31 de dezembro de 2005

Papagaios, Patos, Gatos E Perus

Jornal O Estado do Maranhão  
Seu Antônio, viúvo, aposentado solitário, morador de Brasília, tinha um papagaio havia mais de quarenta anos, sua única companhia depois da morte da mulher. (Não sei se o animal tem vida tão longa, confio na informação da TV.). Tinha também um vizinho inimigo de papagaios, à semelhança daquele outro de Timon, no Maranhão, que não gostava de cachorros, em especial de Bingo, que o mordeu, despertando-lhe a ira, disso resultando denúncia à polícia e prisão do cachorro, humano também (como o papagaio), na divinatória classificação do ex-ministro do Trabalho, Rogério Magri, pois, como se vê hoje, bicho virou gente, a julgar por clínicas de estética, hotéis, academias de ginásticas e salões de beleza que antes serviam apenas aos chamados seres racionais, mas agora prestam serviços aos clientes de quatro patas, que fazem gato e sapato de seus pretensos senhores.
O caso do viúvo, porém, é outro. Ele queria apenas companhia confiável, alguém para lhe aliviar a solidão de eremita urbano. Escolheu um papagaio. O morador do lado, com certeza um defensor da natureza preocupado com os bichinhos, desde que ele não saia do conforto de sua poltrona em frente da televisão, resolveu dar um presente de Natal, ou de Ano Novo, e de grego, ao aposentado e o denunciou às autoridades encarregadas da defesa da vida selvagem. Selvagem, todavia, foi a reação da burocracia estatal, opressora contumaz do cidadão ordinário (ordinário no sentido de comum e não de falto de qualidades.). O papagaio foi depressa levado pelos fiscais, não com a finalidade de ser mandado de volta à natureza, pois a ela ele não se readaptaria, depois de tempo tão alongado em apartamento, mas para continuar engaiolado no jardim zoológico da cidade onde a poucos faz bem, mas de seu ex-companheiro ameaça a vida, pela ausência involuntária, conforme se percebeu da lamentação impotente do pobre homem na televisão.
Num país como o nosso onde as leis não pegam, as florestas são devastadas, os esgotos são lançados em quantidades crescentes nos corpos hídricos, a poluição do ar aumenta de maneira exponencial com o crescimento das zonas urbanas, o Ibama, órgão encarregado de fazer cumprir a legislação ambiental, de fato a fez cumprir com rigor, por fim mostrando a que veio. Morra o homem, viva o papagaio, que de qualquer modo viveria, e bem viveria, com seu dono, melhor do que com o Ibama, e prevaleça a aplicação irracional, insensível, injusta e burocrática da lei. Se a questão é apenas produzir um papel qualquer autorizando a guarda do animal por seu Antônio, qual a razão então para tomar o papagaio e depois devolvê-lo ao apartamento, supondo ter sido essa a intenção dos fiscais? Queriam, tão-só, fazer o homem sofrer? Mostrar um serviço que não prestam nos assuntos importantes de verdade? Enfrentariam com a mesma audácia contrabandistas de madeiras nobres da Amazônia?
Não culpo, no entanto, os funcionários. Num órgão que não os treina, não lhes dá incentivos nenhum, não os remunera de forma adequada nem lhes equipa bem e, além disso, recebe apoio mínimo do governo, como tem sido regra nesta e em quase todas as administrações federais e estaduais, hábeis em fazer discursos ecologicamente corretos sem contrapartida de medidas concretas, alguma coisa esses servidores irão mesmo fazer a fim de justificar a manutenção de suas funções. Nem sempre boa coisa sairá dessa combinação de infelizes circunstâncias.
Enquanto não se concertam as coisas, pessoas como seu Antônio, que já passaram o tempo de posar de gato, pagam o pato, só por terem papagaios. Mais seguro seria criarem perus de festa de fim de ano. Pelo menos com esses o Ibama não se preocuparia, mesmo assados no forno, depois de forçados a beber cachaça e degolados.

18 de dezembro de 2005

Ratos e Homens

Jornal O Estado do Maranhão 
Pesquisas científicas que procuram maneiras de utilizar células-tronco em seres humanos provocam intensos debates, pelas dúvidas que suscitam no campo da ética. Ao contrário das demais células, elas são capazes de se diferenciar, constituir diferentes tecidos em nosso organismo e de se auto-replicar. No entanto, tão-só as embrionárias, assim chamadas por serem encontradas nos embriões, podem se diferenciar ou se transformar em qualquer um dos 216 tecidos do corpo humano. O restante das células-tronco podem, em um caso, modificar-se em quase todos os tecidos, menos na placenta e anexos embrionários; em outro, se diferenciam em poucos; no último caso, em apenas um tecido. Elas poderão ser úteis, para citar somente dois casos de aplicação promissora, na cura da diabetes e na regeneração de lesões graves. (Não, eu não me tornei de repente um especialista no assunto, só usei a internet para obter essas informações no sítio do jornal O Estado de S.Paulo, na seção sobre educação).
Pois bem, acabo de ler na imprensa que o biólogo paulistano Alysson Muotri, à frente de equipe de cientistas do Instituto Salk de Estudos Biológicos, nos Estados Unidos, injetou células-tronco embrionárias humanas (CTEHs), ainda na barriga da mãe, no cérebro de filhotes de ratos. Elas se integraram com perfeição a estes, criando uma cobaia que passou a ter um órgão em parte humano, pelo menos do ponto de vista físico. Após o nascimento, os cientistas os sacrificaram com o fim de examinar sua estrutura cerebral. Descobriram que as CTEHs se espalharam por toda a massa craniana dos filhotes e conectaram-se com as células comuns. Na opinião do Dr.Allysson, as perspectivas são boas: “Poderíamos transplantar CTEHs derivadas de pacientes com Alzheimer [por clonagem] para o cérebro de animais normais e observar a capacidade de integração e diferenciação delas”. Eles funcionariam como modelos de doenças neuronais e seriam de fácil observação.
Se, como acabamos de ver, é possível injetar células humanas em animais por que não seria admissível o processo inverso? Isso com certeza não foi feito ainda pelos cientistas, mas não tenho dúvida de que a natureza já o fez há muito tempo, em verdade desde a humanidade se pôr de pé e andar ereta, olhando para a frente, achando-se superior a seus parentes do reino animal, com o nariz levantado, como a grã-fina de Nélson Rodrigues, no Maracanã. Em algum ponto da evolução das espécies (com a devida licença dos criacionistas) houve a transferência de células-tronco de ratos para certo tipo de seres humanos. Comprovaremos tal afirmação se observarmos com atenção o comportamento de exemplares com forma humana e mente de rato, que agem o tempo todo como roedores, sendo a comparação desfavorável a estes, que roubam e roem, quando roubam e roem, apenas pela instinto de sobrevivência e não pelo desejo de ostentação de riqueza e vontade de mando, intrinsecamente ligados ao tamanho do patrimônio desse pessoal.
A cena política brasileira nos fornece hoje incontáveis exemplos disso, que não é uma teoria, mas uma constatação: caixa dois, caixa três, recursos não contabilizados, mensalão, contas no exterior, dólares na cueca, mentiras nas CPIs do Congresso, surtos de “eu não sabia, não vi, estava bêbado”. Humanos com células-tronco de ratos, auto-intitulados, até bem pouco tempo atrás, monopolistas da honestidade e da pureza de intenções, roubaram dinheiro público, mas roubaram também as esperanças de seu seguidores. Agora tudo que desejam é ser iguais a quem acusavam de ratos, para assim justificar seus atos. Se todos são roedores, pensam, ninguém corre o risco de cair na ratoeira nem esta será sequer armada, em concordância com a oposição, que muito já comeu de seu delicioso queijo suíço.

11 de dezembro de 2005

Duas Mulheres

Jornal O Estado do Maranhão  
Aquela mulher que vemos ali acaba de se levantar. Irá silenciosa preparar o café da manhã para a família pobre de um bairro pobre, na manhã que mal se inicia, depois de tomar banho de água fria, estarei ficando velha, perguntará a si mesma no banheiro, e pensará no marido, depois chamará os filhos para a escola, o mesmo marido para o trabalho, a todos para a vida diária corriqueira, sem novidades, exceto aquela que todos saberão no fim do dia, de que ela só terá consciência no último instante e apenas por um brevíssimo momento ou quem sabe não terá, não compreenderá a origem da sensação estranha de calor e leve dor em todo o seu frágil corpo. Arrumará as roupas de todos, lavadas na noite anterior, depois que chegou tarde do trabalho, fará recomendações, não cheguem tarde, cuidado na rua, lavará a louça e deixará a mesa pronta para o almoço pois àquela hora ainda não estará de volta. Agora chama a filha, hoje tu vais comigo, é sábado, tem serviço extra, a patroa precisa de nós, estou com uma dorzinha de cabeça, não sei o que é, poderás me ajudar, sempre é um dinheirinho a mais e me aliviará de pegar no pesado, a filha dirá que vai mas não quer voltar tarde.
Logo tomarão o ônibus lotado, a passagem está cara, os assaltos não param, o motorista dirige em alta velocidade, se não correr será demitido, até chegarem as duas, como acabam de chegar, à parada certa, na avenida do bairro de gente rica. A mãe falará no caminho sobre o trabalho, é cansativo, não se pode deixar nada empoeirado, a comida tem de sair na hora certa, emprego está difícil, falará sobre os outros filhos, os vizinhos, o vira-lata de estimação, a filha parecendo ouvir, mas pensando em que mesmo? Quem poderá agora saber? Talvez no namorado, na festa de hoje à noite, afinal é sábado, dia de divertimento, de não pensar a sério na vida, talvez no amor, na felicidade ou na infelicidade, dia de encontrar os amigos que, como se verá mais adiante, virão, eles, vê-las à noite mas elas não os verão jamais. Já desceram, vão andar alguns metros até a casa dos patrões, não precisarão atravessar a avenida. Chegaram e bateram. Bom dia.
Os dias não têm sido bons, as contas estão aí para pagar, é água, é luz, e o dinheiro sempre pouco, não dá pra nada, comprar os livros da escola das crianças é um sufoco, as roupas nem falar, mas, não demora muito, eles vão começar a trabalhar, não vai ser fácil, mas acabam arrumando emprego, dá pra estudar e trabalhar ao mesmo tempo, é o jeito, pelo menos estão estudando, hoje em dia tá tudo difícil com estudo, imagina sem estudo. O dia passa depressa, tem muita coisa pra fazer, mas hoje tem ajuda, fica mais fácil, daqui a pouco chega a hora do almoço, a comida está bem feita, parece de restaurante, o salário bem que podia ser maior, dava pra pagar as dívidas, comprar mais uns presentes no Natal. Depressa o tempo passa, que horas são? Tá na hora de voltar pra casa, até logo, não, até segunda-feira, a gente volta.
As duas mulheres agora caminham na noite, daqui a pouco alcançarão novamente a avenida, terão de atravessá-la, olharão para um lado e outro, quem sabe vem algum louco em velocidade, a mãe tomará a mão da filha, dessa forma se sentirão mais seguras, olharão novamente e caminharão para o outro lado e só a mãe verá as luzes dos faróis de dois belos e caros automóveis se aproximando lado a lado, como as duas, ainda tentará puxar a filha, protegê-la com uma só mão e com a outra parar os carros, depois sentirá uma onda de calor e fraca dor no corpo, como se o dia lhe tivesse tirado o vigor, e então não sentirá mais nada. Mais tarde a família e os amigos virão chorar. Não haverá protestos públicos, não haverá indignação coletiva, não haverá manchetes por mais de dois dias, não haverá nomes nem haverá culpados. Haverá o nada.

4 de dezembro de 2005

Brasileirão

Jornal O Estado do Maranhão 
O campeonato brasileiro de futebol, o Brasileirão, chega ao fim com sucesso hoje. Seria melhor não fosse pelo juiz que manipulou algumas partidas, anuladas de imediato pelo tribunal de justiça desportiva. A rapidez da ação evitou as usuais polêmicas, de resultados imprevistos sobre o andamento da competição.
O acerto da forma de disputa, a mesma adotada na Europa, levou a que as duas equipes mais eficientes neste ano, Corinthians e Internacional, de Porto Alegre, sejam as únicas com chances de alcançar o título, como, aliás, acontece quando o merecimento prevalece. A razão do êxito do Brasileirão está justamente aí, num sistema de pontos corridos, com rebaixamento e jogos de todos contra todos em dois turnos. Não é o caso da Copa do Brasil, torneio cujo objetivo é dar oportunidade de vencê-lo a times sem tradição nacional, com um pouco de sorte em pequeno número de partidas eliminatórias. Os méritos dessa boa organização são da CBF.
Quem não se lembra da reação da maioria dos times às inovações impostas há poucos anos pela entidade? Muita gente preferia manter, por meros interesses imediatistas e maus hábitos o sistema anterior, irracional e confuso. Este impunha inusitados critérios de classificação tais como renda, média de público e performance em temporadas anteriores. Juntava times com excelente campanha com os de fraca, para a formação de grupos, subgrupos e grupelhos, em fases e mais fases, até o último jogo, definidor do campeão num tudo ou nada. Em 2002 o Santos chegou em 8º lugar por pontos corridos e acabou campeão no torneio eliminatório final.
Esses e outros critérios muito pouco tinham a ver com atuação no campo e acabavam premiando os medíocres do futebol. Só por coincidência ganhava o melhor. Quantas vezes arbitragens fracas, ou até mesmo desonestas, ou o acaso de uma partida ruim em uma solitária ocasião, não destruíram em poucos minutos o trabalho de meses, na vigência desse sistema maluco de antes? Os instáveis regulamentos antigos favoreciam os times grandes e tradicionais, que, por terem criado fama, podiam se deitar na cama. Quem não tivesse tradição acabava excluído e impedido de crescer. Por outras palavras, era um sistema avesso a evolução, em prejuízo do futebol brasileiro.
Pois a CBF conseguiu acabar com essa confusão. Com a organização de agora, o Brasileirão sempre premiará o melhor. O regulamento não joga o destino dos clubes em um jogo apenas, mede o desempenho deles durante o desenvolvimento do campeonato, e não em uma partida só, e, assim, tende a ficar imune a tentativas de alterações depois do início da disputa. O acaso não tem vez na determinação do campeão, embora possa ter considerável influência no vencedor de cada encontro, como é da essência dos esportes coletivos e do futebol em particular.
Existem outras características capazes de manter o certame atrativo. Os 4 primeiros colocados representam o Brasil na Taça Libertadores da América e os 7 seguintes, na Copa Sulamericana. São 11 times com participação garantida em torneios internacionais. Na outra ponta, os últimos 4, hoje, de um total de 22 (em 2006 serão apenas 2 de 20) têm de lutar com o fim de evitar o rebaixamento à série B, de acordo com o regulamento, seguido com rigor nos últimos anos, sem as antigas viradas de mesa. Os times situados entre a 12ª colocação e a 18ª lutam, por um lado, com o objetivo de subir para a Taça Sulamericana e, de outro, evitar o rebaixamento. O interesse é mantido permanentemente.
Avançamos bastante. Falta ajustar nosso calendário anual ao da Europa, com o objetivo de evitar conflitos dos jogos da Seleção com os dos times de lá, onde muitos jogadores brasileiros jogam, evitando também que estes tenham de atuar pelo Brasil durante suas férias européias.

27 de novembro de 2005

Rotina

Jornal O Estado do Maranhão   
Num domingo de verão, fim da tarde, quando milhares de pessoas voltavam a Paris em seus automóveis, um engarrafamento paralisou na auto-estrada o trânsito em direção à cidade. Depois de algum tempo os motoristas se convenceram de não ser o problema temporário, mas de longa duração. Aos poucos, sem meios para escapar, depressa estruturaram uma pequena comunidade. Logo, porém, surgiram as mesmas relações humanas desumanizadas, se assim posso dizer, da sociedade maior de onde vinham, marca distintiva da vida nos nossos dias.
A primeira necessidade era estabelecer regras garantidoras da sobrevivência física de todos. Como assegurar o abastecimento de água e comida? Formaram-se grupos, surgiram chefes, conflitos, alianças. Muitos conversavam, falavam sobre suas vidas, desabafavam com gente nunca vistas em outra ocasião, pensavam nas obrigações que não poderiam cumprir, liam, sonhavam, amavam, odiavam. Criou-se um almoxarifado geral, organizou-se a distribuição de alimentos. Um homem se suicidou deixando uma carta a uma mulher e uma freira entrou em delírio. Ambos não haviam se adaptado à nova situação. Depois de vários dias os veículos começaram a andar, até se desfazer, por fim, o engarrafamento. Algumas pessoas, de tão acostumados à nova situação, aferravam-se à idéia de, no dia seguinte, desempenhar as mesmas tarefas do dia anterior na nova comunidade e não de seguir para casa “na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente.”
Esse é o resumo do conto “A Auto-estrada do Sul”, do escritor argentino Julio Cortázar, morto em 1984. A história pode parecer inverossímil, mas não é. Agora mesmo, conforme notícias da imprensa, vários estrangeiros estão morando há semanas no aeroporto de Cumbicas, em Guarulhos, São Paulo, porque a documentação deles está irregular. Estão impedidos de entrar no Brasil e, ao mesmo tempo, de sair do país, numa sala da Polícia Federal de 25m2, com sete poltronas reclináveis. Dividem a pia do banheiro, na lavagem de roupa suja, e a comida fornecida pelas companhias aéreas, mas têm dificuldade de comunicação, pelo desconhecimento do português. A solução simples de seus problemas – mandá-los de volta aos países de origem, mesmo sem passaporte – não aparece assim aos olhos da burocracia estatal. No lugar de origem não seria menos complicado regularizar os papéis deles?
As duas situações são na aparência fora do comum, uma ficcional, outra da realidade imediata, mas na verdade são corriqueiras nas relações de caráter superficial que mantemos com os outros em nossa sociedade, embora não as percebamos dessa forma. Em uma, a tecnologia, neste caso embutida nos carros, desenvolvida com o fim de tornar mais fácil nossas vidas e potencialmente capaz de poupar-nos tempo que poderia ser usado na melhoria de nossos relacionamentos, se torna uma armadilha, fator de convivência forçada e artificial. A recomposição, em pequena escala, do grupo social e a imposição de nova ordem reproduzem as mesmas características dos arranjos sociais de antes.
A situação do aeroporto não é diferente, em essência, da arapuca da auto-estrada, em seu potencial de desnudar o desamparo do ser humano e a superficialidade da comunicação entre eles no mundo de hoje. O poder da burocracia que oprime o homem comum, em vez de ampará-lo pelo uso racional da tecnologia disponível, o convívio forçado de estranhos, que, com tempo suficiente acabarão criando outra miniatura da sociedade moderna, com todas suas estruturas opressoras, o instinto de dominação de uma pessoa sobre outra, que sem dúvida irá aflorar, tudo isso aproxima a estrada do aeroporto.
O incomum aparente é de fato nossa rotina.

20 de novembro de 2005

Memória

Jornal O Estado do Maranhão  
A lei estadual há poucos dias aprovada pela Assembléia Legislativa que tem como objeto retirar da Fundação da Memória Republicana a posse do Convento das Mercês é uma tentativa de atingir José Sarney. Não é uma disputa jurídica, pois a opinião dos mais qualificados juristas maranhenses e de outros Estados diz ser perfeito o ato que convalidou a doação do prédio para a Fundação. A Academia Maranhense de Letras recebeu em doação do governo do Estado, em 1951, o prédio de sua sede na rua da Paz. O governador Sebastião Archer da Silva cometeu alguma ilegalidade ao sancionar a transferência? Haverá neste momento a disposição de aprovar lei retornando a edificação ao patrimônio público, de onde foi retirada de forma legal e legítima, como foi o Convento? Por certo, nós todos seremos julgados com severidade no futuro se essa lei de fato vigorar. A justiça ainda irá se pronunciar com serenidade sobre ela.
 Onde está a razão dessa atitude capaz de ameaçar a existência do memorial, protegido por lei federal, de um ex-presidente da República? Em outros países, e mesmo aqui no Brasil, como no caso do Memorial JK, iniciativas como essas recebem o apoio do poder público que se esmera em apoiá-las, por serem importantes fontes de estudo da história. Minas Gerais seria indiferente ou hostil a receber o acervo documental do governo de seus conterrâneos ex-presidentes? Não só o de JK, mas de todos os ocupantes do cargo ao longo de nossa história republicana. E São Paulo e o Rio Grande do Sul? A Califórnia rejeitaria homenagens a Ronald Reagan, um político muito popular, embora não fosse unanimidade naquele Estado americano e nos Estados Unidos, como ninguém é em lugar nenhum?
É evidente que não se trata tão-só do prédio do Convento, de sua parte física, de suas paredes, de seus alicerces, de seu chão, por si só coisas de valor histórico. Está em jogo um patrimônio com suporte material na forma de milhares de documentos oficiais e de livros doados por Sarney de sua biblioteca particular, entre eles obras raras, mapas, vídeos, fotos, filmes, etc., mas, em essência, patrimônio imaterial, intangível, de valor inestimável para nossa identidade como povo, impossível de ser avaliado em termos financeiros. Desejamos apagar nossa própria memória, deletar o passado? O prédio – não se precisa afirmar a necessidade de preservá-lo – estaria em melhores condições se a ele não tivesse sido atribuída sua função de hoje? Será preservado, caso essa lei seja confirmada?
Pretendem atribuir a Sarney a origem dos males do Maranhão. Ora, ela está, em grande medida, no final do século XVIII, quando se consolidou no Estado uma economia bastante concentradora da propriedade da terra e da renda pessoal por conta da aplicação de políticas mercantilistas do governo português encarnado no marquês de Pombal, o que nos deu, na economia brasileira, uma posição secundária com início na Independência no primeiro quartel do século XIX, quando o espaço econômico da nova nação começou a ser unificado e seu centro dinâmico se fixou, por diversas razões no Sul. Sarney sempre fez o máximo em favor do Maranhão, lutando, isso sim, para quebrar limitações estruturais bisseculares da economia maranhense. É crime, isso, sem chance de absolvição? É pecado mortal? Sua biografia está feita e bem feita. Nada nem ninguém poderá mais reescrevê-la.
A política não deveria constituir motivo suficiente para se confundir disputas corriqueiras do jogo democrático, como acontece em todo o mundo, com um vale-tudo que acaba atingindo nossas próprias tradições de cordialidade e civilidade. Não podemos permitir que as novas gerações sejam aculturadas num ambiente desse tipo. Elas precisam ter referências históricas – a trajetória de Sarney na política e na literatura é uma delas –, e culturais a lhes guiar os passos pela vida. Só assim poderemos ter certeza de serem nossos problemas de hoje, apenas assunto de historiadores no futuro.

13 de novembro de 2005

Gato por Lebre

Jornal O Estado do Maranhão 
Nos velhos tempos, o Partido dos Trabalhadores desejava ser diferente. Ele teria virtudes ausentes nos outros e estes teriam defeitos dos quais ele não padeceria. E assim se passaram 25 anos. Durante esse tempo se ouvia sobre os seus adversários a acusação de que eram corruptos e não faziam o necessário para tirar o povo da miséria porque lhes faltava “vontade política”, não uma vontade qualquer, como a insinuar nos partidos “burgueses” a existência de outra, a de desviar dinheiro público, e como se a resolução dos problemas nacionais dependesse só dessa vontade.
Para quem se dizia socialista ou marxista achar que apenas tal predicado dos dirigentes resolve os problemas de um país revela um idealismo filosófico – idealismo não no sentido comum referente a pessoas desprendidas, indiferentes à riqueza e de nobres ideais, pois já se sabe não ser esse o caso dos petistas – muito distante das teses materialistas nas quais a sociologia desse pessoal supostamente se funda. Falo do idealismo que atribui primazia às idéias e não à realidade, na sua explicação das ações humanas.
Aliás, esse idealismo coloca em dúvida a possibilidade de conhecimento da própria realidade, servindo tal idéia, parece, à esperança de certo grupo do PT de nunca se conhecer a origem do dinheiro usado na compra de alguns deputados, operação executada pelo tesoureiro do partido, em benefício da aprovação de projetos de interesse do governo Lula, e apelidada de mensalão pelo ex-deputado Roberto Jefferson.
Seja como for – idealista ou realista – o PT sempre repeliu qualquer identificação moral com o resto da turma e disso se orgulhava. A estrela vermelha na lapela dos militantes era uma forma de afirmar a diferença, de anunciar uma nova sociedade, um admirável mundo novo, quando afinal o poder fosse alcançado, como principiava a acontecer, pela conquista de várias prefeituras ricas de São Paulo e de diversos Estados. Aí veio a conquista do poder federal.
A nova administração petista adotou de forma correta, mas contrariando expectativa de seus próprios simpatizantes, a rígida disciplina fiscal e monetária da política econômica anterior, antes execrada como neoliberal. Pelo menos acertou em alguma coisa, pois quem estuda história econômica nunca viu a irresponsabilidade nesse campo produzir alguma coisa que não altas taxas de inflação, prejudicial em especial aos pobres. No entanto, gente da própria administração, a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff, ataca a política econômica, único e importante sucesso do governo até agora.
Na área social, onde todos, até seus adversários, esperavam bons resultados, o fracasso do Fome Zero, anunciado como redentor dos pobres do Brasil, exemplifica muito bem a decepção dos brasileiros. Se continua a existir, ninguém sabe a quantas anda. A fome de que falava era outra.
Por fim veio o mensalão. Considerando a história do PT não importa a origem do dinheiro, embora não seja assim do ponto de vista criminal na hipótese de a fonte do dinheiro mensaleiro ser pública. Importa que se tornou igual aos outros, status, por sinal, reclamado hoje pelos seus filiados. “Nós cometemos crimes, mas vocês também o fizeram”. Antes, queriam ser diferentes, agora, iguais. Conseguiram.
Está aí a razão principal das insistentes críticas ao lulo-petismo, o comportamento de camaleão. Não se condena apenas o terem feito como a maioria. O PT tem razão em dizer que muitos fazem. Nem se trata de implicância ideológica ou moralismo pequeno-burguês, para usar o jargão esquerdista. Se ao menos usassem meios ilícitos em favor do bem público muitos estariam dispostos a fechar os olhos e conceder ao partido o benefício da dúvida. O fato é que ninguém gosta de comprar gato por lebre. Ou de ver alguém comprando.

6 de novembro de 2005

A Língua

Jornal O Estado do Maranhão  
Em 1954, quando eu tinha seis anos de idade, já me interessava por futebol. Lembro bem da Copa do Mundo daquele ano, na Suíça. Lá o Brasil perdeu, em partida batizada como A Batalha de Berna pela imprensa, para a Hungria, o time favorito, que foi derrotado na partida final pela Alemanha Ocidental, resultado classificado então como zebra pelos entendidos. Como os de hoje, eles viviam de palpites errados sobre os prováveis vencedores.
A derrota brasileira em 1950 no Maracanã para o Uruguai, recente como era, ainda gerava muitas discussões. Criou-se um clima de tal pessimismo e tanta autoflagelação nacional que Nélson Rodrigues disse depois que quando a Seleção viajou para a disputa na Suécia em 1958 o exílio da equipe acabara. Ninguém acreditava na nossa equipe. No entanto, as estatísticas forneciam razões para otimismo. Em 1938 ficamos em terceiro lugar e foi nosso o artilheiro, Leônidas da Silva; em 1950, fomos vice-campeões. (Em 1942 e 1946 o torneio não foi realizado por causa da Segunda Guerra).
Eu ouvia os comentários dos mais velhos sobre a tragédia de 50 e sobre o fantástico time húngaro de 54, invicto havia quatro anos, sem saber o que pensar. Algum dia seríamos campeões? A resposta veio rápida, com a conquista da Copa logo em 1958. Ouvíamos os jogos pelo rádio, em ondas curtas cheia de ruídos, dificultando a audição, muito diferente de agora com o som limpo das transmissões radiofônicas. Lembro de meu pai lendo um jornal em 1957 em nossa casa no Monte Castelo e comentando sobre um garoto de 16 anos, um tal Pelé ou Pelê – ele não estava bem certo sobre a pronúncia do nome nem o jornal –, que começava a aparecer como genial no futebol paulista.
Essas lembranças me vieram a propósito de referências da imprensa a projeto de Aldo Rebelo, presidente da Câmara dos Deputados, de barrar o uso de palavras estrangeiras, no português brasileiro, em eventos públicos, meios de comunicação, nomes de produtos e estabelecimentos comerciais. Medida proposta sem sucesso por gramáticos antes. Um, Antônio de Castro Lopes, inventou palavras novas com base no latim e as divulgou no seu livro Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis: ludopédio (futebol), ludâmbulo (turista), lucivelo (abajur), cardápio (essa foi uma das poucas incorporados ao léxico).
Nos anos 50 era muito comum o uso de estrangeirismos ingleses no meio futebolístico: goalkeeper (goleiro), back (zagueiro ou ala), free kick (tiro livre), foul (falta), referee (juiz), team (time), driblle (drible), penalty (pênalti) e outros. Ao ler notícias sobre as idéias do deputado lembrei-me da participação brasileira nas Copas dos anos 50.
É inútil o esforço do ilustre membro do Partido Comunista do Brasil. A língua tem dinâmica própria e não se submete a regras artificiais. Em seminário realizado na própria Câmara dos Deputados em 2000, o professor Volnyr Santos, doutor em teoria da literatura e ex-professor da PUCRS, em palestra sobre o tema “Empréstimos lingüísticos: tradição e atualidade”, afirmou: “O que se quer mostrar é que, em relação à língua, lei não funciona. A única lei que funciona na língua é a própria lei lingüística. Por exemplo, a lei do menor esforço. Essa língua vai funcionar porque vai facilitar a comunicação. Agora legislar, de certo modo, definindo o modo como as palavras e a lingüística devam funcionar, isso realmente não funciona”.
Cada língua faz sua própria caminhada, em que muda a sintaxe, recupera arcaísmos e incorpora neologismos, com base na influência de outras, no falar popular e na invenção de seus melhores escritores. A mudança é a regra. A pureza lingüística é uma ilusão. Os donos do idioma são os seus falantes e não os legisladores cujas boas intenções já superlotaram o inferno há muito tempo.

30 de outubro de 2005

O Povo

Jornal O Estado do Maranhão   
O povo é sábio, é justo, é bom, é generoso, é altruísta. É a encarnação coletiva do bom selvagem, de Rousseau, transformado num lobo feroz, não muito depois da chegada dos europeus a estas terras, por conta das agressões do invasor. A civilização, tão-só, o corrompe, com as ardilosas artimanhas do capital, que produz sociedades degeneradas, e com as manobras dos capitalistas, sempre dispostos a se aproveitar dos trabalhadores em benefício do aumento de lucros.
Os comentários de alguns jornalistas da imprensa do Sul, irritados com a derrota do sim no recente referendo, permitem se fazer dessa entidade etérea, o povo, retrato como esse.
Esse fetichismo do povo, como possuidor de todas as virtudes em contraste com as elites cheias de todos os defeitos, prevalece apenas, no entanto, até o momento de desacordo entre, de um lado, a visão dos problemas nacionais dos fetichistas e monopolistas da ética e, do outro, a visão popular acerca da melhor maneira de resolvê-los.
Quando essa divergência aparece, é porque o povo não sabe votar, é desinformado e não tem consciência de seus próprios interesses. Renasce, assim, de forma sorrateira, a tese marxista, de natureza indefinida, da “falsa consciência”, segundo a qual, por artes misteriosas das classes privilegiadas, as pessoas, ou a classe trabalhadora, mas não as outras, que sempre conhecem bem o que lhes traz vantagens, agem não apenas de vez em quando, mas de maneira sistemática, contra seus próprios interesses, revelando, de parte de quem acredita nisso, sólido desconhecimento de instintos inatos do humanos.
Apesar do iluminismo de alguns defensores do sim, gente capaz de distinguir o certo do errado e de nos guiar com segurança contra as forças do mal, o povo rejeitou a proibição da comercialização de armas de fogo. Uma articulista sulista disse num texto com o título “A Bancada da Arma”: “O fato é que o referendo era do bem, mas proporcionou o recrudescimento da direita mais assustadora, que manipulou um sentimento geral de protesto”. Quer dizer então que 64% dos eleitores brasileiros são facilmente manipuláveis? Em seguida, deu como causa da derrota do sim a vontade da maioria de votar contra Lula. Quer dizer então que 64% são contra o governo Lula?
Vamos admitir, agora, o seguinte. O povo é formado, por todos os brasileiros, menos os das elites, como alguns defensores do sim parecem imaginar. Ele seria composto, portanto, por gente com renda média muito baixa. Os ricos são minoria e os pobres maioria indiscutível entre nós, como resultado da imensa desigualdade na distribuição da renda pessoal. Se 64% escolheram o não, isso significa, visto essas elites representarem talvez uns 10%, que muitos do povo, a maioria, quem sabe, votaram no não.
Como explicar essa decisão, a se acreditar que o vantajoso para elas estaria na proibição, segundo os luminosos guias das massas, visto serem elas mais atingidas pelas armas de fogo do que o restante da população? A resposta não admite enrolação pós-moderna nem wishful thinking. O verdadeiro interesse delas está na liberação, como evidenciado pela vitória do não. Essa conclusão deriva do fato de não existir nada no comportamento humano que nos leve a pensar nos erros sistemáticos de percepção da realidade como persistentes a longo prazo, em prejuízo do auto-interesse, pois no decorrer do tempo informações relevantes a cada situação, elaboradas a partir de percepções cada vez mais acuradas, em vista da experiência acumulada de cada membro da comunidade, se tornam acessíveis a todos. A persistência no erro seria sinal de violência ao instinto de sobrevivência.
É assim que o povo age: em defesa de seus interesses, como qualquer um de nós, sem babás a lhe dizer como votar. Não foi assim a eleição de Lula?

16 de outubro de 2005

Dois Errados...

Jornal O Estado do Maranhão  
Vai se tornando comum nos meios petistas, bem como nos assemelhados e aderentes, o seguinte argumento amoral – nem imoral chega a ser, o que revelaria certa consideração a padrões de moralidade pública, algo fora das cogitações do ex-campo majoritário do ex-PT. Como, dizem, outros partidos usaram e usam caixa dois em campanhas políticas, o PT estaria justificado por ter criado também o seu, com o fim de comprar os votos necessários à aprovação de projetos do governo no Congresso Nacional, com a força do vil metal, materializada no mal afamado mensalão. Este neologismo, por sinal, tão logo foi inventado pelo ex-deputado Roberto Jefferson, se popularizou instantaneamente, revelando entusiasmada receptividade popular às denúncias do então parlamentar acerca do comportamento criminoso do petismo, outrora monopolizador da moral e dos bons costumes da vida pública.
Por conta desse amoralismo nascido em Paris, em entrevista de nosso presidente, quando ele tentou banalizar o uso do caixa dois, apelidado por ele de erro, para não ter de chamá-lo pelo verdadeiro nome, crime, ouvem-se afirmações solenes de dirigentes do PT e de simpatizantes do partido, com ares de filósofos morais de bar de praia ou pose de doutas autoridades em práticas políticas ilegais, sobre o uso pelo PSDB do mesmo expediente por ocasião da votação da emenda da reeleição a cargos do Executivo.
O novo presidente do PT, Ricardo Berzoini, aquele que, de fichas de recadastramento da previdência social em punho, ameaçou a vida de milhares de idosos “deste país”, como diria Lula, usou o argumento há pouco tempo, ao votar no segundo turno da eleição interna do PT. Muito bem. Vamos cassar os mandatos dos que assim agiram, se eles ainda os têm, e mandar para a mesma cadeia onde se encontram Paulo Maluf e seu filho todos os envolvidos no comércio eleitoral dentro do Congresso Nacional, local dos negócios. O certo, no entanto, é isto: dois errados não fazem um certo, se se pode distinguir o certo do errado em política.
Quem sabe os atuais coordenadores políticos do governo sigam o exemplo de José Dirceu. Aliás, a despeito de todo o seu poder no passado, de tudo controlar na administração pública, ele alega que o esquema de corrupção não era de seu conhecimento – como não era de ninguém mais, segundo alegação de todos os acusados, forçando-nos a concluir que foi criado por geração espontânea ou vivemos uma alucinação coletiva –, e muito menos produto de sua reconhecida engenhosidade, capaz de lhe dar a coragem de dizer que empunhou, sem tê-lo feito, armas contra a ditadura militar.
Se tem gente que tem fé em duendes e leva Paulo Coelho a sério, se o povo acredita nas promessas de época de eleição e Elba Ramalho jura ter sido abduzida por extraterrestres que lhe implantaram um chip no corpo, então não é absurdo dar crédito a Dirceu. Claro, os documentos não o incriminam de modo direto. Mas, quem disse que malfeitores passam recibo de suas tramóias e só provas documentais condenam criminosos?
Se o exemplo for tão exemplar, permitam-me dizer dessa forma, os coordenadores comprarão os deputados compráveis, com o objetivo de constituir uma CPI de verdade, do ponto de vista deles. Ela seria diferente e, até, oposta em seus resultados, à criada há algumas semanas pela base aliada de Lula, visando investigar, imaginava-se, a compra de votos para a emenda da reeleição, mas de fato, vê-se agora, feita com a única finalidade de barganhar com a oposição a investigação das próprias compras governamentais de deputados, num jogo de CPI contra CPI, conveniente aos dois lados. Se tal Comissão fosse constituída, os malfeitos do pessoal do PSDB poderiam ser investigados e seus agentes castigados. Mas, será, mesmo, esse o desejo do governo?

9 de outubro de 2005

É Palhares o Morcego?

Jornal O Estado do Maranhão
Não sei se o leitor já ouviu falar de Palhares, o canalha. Não um canalhinha qualquer. Ele era o canalha irretocável, perfeito, honesto. Atacava sem piedade as cunhadas nos corredores, depositando, qual morcego de filme de terror, mordidas e mais coisas no pescoço e em várias outras partes do corpo delas, na época em que muitas moças casavam, porém não saíam logo de casa, para onde traziam os maridos, pelos menos enquanto eles não arrumassem um bom emprego.
Pois esse personagem inesquecível da ficção de Nélson Rodrigues, era um cara assim. Morava na casa do sogro. Mesmo vivendo lá, não se detinha ante as exigências da falsa moral burguesa do sogro e não deixava passar nenhuma oportunidade de assediar as irmãs da mulher que, pobre coitada, jamais desconfiou de nada.
Agora, os cientistas anunciam a descoberta de inusitado comportamento num ser que age no estilo Palhares. Os machos dos morcegos da espécie Rhinolophus ferrumequinum fazem sexo com a sogra e, até, com a avó de sua mulher, se desta forma se pode chamar a companheira desse predador das cavernas. Eles vivem separados das fêmeas. Só se aproximam na hora do acasalamento. Dão razão, neste ponto, à velha queixa feminina de que, ao aproximar-se de uma representante do outro sexo, o macho tem apenas interesse, vamos dizer, na procriação. Essa conduta pode ser, como se vê, comum não só entre humanos, mas no resto do reino animal.
Não pense, contudo, incrédula leitora, nos morcego como um sujeito dissimulado, desse de fazer coisas como essas às escondidas, protegido pelo escurinho do lugar onde mora. Não, esse faz tudo às claras, em qualquer lugar, quando, louco de desejo pela sogra e pela avó da consorte, que a tudo assiste com olhos compreensivos, resolve se comportar como galã de subúrbio.
Vejam agora a palavra dos estudiosos do assunto.
Na maioria dos mamíferos, o acasalamento é quase sempre estabelecido pelo grau em que os machos são capazes de monopolizar as fêmeas. A escolha é deles. Pode ocorrer algumas vezes, no entanto, que a regalia masculina passe para o lado delas. No caso dos morcegos, elas radicalizaram, quebraram o monopólio masculino e passaram a escolher os companheiros, porém de maneira incomum, porque os compartilham com as mães e avós. É decisão familiar. Elas se reúnem e decidem convocar o morcegão ao imediato cumprimento do dever. Portanto, os culpados não são eles.
A teoria da evolução postula que os indivíduos de qualquer espécie escolherão parceiros que melhorem a aptidão à sobrevivência de seus descendentes. O aumento de parentesco – importante nos animais gregários – resultante do comportamento como esse das fêmeas, aumenta a cooperação social do grupo, tornando maiores as chances de sobrevivência de seus membros. Com certeza, pode-se chamar esse fenômeno de “evolução por nepotismo”.
Essa explicação, todavia, não dá conta ainda da forma como surgiu essa estratégia evolutiva e por que esta e não outra foi adotada. Os cientistas não têm certeza. “Uma possibilidade é que os parentes da fêmea sigam uns aos outros até os locais de acasalamento, ou copiem a escolha de parceiro”, diz o professor Stephen Rossiter, da Universidade de Londres.
Seja como for, quem pode sair reabilitado dessa história é Palhares. Seria ele tão pernicioso como sempre se pensou, ou, ao contrário, é tão-só um bom rapaz que apenas cumpre o seu papel na preservação da espécie, ao tentar procriar dentro da família de sua mulher e promover, ao agir desse jeito, coesão social e, em conseqüência, maior capacidade de sobrevivência?  Não seria boa idéia levantar um monumento a ele, o ex-canalha, e dar-lhe o título de benemérito da humanidade? Não seria ele um incompreendido, mas em verdade exemplar Rhinolophus ferrumequinum?

5 de outubro de 2005

Por Que Não

Jornal O Estado do Maranhão   
Votamos hoje num referendo cuja divulgação nos meios de comunicação omitiu de todos nós informações relevantes sobre o assunto acerca do qual deveremos nos manifestar – a possibilidade da proibição da fabricação e venda de armas de fogo no Brasil –, dizendo sim ou não, e as razões de termos de fazê-lo. Muitos não saberão sequer o significado da palavra referendo e menos ainda diferençá-la de plebiscito, desconhecida de seu Rodrigues, que não admitia ignorá-la, como ignorava também o significado de proletário, no conto de Artur Azevedo, ignorância responsável por rusga familiar entre ele e d. Bernardina, sua mulher. Teimosia e desconhecimento semelhantes a respeito das conseqüências da eventual vitória do sim, criarão condições propícias à elevação do índices de violência e criminalidade, como aconteceu em outros lugares.
A votação é sobre o Estatuto do Desarmamento, lei aprovada com o condicionante, introduzido pelos adversários da proibição, que a consideram inócua e mistificadora, de ter seu artigo 35 submetido à aprovação popular. Os defensores desse dispositivo, por sua vez, segundo entendi da exposição dos argumentos durante o período de campanha, esperam que a proscrição da posse daquelas armas seja decisiva, se não para a redução a zero dos índices, utopia não realizada em nenhum outro país, pelo menos para sua substancial redução.
Eles falam de migração sistemática de armas adquiridas de forma legal das mãos dos cidadãos em direção às dos criminosos, através de roubo ou furto, e dão, assim, a impressão falsa de que o arsenal fora da lei tem sua fonte de abastecimento aí e não no lucrativo e incessante contrabando, fora de controle das autoridades e até com a conivência de muitas delas. A vitória do sim não mudaria nada disso, porém, quase com certeza, aumentaria o lucro dos contrabandistas, deixando o armamento com os malfeitores.
Navegam, os advogados dessa posição, na rota fácil de desarmar as pessoas comuns, em vez de lutar pela repressão ao crime organizado ou desorganizado, por meio da aplicação no aparelhamento das polícias e da justiça de recursos públicos que o governo federal e muitos estaduais irão investir apenas sob pressão. Ademais, quantos de nós compra armas pesadas, como fuzis e metralhadoras, tempos atrás de uso exclusivo das forças de segurança, e as vende aos bandidos?
Argumentam, além disso, com exemplos de agressão dentro do lar, misturando fenômenos sociais diferentes, como se brigas de vizinhos ou de marido e mulher ou mesmo acidentes domésticos com crianças, que por certo podem resultar e resultam em mortes, tivessem a mesma natureza daquela das quadrilhas de traficantes que infestam as cidades brasileiras. Se a proibição fosse capaz de diminuir o elevado número de mortes violentas, então com mais razão se deveria proibir o uso de veículos motorizados, responsáveis por cifras mais altas.
Sabe-se da ausência de relação de causa e efeito ou de simples correlação estatística, entre taxas de criminalidade e a posse legal de armas. Há países cujas populações as portam sem restrições e outros onde elas foram banidas. Contudo, apresentam índices semelhantes, altos ou baixos. As causas são múltiplas, como os sociólogos estão cansados de mostrar. Não será com a pretensão de eliminar apenas uma delas, secundária como neste caso, que se obterá a cura para doença social do tipo da nossa.
São essas as razões de eu votar no não. Faço-o na convicção de não ser possível resolver questões complexas como essa em discussão de uma só vez nem com medida bem intencionada, mas ineficaz. Daqui apouco, caso nenhum bando bem armado assalte os locais onde se vota, possibilidade lembrada por José Chagas recentemente, ou me ataque pelo caminho, estarei cumprindo meu dever.

2 de outubro de 2005

Os Bustos do Panteon

Jornal O Estado do Maranhão   
Na quarta-feira passada, comissão de acadêmicos da Academia Maranhense de Letras – AML, formada por Jomar Moraes, seu presidente, Mílson Coutinho, Joaquim Itapary, Lourival Serejo e eu, encontrou-se com o prefeito de São Luís, Tadeu Palácio, para dar prosseguimento à frutífera reunião do dia 11 de agosto último. Como da vez anterior, ele nos recebeu de maneira cordial e demonstrou, sobre o assunto que nos levava a procurá-lo novamente, vivo interesse e conhecimento detalhado.
Discutimos a situação dos bustos, até pouco tempo atrás presentes na Praça do Panteon, de homens importantes de nossa vida literária, quase todos construtores da identidade cultural maranhense a partir do século XIX, obra continuada por legítimos sucessores no século XX e neste. Enquanto, durante anos, modelados em bronze, estiveram naquele local, era como se ausentes permanecessem para muita gente. Não para os malfeitores, porém, especializados em arrancá-los de onde estavam para, derretidos, vendê-los por qualquer vintém furado a cúmplices receptadores.
Era como se não estivessem ali porque nunca se ouviu clamor público algum contra os atos de agressão a nossa cultura ou o mais débil rumor na imprensa acerca de providências a serem tomadas para evitar a interminável repetição do crime. Os homens ali representados, mortos fisicamente havia mais de um século em alguns casos, morriam mais uma vez, vitimados pela indiferença de muitos, mas não de todos.
Em cumprimento do ditame do artigo 1º de seus estatutos, de promover “a defesa das tradições maranhenses” a AML foi, naquela data, ao prefeito. Este, informado do que se passava, de imediato determinou a retirada dos bustos da praça e abrigou-os no Centro de Artes Japiaçu. Providência em boa hora tomada, pois vários deles já estavam descolados de seus pedestais, indefesos ante o furto iminente.
Concordamos na ocasião sobre a imperiosa necessidade de mantê-los longe da criminalidade, tendo, ainda, a AML, na condição de entidade de direito privado sem fins lucrativos, se prontificado a unir seu esforço ao do Município na tarefa de obter recursos para a execução de projeto de reforma daquele logradouro. Feito isto, eles seriam de novo recolocados lá, em condições adequadas de segurança.
A ausência depressa operou o milagre de torná-los bem presentes. De repente, ganharam vida e tornaram-se objeto da preocupação de gente que os tratava antes com descaso e insensibilidade, sem se importar com o furto e a depredação que sofriam. Ademais, exigiu-se da Academia solução impossível de ser dada, por não ter ela competência legal para tanto. É importante, no entanto, compreender que apenas se inicia a preservação e defesa dos bustos, trabalho aberto, é claro, à participação de quantas instituições estejam dispostas a colaborar. O assunto interessa a todos. É salutar que muitos manifestem apreensão neste momento. Antes tarde...
Na conversa de agora, chegou-se à conclusão de que eles poderiam, em seguida à completa restauração a ser custeada pelo Município, conforme pronta garantia dada pelo prefeito, ser colocados no pátio do Museu Histórico do Estado, após, naturalmente, acerto com a direção daquela instituição. Ali, eles estarão abertos à visitação pública, mas protegidos do vandalismo.
Por fim, foi aprovada a idéia de criação de comissão com representantes da Prefeitura, AML e IPHAN, que terá o encargo acima mencionado, de mobilização de recursos para o remodelamento da Praça. A Academia com o prestígio de seu nome quase centenário e história em defesa de nossa cultura poderá dar colaboração proveitosa à missão. Caso não seja possível fazer a reforma como desejada, nova decisão deverá ser tomada mais adiante, sobre o endereço definitivo dos bustos.
Eis a história.

18 de setembro de 2005

Sessões Contínuas

Jornal O Estado do Maranhão  
Eles se foram em silêncio, um de cada vez, pouco a pouco. Um dia, sentimos alguma coisa diferente. Olhamos em volta e não os vimos. Tinham ido embora, desde o da mais alta classe até o mais popular. Eles se sentiam desprezados, abandonados pelos amigos.
O último a ir-se foi o Passeio, o cinema na rua do mesmo nome, pois é de cinemas que falo. Era o penúltimo no centro da cidade e foi inaugurado em 1962. Fechou há poucas semanas, depois de 43 anos de funcionamento. Creio ter sido o primeiro em São Luís com ar condicionado.
Seus proprietários haviam construído antes, em 1960, o cine Monte Castelo, quase ao lado de nossa casa. Eu tinha 12 anos e vi construírem o prédio desde o alicerce até o teto. Eu me sentava na copa a fim de fazer os deveres de casa. Vezes sem conta perdi a concentração nos estudos, observando pela janela lateral os operários completarem o imenso telhado, aos pouco fechando os vazios, com fieiras e fieiras de telha, como quem vai colocando com calma as peças que faltam num quebra-cabeça. A inauguração – eu estava lá – foi solene, com farto coquetel para os convidados.
Foi lá que vi a sensação da época, um filme em chamada terceira dimensão.Para assisti-lo, os espectadores recebiam óculos especiais na entrada. A novidade não pegou. Anos depois, o comércio de filmes foi substituído durante quatro anos pelo intenso comércio religioso de salvação de almas ameaçadas por demônios interiores e exteriores, estes em forma humana. Em seguida, virou pista de dança.
Aquela mesma família arrendara em meados dos anos 50, o Teatro Arthur Azevedo, chamado então de cine-teatro, onde eu ia ver os deliciosos filmes brasileiros de humor popular, chamados de chanchadas, termo pejorativo, de provável origem portenha, usado pelos críticos de cinema com o significado de coisa sem valor. Eram musicais carnavalescos e paródias do cinema americano, de grande aceitação pelo público, com astros como Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Zé Trindade, Costinha, José Lewgoy e Cyll Farney e estrelas como Eliana, Dercy Gonçalves, Zezé Macedo, Emilinha Borba, Marlene e Adelaide Chiozzo com seu acordeão.
Os cinemas de rua existentes nas minhas meninice e adolescência, fecharam um a um. Foram expulsos do mercado pelos grandes grupos empresariais de distribuição e exibição de filmes, pela falta de segurança nos centros das cidades e dos bairros, o que afastou o público, e pela mudanças urbanas abrangentes ocorridas no mundo inteiro. Os novos instalaram-se nos shoppings, oferecendo conforto aos espectadores e moderna tecnologia de projeção.
O Éden, na rua grande, onde funciona hoje a Loja Marisa, fundado em 1919, era o cinema das grandes produções de Hollywood. Pertencia a Moisés Tajra, mas fora originalmente de Raul Serra Martins, Henrique e Guilherme Blum. O Roxy, também de Moisés, apresentava programação semelhante à do Éden. Agora é o último e só exibe filmes pornôs.
Para mim, o cinema mais marcante foi o Rialto, na rua do Passeio, perto do atual Socorrão. Ali, podíamos ver aos domingos episódios com o Super-Homem, Zorro, Tarzan, Roy Rogers e outros heróis dos seriados americanos, espécie de novela de televisão de hoje, com a diferença de se ter de esperar o desfecho das cenas de perigo só uma semana após, no capítulo do fim-de-semana seguinte.
Havia ainda o Rival, na rua Grande ao qual não me lembro de ter ido; o Rex, no João Paulo, que tinha como um dos sócios meu tio paterno João Moreira; o Rivoli, no Anil, ao lado da casa de meu tio materno Haroldo Raposo, de onde podíamos ouvir os diálogos em língua estrangeira, que não seriam entendidos nem em português pela péssima qualidade do som; e o cine Anil. Todos mortos, todos enterrados, contudo vivos em sessões contínuas nas nossas melhores lembranças.

11 de setembro de 2005

Nova Orleans

Jornal O Estado do Maranhão    
Nova Orleans foi, em 1718, como São Luís em 1612, fundada por franceses. Portanto, cento e seis anos depois de nossa cidade. O Estado de Louisiana, onde está localizada, originalmente foi possessão da França, vendida por Napoleão I aos Estados Unidos em 1803. É famosa pelo Bairro Francês com seu Mardi Gras, que lembra nosso Carnaval, pelo Dixieland jazz e pelo blues, por sua culinária e por ser o lugar de nascimento de músicos como Jelly Roll Morton e Louis Armstrong.
Construída às margens do Mississipi, ela foi atingida por um furacão batizado como Katrina. Poucas vezes houve uma ataque natural tão devastador numa área em que fenômenos desse tipo são comuns. Localizada abaixo do nível do mar em vários pontos, tem em redor diques para contenção do rio ao Sul e do lago Pontchartrain ao norte. Essa linha de defesa, contudo, não foi capaz de conter o imenso volume de água vindo dessas duas direções, quando as barreiras se romperam.
Os que não conseguiram sair de lá, em sua maioria negros, pobres, idosos e doentes, enfrentaram a pior agressão da natureza a uma zona urbana no Sul dos Estados Unidos. Em verdade, a Louisiana apresenta baixos níveis de renda por qualquer padrão de comparação. Mas, não preciso me alongar sobre detalhes conhecidos de todos. Menciono esses dados apenas para assinalar o contraste entre a alegria daquela comunidade, antes, e a violência da natureza, durante, e humana, depois, da passagem do Katrina.
São chocantes os relatos de saques, estupros, violência, assassinatos e todo tipo de conduta brutal e insensível surgida em meio a uma situação que por si só, independentemente do procedimento dos seres humanos envolvidos na catástrofe, já causava sofrimento e morte só pela simples ação da natureza. É o típico comportamento humano em situações-limite, tendo raízes na quota de reações instintivas partilhadas com os outros animais, nossos sócios na posse deste pequeno planeta.
O comportamento anti-social surgiu quase de imediato, logo nas primeiras horas depois da passagem do furacão. Viu-se uma brutal luta pela sobrevivência, como resultado de não haver freqüentemente alimentos e água o que, é certo, cria circunstâncias de ameaça direta às pessoas. Logo se formaram bandos de ataque e de defesa, passando a prevalecer, durante algum tempo, a lei do mais forte. Grupos se formaram com o fim de repelir as ameaças, líderes de um lado e do outro surgiram depressa. Os mais fracos procuraram a proteção dos mais fortes ao preço da submissão e renúncia a qualquer poder decisório próprio, compensados, afinal, pela possibilidade de sobrevivência.
A situação não teve análise cuidadosa da imprensa, apesar dos relatos explícitos, mas desacompanhados de imagens muitas vezes. A descrição de atitudes de solidariedade foi mais comum. Não se pode deixar de lembrar, no entanto, das ferozes lutas entre grupos étnicos em alguns países africanos, embora em proporção muito superior neste caso, pois envolvem a sobrevivência de populações inteiras, quando conceitos morais simplesmente são suspensos num ambiente em que regras de convivência pacífica desaparecem.
Quando a vida se vê sob ameaça, pela ausência tanto de meios que a sustentem no curto prazo, quanto de instituições com capacidade de controlar os mais primitivos instintos do ser humano, não diferentes, na essência, quanto a este aspecto, dos observados no mundo natural, a convivência civilizada sucumbe.
Nas sociedades pobres, em especial nas que não conseguem construir instituições capazes de lidar com a escassez, tal condição é ainda mais evidente, traduzindo-se, se não em guerra aberta o tempo todo, pelo menos em constante tensão social, como se vê em toda parte.
Os acontecimentos de Nova Orleans servirão de lição aos governantes?

4 de setembro de 2005

De Outro Mundo

Jornal O Estado do Maranhão   
Estão vendendo pacotes turísticos para a Lua. Não é ficção; é realidade. Daqui a cem anos, quem sabe, algum pesquisador de jornais antigos se espante de nos admirarmos, hoje, de feito que será banal na época dele, como esse de flutuar serenamente entre os astros. Após levar dois milionários americanos à Estação Espacial Internacional, em 2004, creio, a Space Adventures, empresa dos Estados Unidos, está oferecendo passeios à Lua. Os capitalistas que, como se sabe, são selvagens preocupados apenas em ganhar dinheiro em vez de se dedicarem ao bem-estar dos povos, miram um mercado formado por milionários de toda parte, sempre dispostos a consumir novidades da tecnologia. Portanto, a oferta de aventura poderá ter boa receptividade, pelo menos entre os ricos.
O preço é de US$ 100 milhões. A maioria de nós não é capaz de avaliar com exatidão o poder de compra de uma quantia desse porte. A montanha de dólares não dá direito, por enquanto, a um pouso na Lua. Trata-se, unicamente, de orbitá-la, o que é extraordinário, pois nem todo dia se chega perto de outros mundos, embora deles ouvindo histórias a todo hora nas CPIs.
Eu, se tivesse tanto dinheiro, não perderia a oportunidade. Partiria no primeiro vôo. Aí eu poderia verificar se de fato a Lua é feita de queijo suíço, se é por causa dele que os namorados vivem o tempo todo no mundo da Lua e, também, se lá ratos e ratazanas passeiam à vontade, como na Terra, ameaçando a sobrevivência do nosso planeta e do nosso satélite natural, caso, se confirme a suspeita de ser este feito de queijo.
Mas, a fascinação com a Lua pode ter outra origem bem diferente. Talvez nasça do brilho azul-dourado nas noites em que ela está grávida de luz do Sol, ou, em vez disso, como na famosa canção de Bart Howard, Fly me to the Moon (Leve-me à Lua), venha de se poder, no trajeto até lá, cantar entre as estrelas e, de passagem, ver como é a primavera em Júpiter e Marte. Como eu nunca seria um desses tesoureiros de partido político – por sinal homens dedicados ao ideal de garantir a governabilidade bem como de falar sempre a verdade quando são chamados a depor em alguma comissão de inquérito – como nunca seria tesoureiro, eu dizia, posso tão-somente imaginar o que de útil se poderia obter de passeios desse tipo e quais seriam as regras de segurança a serem obedecidas durante a viagem.
Uma destas seria, a restrição ao transporte de malas, sobretudo se elas contivessem dinheiro originário de empréstimos bancários feitos com a intenção de financiar clandestinamente campanhas políticas na Lua. Outra seria a proibição do uso de cuecas, mas só no caso das utilizadas na embalagem de dólares provenientes da venda de produtos hortigranjeiros, recursos por certo destinados a estabelecer ali o mesmo rentável negócio antes instalado em nosso planeta. Se permitíssemos transferências como essas, deixaríamos, é claro, de criar muitos empregos aqui para criá-los, vamos dizer, no Mar da Tranqüilidade. Eliminaríamos empregos terráqueos e os recriaríamos lunáticos. Não se pode concordar com isso em vista da taxa de desemprego cá embaixo, na Terra, mesmo nas economias mais ricas.
A utilidade das viagens é evidente. O depoente de CPI que mentisse seria obrigado a embarcar. Eu sei que a fila seria imensa, como as de pessoas em busca de emprego, vistas vez por outra na imprensa. Não haveria lugar para todos, mas não importa. Vôos extras seriam realizados de acordo com as necessidades. A maior vantagem, porém, seria outra. As passagens teriam apenas o trecho de ida. O seguinte seria em direção a um vizinho buraco negro que, por não deixar escapar de seu interior nem a luz, depressa os desintegraria. Assim, derretidos e derrotados essas criaturas de outro mundo, deles estaríamos por fim livres.

31 de agosto de 2005

Letras em Festival

Jornal O Estado do Maranhão   
O Festival Geia de Literatura realizado entre os dias 24 e 26 deste mês na cidade de São José de Ribamar veio preencher carência de nossa vida cultural. Não digo ser dos intelectuais do Estado, ou apenas deles, esse antigo desejo de realização de eventos como esse, porque seria tornar simplista uma questão melhor compreendida se atentarmos para tradição que, mesmo rica, sofre processo, já secular de – usemos a palavra certa – decadência.
A verdade é esta. A partir da expansão econômica do fim do século XVIII, surgiu no Maranhão um grupo brilhante na literatura, na historiografia, nas ciências, nas artes plásticas, com personalidades como Odorico Mendes, João Lisboa, Sotero dos Reis, Gonçalves Dias, Joaquim Serra, Henriques Leal, Trajano Galvão, Gentil Braga, Sousândrade. Depois, apareceram nomes como Artur Azevedo, Aluísio Azevedo, Raimundo Correia, Graça Aranha, Humberto de Campo. Foram tais figuras, ou muitas delas, especialmente as primeiras, que deram importância à cultura do Maranhão, como se brotassem do nada dos séculos anteriores.
Longe estou de afirmar que, de repente, após aqueles precursores, deixaram de nascer aqui artistas de talento e importância na cultura brasileira. Josué Montello, Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi, José Sarney, Lago Burnet, Oswaldino Marques, Franklin de Oliveira, Odilo Costa, filho, José Chagas, Jomar Moraes, Nauro Machado, Luís Augusto Cassas são prova do erro de se pensar assim. Faço afirmação diferente. A partir do início da época de grande crescimento originado no sucesso das políticas mercantilistas de Pombal, implantadas no século XVIII pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, consolidaram-se as pré-condições materiais que possibilitaram o surgimento daqueles intelectuais, fundadores das glórias herdadas por nós.
Eles eram vistos como um grupo representativo de nossa cultura, expressão de nossas especificidades, típicos de nossa maneira de ser. Muitos deles, estudaram em Portugal, mas retornaram ao Maranhão, mantendo em São Luís um universo cultural, em boa medida, integrado. Era assim não apenas por serem da mesma geração ou de gerações próximas, mas por serem produto do mesmo fenômeno sócio-econômico por que passava o Maranhão. Os sucessores, partir do século XX, já não tinham as mesmas condições de permanência, eram brilhos isolados, ilhas em vez de continente. A base material fora erodida, num processo principiado bem antes, da mesma forma que, no início, os brilhantes pioneiros apareceram somente após uma defasagem em relação ao começo do enriquecimento de então, que se revelaria dependente e frágil mais tarde. O excedente econômico que tornava possível ao estamento local dar refinada educação a seus filhos murchou. Daí veio a prolongada decadência.
Ao dizer isso, não me filio à interpretação marxista vulgar, de uma relação direta de causa e efeito entre a infraestrutura econômica e a superstrutura da sociedade. Destaco apenas a base material como condição necessária, mas não suficiente, para um processo de crescimento gerar bons resultados superestruturais. Ela cria as condições, mas os resultados são contingentes..
Imagino que alguns, ou muitos, não concordarão com minhas observações. Um debate sobre o assunto deveria ser feito em profundidade. No entanto, não se encontram em nosso meio as condições e as instituições para tal empreitada, embora não nos faltem pessoas qualificadas. É por isso, entre outras coisas, que o Festival Geia é importante. Ele poderá se constituir em espaço de discussão séria e consistente sobre nossos problemas culturais e, em particular, nossa literatura. Assim, diferentes visões sobre a natureza do fazer poético e da poesia, sobre o romance, o conto, a crônica e o teatro, sobre a história da nossa literatura, artes plásticas e música, sobre as tendências recentes de todas essas manifestações no mundo moderno, poderão ser discutidas, tirando-nos do marasmo e da obsolescência em que vivemos e da condição de ilha cultural, longe do mundo e da dura realidade de nosso povo, mas perto de um passado vislumbrado como época de ouro, a nos impedir de olhar o futuro.
O encontro formará, por certo, uma tradição, pois será realizado anualmente na última semana de agosto, apesar da maledicência do provincianismo ressentido, desejosa de que os acadêmicos da Academia Maranhense de Letras rejeitassem a oportuna, bem-vinda e meritória iniciativa do Instituto Geia. A atitude é, em parte, o resultado da falta do hábito de debate informado de parte dos membros dessa falange da ignorância. Velho hábito. O Festival poderá ajudá-los a desenterrar o pescoço de avestruz, daqui por diante.

21 de agosto de 2005

Sem Aviso

Jornal O Estado do Maranhão  
Uma pedra atravessou o caminho por onde eu ia despreocupado de tudo, de alegria e de tristeza, parou em certo ponto de sua viagem inconveniente, lá fincou o pé e, por vários dias, se recusou a sair, como se, de propósito, quisesse me causar sofrimento. Mas, é sempre assim, quando algum mineral componente de nosso corpo, o cálcio especialmente – que é pó semelhante ao que voltaremos um dia –, acumulado já em pedra, pequena embora, resolve deixar o calor de nossos rins e o aconchego de nosso interior, de onde jamais deveria sair, para vir até aqui fora por um estreito caminho, inadequado, evidentemente, a passeio como esse.
Em meio à luta para expulsar a solerte inimiga dali de sua trincheira, dolorosa luta que, embora suspensa, ainda não chegou ao fim, pude ainda, tentando disfarçar a dor, ler um texto do meu confrade da Academia Maranhense de Letras, Benedito Buzar, sobre o recém-falecido capitão Antônio Alves Gondim. Sigo a narrativa sobre a revolta comandada por ele, singular figura da história maranhense, com a intenção de derrubar, em 1956, o governador interino do Estado, Eurico Ribeiro, quando, no início da última seção, salta um nome que me evoca distantes, mas claras recordações: Orestes Lima Pereira, morto então com um tiro de fuzil.
Foi justamente no enterro de Orestes, quando eu tinha 8 anos de idade, que tive meu primeiro contato próximo e direto com a morte. O morto era casado com Jucita, prima de minha mãe. Pela primeira vez eu via uma pessoa sem vida e disso jamais me esqueci. Já contei aos leitores que, dois anos antes, em 1954, eu e meus irmãos, fomos proibidos de ir até a Beiramar durante o incêndio e naufrágio do navio Maria Celeste, ocasião de muitas mortes. Mas, em 1956, pode ser que meus pais já me considerassem com idade suficiente para encarar a realidade do fim inexorável.
Lembro-me bem da casa modesta na rua da Cruz, perto do Mercado Central, no centro da cidade. Eram tempos de muitas rezas, como as que ouvi naquele dia, nos velórios feitos nas residências e não em locais especialmente equipados, como agora, para esse ritual de despedida. Ouviam-se comentários em voz baixa sobre o tipo de ferimento causado em Orestes pela bala – pedra também, de aço –, disparada após ele entrar, no meio do tumulto daquelas horas, inadvertidamente, numa área proibida aos civis. Até hoje não se sabe se o tiro veio dos policiais militares das forças do governo ou das rebeladas. Os dois lados usavam o mesmo tipo de armamento. A semelhança dificultou a identificação.
Marcante para mim, mais até do que a própria morte violenta de Orestes, foi a orfandade em que ficaram os muitos filhos do casal. Um deles, Juciram, afilhado de minha mãe, costumava vir à nossa casa a fim de nos ensinar a empinar papagaio e ajudar minha avó materna, Marcelina Raposo, a preparar o Judas do sábado de Aleluia. Eu observava desde o mais velho, Jucildo, então cabo do Exército, até os mais novos, ainda bem pequenos, e intuía – não era nem podia ser uma reflexão consciente – a possibilidade de alguma coisa ruim também acontecer com meu pai. Seria algum dia ele vítima de alguma tragédia como aquela?
Aqueles eram tempos agitados, de mudanças. A chamada Greve de 1951, rebelião política cujos ecos eu ouvia o tempo todo, de oposição à posse do governador Eugênio Barros, bem como outros movimentos do próprio Gondim em 1950, 1951 e 1955 e, até, o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, misturavam-se na minha imaginação de criança e criavam em mim uma idéia realista de violência e insegurança da vida e do mundo que eu começava a conhecer. Fui para casa levando a imagem do morto em minha mente e pensando no desamparo da mulher e filhos. Poderíamos nós, lá em casa, ficar da mesma forma na orfandade sem aviso prévio?

7 de agosto de 2005

Bem da Nação

Jornal O Estado do Maranhão    
Dizem ser a corrupção um dos piores males do Brasil. As avaliações de organizações internacionais de monitoramento do assunto nos colocam entre os primeiros colocados nessa competição em que deveríamos “dar tudo de si”, como se diz no nos meio futebolístico, para ser os últimos. Estamos na companhia de países pouco confiáveis porque presos, segundo nossa visão, à cultura da corrupção como norma. É a história do macaco não olhar para seu rabo.
Vejam a Rússia. Ao fim do antigo regime se atirou sem peias a uma economia de mercado, essa, sim, selvagem nas regras – ou na falta de regras – de funcionamento. Nós vemos a sociedade russa sob a dominação da máfia, imagem reforçada pela falta de tradição democrática sólida no país, aprofundada durante os 70 anos de ditadura de partido único dos companheiros comunistas. A doença russa é mais sinistra do que a brasileira ? Duvido.
O julgamento é consensual: aqui, o furto é endêmico. Como mudar, como livrar o Brasil dessa praga que o impede de crescer e multiplicar a riqueza nacional? Temos, primeiro, de identificar a origem do mal. Depois, prescrever o remédio certo.
As explicações mais comuns invocam razões históricas, sociológicas, culturais, econômicas e políticas. Certo, todas, de algum modo, ajudam na elaboração um diagnóstico útil para a resolução do problema. Com elas, afinal, aclamados cientistas sociais e conceituadas instituições de pesquisa já gastaram toneladas de papel e milhares de litros de tinta. Mas, eu discordo veementemente da atribuição a esses fatores da culpa pela situação atual. A verdade é esta: a origem da corrupção entre nós está no esquecimento e no desconhecimento. Explico.
Os acusados no escândalo do “mensalão”, que, como esse apelido sugere, é uma módica quantia repassada todo mês pelo Partido dos Trabalhadores a parlamentares da base política do governo no Congresso, dizem desconhecer a operação monetária em malas e em cuecas especialmente projetadas, ou não se lembrar de nada, sequer da existência da moeda brasileira, pois parte do recurso é distribuído em dólar.
O chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu, humilde como ele só, desconhecia as atividades do subchefe, Waldomiro Diniz, de extorsão de donos de bingos. O presidente do PT, José Genoíno, além do esquecimento do aval que deu a empréstimos bancários sem garantias do empresário Marcos Valério, desconhecia o caixa-dois do tesoureiro, Delúbio Soares. Este era um esquecido executor solitário de idéia própria, num partido que convoca reuniões até para ir ao banheiro, com o fim de prover o caixa petista, e, quem sabe, o seu, com dinheiro dos bancos e, conforme suspeita de muita gente, de estatais. O secretário geral, Sílvio Pereira, desconhecia as manobras de Delúbio e esqueceu do jipe Land Rover que uma empresa com negócios com o governo lhe dera. Todos eles esqueceram do mensalão, pois, conforme dizem, nunca ouviram falar disso. Os bancos, coitados, esqueceram de seus créditos. Por fim, Lula, chefe de todos, esquece que é presidente da República, além de desconhecer as tramas e patranhas de Dirceu.
Como não concluir pelo esquecimento e desconhecimento como causa da confusão, conhecendo um drama como esse? Se cada um desses homens tivessem tido conhecimento dos movimentos dos outros, o mensalão seria liquidado no começo e nenhum deles haveria de derramar tantas lágrimas na televisão, como fizeram. Ou, se não tivessem esquecido de tudo, muitas acusações injustas contra eles não prosperariam como agora.
O caso é patológico. Eles precisam com urgência de um remédio para lhes reavivar as frágeis memórias e, de alguma forma, impedi-los de serem tão distraídos que não ouvem burburinhos suspeitos nas portas de seus gabinetes e, talvez, dentro. É para o bem da nação.

24 de julho de 2005

Um Trovão

Jornal O Estado do Maranhão    
Somente muito depois, quando nos tornamos adultos, iríamos compreender a irritação da mãe de nosso amigo, o que então nos parecia pura implicância. Cada um de nós colocava seu melhor revólver e cartucheira e corria para sua casa, vizinha à nossa, se por acaso não era ele quem vinha. Íamos dispostos, a modo dos heróis dos filmes de bangue-bangue que víamos nos seriados de fim-de-semana no cinema Rialto ou nos gibis que colecionávamos com cuidados especiais, a lutar a favor do bem e contra o mal, em compenetrada imitação do “artista” e seu “companheiro”, ninguém querendo fazer o papel de “bandido”, ao “brincar de caubói”.
Nos filmes, os nossos ídolos sempre se livravam de emboscadas, truques sujos dos bandidos e quedas em abismos. Estes pareciam estar ali apenas com o fim de deixar a platéia em suspense, pois nunca acontecia daqueles super-homens se precipitarem neles de verdade. Os caras malvados, sim, podiam cair à vontade. Na vida real, o perigo era o de levarmos uma bronca da dona da casa.
Aquilo que víamos nas telas – perseguições a cavalo, duelos à bala, brigas por terra e água, assaltos a diligências, roubo de gado, uso de força bruta, mas também coragem daqueles desbravadores, lento predomínio da lei e determinação de construir uma grande nação – formaram pouco a pouco, no mundo inteiro, um bom retrato da sociedade formada por essas pessoas. Elas avançavam em direção ao faroeste (farwest, ou oeste distante), designação dada por oposição tanto a leste como à região, o meio-oeste, onde se encontra o Estado, Indiana. em que vim a residir muitos anos depois. Tudo isso fazia parte do processo de alargamento das fronteiras da civilização americana durante grande parte do século XIX.
Os pobres índios, mostrados nos filmes como traiçoeiros, morriam às pencas, na ficção e na realidade, à semelhança de pássaros de lata em parques de diversão, da mesma forma que morreram aqui, aniquilados em ambos os casos pela expansão capitalista da Europa em direção ao Novo Mundo. Essas coisas todas atiçava nossa imaginação de criança a ponto de nos sentirmos na pele daqueles que víamos como heróis.
O certo é isto. Muitas vezes inventávamos de brincar de caubói justamente depois do almoço. Nisso se originavam as repreensões que a mãe de dele, dona Trindade, nos dava. Na hora da reparadora sesta, lá estávamos perturbando seu sossego, tentando dar tiros silenciosos, sacar a pistola rápido, sem ruído, sussurrando “mãos ao alto” e, sobretudo, tentando discutir baixinho sobre quem realmente tinha morrido. Em vão, pois o barulho era inevitável.
Ele tinha belos revólveres, como outro amigo, freqüentador igualmente daquela casa, Zé Aniesse, e também excelentes times de botão formados por cocós (um tipo de botão alto no centro, lembrando um arranjo de cabelo feminino da moda), comprados quase sempre na Casa Waquim e cuidadosamente tratados com cera de vela. Era o mais alto da turma, ligeiramente gordinho, temperamento amigável e excelente companheiro. Certa vez, jogávamos uma partida de futebol na Escola Técnica. Ele me chamou de lado e disse baixinho: “Compadre, lança a bola comprida, explora minha velocidade!”. Não sei se fiz cara de espanto. Sei de minhas tentativas de atendê-lo, todas inúteis. Não houve jeito de explorar a tal velocidade.
Um dia, ele e a família se mudaram para São Paulo. Nunca mais tivemos notícias deles. Mais de quarenta anos depois, quando as crianças se divertem com brinquedos eletrônicos e com a internet, que serão suas boas recordações no futuro, recebo notícias de sua volta a São Luís. Seu nome é José Wellington Trovão, mas ele nem parece um trovão, que nunca é silencioso assim como ele está. Onde, em São Luís, estará esse camarada de infância, que boas lembranças deixou entre nós?

17 de julho de 2005

Sigilo Quebrado

Jornal O Estado do Maranhão    
No capitalismo, que nunca estaciona, mas, ao contrário, evolui constantemente, como afirmou repetidamente Karl Marx, existe um fenômeno chamado por Joseph Shumpeter de “destruição criativa”. Alguns setores e atividades da economia, e os empregos a eles vinculados, são periodicamente destruídos, porém recriados, com outras características, em novas áreas, de tal forma que, no balanço final, a destruição é compensada, mais ou menos na mesma proporção, pela criação. Essa dinâmica, segundo a visão shumpeteriana, surge das inovações tecnológicas introduzidas no sistema econômico, com apoio em estruturas de crédito, por firmas inovadoras, capazes, dessa maneira, de se apropriar, durante algum tempo, de lucros extraordinários.
Evidentemente, não é consolo para os trabalhadores demitidos a existência de oportunidades de conseguir novos empregos. De qualquer modo, as chances não estarão ao alcance deles porque, de fato, eles só poderiam obter trabalho outra vez a um custo muito alto de retreinamento, ou, talvez, não sejam mesmo “treináveis” para o novo ambiente econômico e jamais venham a incorporar os novos padrões exigidos da mão-de-obra. Todas as habilidades desses trabalhadores, já nel mezzo del cammin de suas vidas, estão adaptadas às tecnologias antigas. Assim, o drama humano representado pelo espectro do desemprego inevitavelmente assombra as economias capitalistas.
Mas, os problemas acabaram. Daqui por diante, o capitalismo, selvagem ou civilizado, não mais enfrentará crises periódicas. Agora, está ao alcance de qualquer um compensar a falta de renda advinda dessa situação, com a produção de hortifrutigrangeiros, que se pode chamar legitimamente de verduras ou, mais legitimamente ainda, de verdinhas.
Não será difícil ver porque o ramo é tão promissor. Basta uma análise, ainda que superficial, dos lucros formidáveis obtidos por um assessor de parcos recursos, de um deputado estadual do PT do Ceará, este, por coincidência, irmão do ex-presidente do PT nacional, José Genoíno. O sujeito foi preso com R$ 200 mil numa estufada mala e mais US$ 100 mil na cueca. Preso, disse toda a verdade, embora correndo o risco de atrair concorrentes para seu negócio: “O dinheiro vem da venda de produtos na CEASA”, local onde se vendem, ou pelo menos se vendiam, frutas e hortaliças. Sobre a origem da cueca, que segundo as autoridades não tinha marcas de batom, preferiu usar o direito de calar-se para sempre.
Ora, se alguém obtém uma receita de R$ 437 mil – vamos supor não ser essa a receita de uma semana, mas de um mês – com a venda de verdinhas, um negócio de custos relativamente baixos, sem demanda de conhecimentos tão especializados que não possam ser rapidamente aprendidos, a não ser o difícil reconhecimento de cores – esta verdura deve ser verde, aquela deve ser também, etc. –, então, eis o caminho para os desempregados deste país. Nunca mais Lula precisará se preocupar em criar os dez milhões de empregos prometidos na campanha presidencial e a palavra demissão perde, instantaneamente, o tom de condenação à perda eterna de renda. Basta o desempregado se dedicar ao ramo das verdinhas a fim de alcançar uma situação econômica bem melhor do que a anterior, quando ainda estava empregado.
Porém, como tudo no mundo é incerto, sempre haverá a possibilidade de o negócio dar com os burros n’água, esvaziando as burras do novo produtor que voltaria à condição de reles sem-emprego. Aí, ele poderia mudar de setor, dedicando-se à produção de malas à prova de raios X, cuja procura está em alta hoje e por muito mais tempo no futuro. Todavia, se ele decidir fabricar cuecas, daquelas próprias para o acondicionamento de verdinhas, que têm forte procura também, as CPIs vão ter de quebrar o sigilo de todas elas.

10 de julho de 2005

Destroços

Jornal O Estado do Maranhão   
Machado de Assis, agnóstico assumido, gostava de ler um importante livro do Velho Testamento: “Eu me consolo no desconsolo do Eclesiastes”, disse certa vez referindo-se a suas leituras bíblicas. Sigo seu exemplo. É dessa porção da milenar sabedoria judaica a afirmação de não haver novidades no mundo. “Não há nada que seja novo debaixo do céu e ninguém pode dizer : Eis uma coisa nova. Porque ela já houve nos séculos que passaram antes de nós”. Portanto, não devemos nos surpreender por ter a alta direção do novo PT se revelado tão corrupta e incompetente como se revelou, adotando práticas mais desonestas do que as apontadas nos seus antigos adversários.
Mas, como todas as coisas têm o tempo certo, de acordo ainda com o Eclesiastes, havendo o momento de destruir e o de construir, pode ser que estivesse escrito desde sempre ser este o de CPIs. Se não forem por estas erguidos os fundamentos da eliminação da corrupção brasileira bem como da reconstrução moral de um dos países mais corruptos do mundo – o nosso – as últimas esperanças de regeneração da nação estarão mortas.
A verdade é esta. Mesmo aqueles que não votaram em Lula, alguns por temerem suas bravatas e de seu partido contra o FMI e as políticas “neoliberais” do governo FHC, outros por julgarem primária sua visão sobre a difícil tarefa de governar um país de economia complexa como a do Brasil, num ambiente de feroz competição nos mercados globalizados, e perceberem nele certa tendência à adoção de soluções simplistas para problemas de intricada solução, mesmo os que não votaram em Lula, eu dizia, tinham uma ponta de esperança, pelo menos quanto à ética, de ser o seu governo capaz de fazer-nos chegar a melhor tempo, tempo de “lançar fora” o joio e de edificar uma nova ordem moral.
No entanto, o oposto se vê agora com a enxurrada de denúncias de compra de votos de parlamentares, visando o apoio a projetos encaminhados ao Congresso pelo governo, e de revelação de esquemas de desvios de dinheiro nas estatais. A corrupção anterior não só não foi extirpada como aprofundou, infelizmente, seu status como uma das instituições mais características da cultura brasileira.
Sinceramente, não digo isso com prazer nem para me regozijar no conhecido “eu não disse?”. Digo como um lamento, por causa da frustração da grande maioria dos brasileiros honestos. Dos políticos antigos se dizia: “Eles são assim mesmo, não têm jeito”. Do PT se esperava alguma mudança, pela sua pregação anterior. Quando iremos novamente ter a mesma esperança? A única restante é a de que tudo isso possa servir para reformas verdadeiras. A política, por exemplo, uma entre muitas necessárias, mas não essa em tramitação atualmente no Congresso, que mal fala em fidelidade partidária, permite a existência de partidos de aluguel e retira do eleitor a escolha dos nomes dos candidatos a serem eleitos e a transfere aos caciques partidários.
Mas, nem tudo são destroços morais malcheirosos. Eis, para quem tiver olhos para ver, a figura admirável do senador do PT Eduardo Suplicy. Ameaçado de punição pela direção do partido, por ter apoiado a criação da CPI destinada à apuração das denúncias, foi ainda chamado de estranho pelo estalinista José Dirceu. Foi ao dicionário e deu sua resposta. Era sim, estranho, porque ser estranho é ser diferente, e ele era diferente moralmente do próprio Dirceu e de seus cupinchas. Aí está um autêntico Quixote, aquele que na concepção de Vargas Llosa, no seu magistral estudo introdutório à edição do quarto centenário do Don Quixote, da Real Academia Espanhola, era capaz de “desacatar os poderes, as leis e os usos estabelecidos, em nome do que é para ele um imperativo moral superior”. Nem tudo está perdido com homens assim. Pelo menos temos esse consolo.

Machado de Assis no Amazon