22 de maio de 2017

Força, Temer

Por Luiz Alfredo Raposo
O caso é o seguinte: Temer vinha trabalhando direitinho. Tinha a agenda certa e estava a realizá-la com habilidade. Resultado, o temporal aos poucos se dissipava: a produção ensaiava uma recuperação, depois de nove trimestres seguidos de queda contínua; a inflação anualizada despencara dos dois dígitos, em 2015, para pouco mais de 4%; as demissões estancaram, e, em fevereiro e abril, o quadro até se reverteu. Faltava, para dar força e estabilidade ao movimento de recuperação, resolver a grave questão do déficit primário crescente, diluvial que apareceu, desde 2013-14, no Orçamento da União (e dos Estados). Déficit que contamina a economia, desencorajando os investimentos e o próprio consumo de bens duráveis. E que levou à queda desastrosa da demanda e à crise econômica.
A solução era uma reforma previdenciária, que atenuasse o crescimento da despesa-mãe desse déficit, a despesa previdenciária. A demografia passou a trabalhar contra e, agora, a onda de pessoas chegando à idade de aposentadoria supera cada ano mais o contingente dos que chegam à idade produtiva (e isso, prevê o IBGE, vai durar uma geração). E, o que é ótimo, mas tem implicações sobre as contas da Previdência, os aposentados vivem cada vez mais: passam mais tempo nas costas dela. Deselegante um programa mata-velhos (tipo aposentadoria por dez anos), o jeito era a reforma nas regras, que levasse a um adiamento da aposentação e, sobretudo, a uma redução da média dos benefícios.
Particularmente grave é a situação da Previdência pública, onde a aposentadoria média é de sete vezes a média do INSS. Para operar a redução, era forçoso um rebaixamento de teto e o governo, corajosamente, propôs para o funcionalismo o mesmo teto do INSS. Aposentadoria maior? Paguem os interessados um plano de previdência complementar, nos moldes do que eu, funcionário de carreira de uma estatal, pago há 40 anos, mesmo já aposentado. E me consome perto de 11% do complemento.  Isso, é claro, mexe com a alta burocracia: juízes, procuradores, delegados, auditores etc. Não obstante a previsão de um período de transição, que cobra pouco dos que já atingiram a reta de chegada. Mas a grita tem sido grande contra “a perda de direitos dos trabalhadores”, embora os direitos que a reforma atingirá sejam esses, da camada mais alta, em geral esclarecida e progressista, alistada na luta contra as desigualdades sociais...
Era preciso também favorecer a empregabilidade, modernizando a legislação. Editada 70 anos atrás, ela hoje dificulta de tal forma o emprego que, no momento atual, em que a produção se recupera, o contingente de desempregados continua a aumentar. Em particular, o movimento de contratações ainda é nulo, quando a economia já cresce a um ritmo superior a 1% a.a. Pois bem, É DESSAS MEDIDAS E DE OUTRAS DO TIPO QUE DEPENDE NOSSA VIDA, NOSSO BEM-ESTAR! O governo atual teve a coragem de apresentar propostas em favor das quais, nos anteriores, apenas algumas vozes isoladas falavam timidamente. No Congresso, elas foram bastante “abrandadas”, à custa de muita negociação. A previdenciária, na versão final, já chegou a ser chamada de meia-reforma... É a possível, foi a constatação do governo.  Ficaram, neste mês de maio, prontas para serem votadas. E é aí que se desfere o golpe que põe o governo e o país em knock down.
Como foi? Um empresário sob investigação, conhecido como grande financiador de políticos (sua lista contém cerca de 1.900 deles), resolve no passado mês de março fazer uma delação premiada. Jogo interessante entre o crime e a Justiça, que começa por uma proposta desta: me descobre um crime encoberto de alguém, e eu te dispenso de pagar por crimes teus já descobertos. Os estatísticos do futuro vão se divertir, calculando a taxa de impunidade associada a esse jogo. Enquanto isso, a delação vai se enriquecendo de variantes e modalidades. Assim é que, segundo a versão mais difundida (há outra que inverte a ordem dos eventos), o tal empresário, assinado o contrato, consegue de um juiz da Corte Suprema autorização para ESPIONAR o presidente da República. Não é estranho? Esse juiz, dada a gravidade do fato, apesar de pessoal e sigilosa a atribuição, deveria pelo menos ter consultado antes a presidente do STF. Ou algum colega de reconhecida serenidade e discrição. Consultou? Não há notícia, até prova em contrário concedeu sozinho essa autêntica carta de corso. Fosse o tal empresário apresar o que encontrasse. Ao que tudo indica, prometia ele provas do envolvimento do presidente em safadeza grossa, no âmbito da Lava Jato. E, não bastasse a autorização recebida, ainda lhe foram oferecidos pela PGR e PF treinamento e meios para realizar sua operação. Tudo preparado com minúcias de folhetim, cuidados de diretor montando uma cena de novela de TV. Não é estranho?
Solicitado, depois de alguma relutância (confessa o delator), o presidente recebe-o em casa para uma conversa informal, tarde da noite. E a paixão anti-Temer vê crime no fato de o presidente receber o delator, receber em casa, receber informalmente, em horário avançado. Crimes novos, nunca dantes cogitados, acautelem-se os cidadãos. Agora, há o crime de receber, de ouvir e até de admitir visitas depois do horário costumeiro... Quem cogita a hipótese de terem tais circunstâncias sido ditadas pela agenda do chefe do Executivo, que não se sabe quão sobrecarregada estava?   Mas o certo é que o delator volta com uma gravação, e o que se ouve? Trechos de uma conversa protocolar, onde a primeira palavra do delator é declarar o caráter de cortesia da visita  e contabilizar o “muito” tempo, desde o último contato pessoal entre ambos. E o presidente já se livra aí, pelo menos para mim, da suspeita de uma societas sceleris, de uma éntente criminosa permanente com o delator. Dois sócios em qualquer atividade não passam tanto tempo assim sem se falar...
Depois, o delator se queixa de dificuldades de atendimento no BNDES. Queixa sintomática, sinal de que os tempos não são mais aqueles em que ele levantou bilhões de reais para se expandir, comprando empresas (investimento financeiro tradicionalmente fora do escopo do Banco e fora do Brasil, mas tornado usual na era dos campeões nacionais). Faz também alguns pedidos. O presidente transfere-os para um assessor. Um governador, um prefeito de qualquer cidade maior que faria num caso assim? Pegaria a caneta, iria preencher formulários e despachar os pedidos, responder diretamente às reclamações? Claro que não, faria o mesmo que o presidente E o presidente declarou sábado que nenhum desses pedidos foi atendido. E isso não foi negado até aqui. Onde, então, qualquer jogo de favores?
E vem, agora, o ponto crucial. Começa o delator a falar do “Eduardo” e, após referir uma mesada que estaria lhe dando (a fita fica meio obscura porque há ruídos e não se tem a contextualização do caso), ouve do presidente algo que soa como uma aprovação. Pronto, era a prova criminis esperada, pelos investigadores. E eu acho estranha essa prova. Se o delator contou o fato, o presidente claramente não sabia dele. E se falou de doações até prova em contrário sem fins ilícitos, não ver nelas nada grave tampouco configura crime. Nem uma ordem: o delator já estava contando o que fizera, sem precisar de ordem ou pedido algum.
Além do mais, aceitar tal “prova” remete universo do contrafactual. O que a imprensa divulgou, nos últimos meses foi, um, que a Justiça decidira negar a Cunha o benefício da delação premiada. Marcá-lo para exemplo e escarmento das gentes, mantê-lo até o fim seus dias no xilindró, para que todos se convençam de que, doravante, corrupção ativa ou passiva é crime que não compensa neste país. Dois, que, bloqueados seus bens e disponibilidades, estaria ele sem recursos para o pagamento dos advogados.
Suponhamos, porém, a pior hipótese: que o presidente temesse que Cunha, com ou sem delação, resolvesse abrir a boca para acusá-lo (de que?): quando é que isso aconteceria? Se demorasse um mês, já encontraria sua missão presidencial praticamente cumprida, aprovadas as reformas. Donde se conclui que não poderia um escândalo desses ter chegado em tão boa hora para os opositores. Ainda a tempo de defenestrar Temer e enviar seus projetos das reformas para o arquivo morto da história.
Mas, o mais estranho de tudo é que, dada (ou não) a ordem de espionagem, um juiz aceite como válida e se apresse em dar a público uma gravação que não atende ao requisito da lei: servir de instrumento de defesa ao delator. Em nenhum momento aparece ele sob ataque, sofrendo chantagem ou recebendo “cantadas” para praticar alguma imoralidade. Só uma explicação me ocorre: o ministro Fachin, nesse período, andou possuído de uma fúria punitiva como quase nunca se vê na proba carreira de um magistrado como ele. Talvez também tenha tido ganas de provar à opinião pública o poder de protagonismo do STF, algo obscurecido pela ação da Lava Jato. As reformas, o Brasil, o Brasil que se exploda, como diria aquele personagem humorístico.
Ah, numa hora dessas nem o humor negro se permite. O jovem Nietzsche ficou famoso com sua tese doutoral, intitulada O Nascimento da Tragédia. Enquanto escrevo, estou a acariciar a lombada do exemplar que possuo, em edição espanhola da Alianza Editorial. Nela vem a explicação: fatalistas como eram os gregos, para eles a tragédia se dava quando os personagens entravam em luta, movidos por paixões contrárias a seus interesses, a suas pulsões vitais. O Brasil vive à beira dessa hora agônica.  Dançam e cantam os adversários em volta de um governo ferido, dando como certo que liquidarão, com sua vida, sua obra nascente. Se tiverem forças para tanto (e brigo e rezo para que não tenham), e completarem esse trabalho, depois as paixões impedirão a saída. Procurarão o santo homem que nos redima, mas mesmo que o encontrem, é certo que seu caminho será de pedras. A santidade o perderá. E eu me lembro daquele que os cristãos consideram o santo dos santos e se findou numa cruz, entre dois malfeitores. Por decisão dos eleitores, que preferiram Barrabás... E o Barrabás de hoje poderia ir flanar livre e leve pelas ruas de Nova Iorque. Seja lá como for, uma coisa é certa: perpetrada uma enormidade dessas, o Brasil, com todos nós dentro, no prazo de cinco anos, regressará ao caos bíblico original. Podem anotar.
Recife, maio/2017

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