os russos invadiram o país e colocaram Babrak Karmal no trono de balanço.
Recebo, agora, uma mensagem, por correio eletrônico, de uma associação americana chamada Tiger Touch (Toque de Tigre), parte de uma rede chamada Great Cats in Crisis (Grandes Gatos em Crise), de organizações dedicadas “a resgatar e oferecer santuário para os grandes gatos com a vida em perigo”. Esse pessoal anda aflito com a sorte de Marjan e outros animais do zoológico da capital do Afeganistão. De tanta preocupação,  estabeleceram um fundo denominado The Marjan Relief Fund (O Fundo de Socorro Marjan), para prover a alimentação e os remédios necessários ao leão de Cabul.
Nada a reparar em tal esforço. É inequívoco sinal de nobreza de sentimentos. Vejam, por exemplo, o lema da organização: ”Leões precisam de amor também”. Além disso, dos dois reis, o mais indefeso e necessitado é o leão, embora ambos já estejam entrados em anos. O rei humano, em verdade ex-rei, dispensa qualquer proteção, pois já tem a dos amigos americanos, russos, ingleses, australianos e outros. Talvez por afirmar sua intenção de querer, apenas, colaborar para a formação de um governo de transição. Diz não pretender ter o trono de volta. Se for verdadeiro, tal desejo mostra bem sua diferença para o rei animal que jamais renunciaria ao poder. Mesmo velho e doente.
Mas, eu fico pensando nos súditos, ou ex-súditos afegãos. Não seriam eles os mais necessitados desse socorro? Não seria o caso de dar-lhes prioridade, mesmo que tão-somente por solidariedade, vamos dizer, de espécie, de humano para humano? Não foram eles que, muito mais do que granadas, receberam bombas sofisticadas, “inteligentes”, “cirúrgicas”? Cirúrgicas a ponto de, como em cirurgias de verdade, matarem o sujeito antes que ele desconfiasse da morte iminente, o que não deixa de ser um verdadeiro ato de piedade cristã, por evitar às vítimas a angústia de encarar o fim inevitável.
A Tiger Touch diz reconhecer a ocorrência de “muito sofrimento humano”, mas que “nós somos também responsáveis pelos animais que mantemos cativos”. Correto. No entanto, não será mais humano dar prioridade ao alívio da dor humana? Alguém acha que os afegãos, seja de que etnia forem, não são humanos, são feras?
Afinal, quem é mais feroz? O leão, tão maltratado e humilhado pelos homens, ou os homens, destruidores impiedosos de seus semelhantes e de animais?

Machado de Assis no Amazon