31 de outubro de 2004

O verbo é Chagas

Jornal O Estado do Maranhão 
O verbo é o princípio de tudo. Ele nos fez e nos faz humanos, nos inventou, reinventou e reinventa permanentemente. É a própria essência da interminável luta pela comunicação significante com nossos semelhantes, quantas vezes frustrada, mas indissoluvelmente parte da nossa natureza. Ele nos distingue como superiores – o antropocentrismo aqui é justificado – aos seres dos quais, não fora por essa diferenciação tão cotidiana, todavia tão poderosa, estaríamos separados tão-só por alguns genes. O verbo, sim, é o inventor daquilo que chamamos de espírito ou alma.
Mas, como todos nós aprendemos à custa de muitos desencontros e desentendimentos, o manejo do verbo não é trivial, sendo embora uma faculdade distintivamente humana. Queremos dizer uma coisa e dizemos outra. Erramos no tom, erramos nas palavras, erramos nas frases. Sem remédio, pois o dito não morre depois de enunciado. Ele somente começa a viver naquele dia, como anunciou Emily Dickinson e como o prova a obra de José Chagas. Dizemos, então, de novo (a mesma coisa?) e temos a ilusão de dizer diferente e melhor. Em vão, porém. Somos Sísifo, sempre rolando uma grande pedra até o topo da colina e de novo a levando até lá, após ela rolar de volta até embaixo. (Contudo, vale a pena a luta com as palavras!).
Quantos escapamos da armadilha contida nesse esforço sem fim de aproximação com os nossos semelhantes? Quantos conseguimos fazê-lo e criar beleza ao mesmo tempo? Mas, pensemos por um momento. A comunicação com o outro, o saber achegar-se pelo uso artístico da palavra, e a criação do belo, como no caso de José Chagas, não serão a mesma coisa?
Isso que agora tento expressar com tanto esforço e cuidado me foi sugerido pelo reconhecimento dos maranhenses, nestes dias, à excepcional qualidade da obra dele, nos seus oitenta anos. Praticamente, tudo sobre suas incomparáveis qualidades de homem e escritor, já foi dito. Acrescento, apenas, uma pequena nota.
Quando leio Chagas, penso no acerto da afirmação de Ezra Pound de que “os artistas são as antenas da raça”, ou na de Friedrich Hölderlin de que “o que fica o fundam os poetas”. Não falo, portanto, exclusivamente de sua raríssima habilidade verbal, que nos deixa admirados e humildes, não humilhados, antes exaltados, e nos dá a sensação de ser, para ele, o ato de escrever, mera questão de ir arrumando as palavras e as idéias com certa displicência e bastante naturalidade, como quem monta um quebra-cabeça em que tudo se encaixa com perfeição e nada falta nem é supérfluo no final. Elas parecem lhe chegar submissas, com pedidos de um sopro especial de vida, significados inesperados, construções surpreendentes. São imediata e gentilmente atendidas.
Falo também da capacidade dele de ir além do domínio da técnica de um artesanato verbal singularíssimo, a fim de captar as angústias, desejos e aspirações de sua sociedade e de seu tempo, sendo simultaneamente universal e atemporal. Nisso está, sem dúvida, a marca dos grandes escritores. Falar de sua aldeia para falar do mundo e falar de hoje para falar dos eternos dramas humanos. É fácil, por isso, perceber por que Chagas é verdadeiramente uma daquelas antenas.
Se ele o é, nós, que não somos, devemos deixar que nos guie. Assim, melhor entenderemos São Luís, sua mais bela e constante Musa, seus prédios, seus azulejos, suas praças, suas marés, suas palafitas, suas pontes, suas pedras, seus meio-fios e veremos a cidade e seus habitantes como o microcosmo da humanidade e seus lugares de morada em qualquer época.
O verbo é o princípio de tudo, já sabemos. Porém, o verbo, como acabamos de notar, é também Chagas, com sua força fundadora igual àquela percebida por Hölderlin. Seu nome convocará sempre visões de grande arte.

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