26 de maio de 2002

Sérgio Barreto

Jornal O Estado do Maranhão
Os amigos chegavam aos poucos, a partir das dez horas, buzinavam, abriam eles mesmos o portão e entravam sem pedir licença. Iam direto à cozinha, abriam a geladeira, tiravam uma cerveja, ou uma coca-cola, no congelador desde cedo, e sentavam-se a fim de conversar nos sábados pela manhã, na casa do Ipase. Falávamos de tudo e de nada, de todos e de ninguém.
Conversávamos sobre coisas aparentemente triviais. O futebol, por exemplo, especialmente na época de Copa do Mundo, como nestes dias. Isso, acho, trouxe-me à lembrança agora aquelas manhãs em que nossos problemas e angústias do dia-a-dia desapareciam durante algumas horas. Perguntávamos pelas pessoas e por Zico, o cachorro pinsher da casa. Havia sumido de novo?
O dono da casa, com um característico senso de humor e com um exagero muito próprio, dizia nunca ter visto tanto choro em toda sua vida como quando chegou a notícia do atropelamento que deixara o animal cego de um olho e capenga. “Quando eu morrer, vai ter menos choro aqui em casa do que prá Zico”.
Poucos anos depois, quando ele veio a falecer, todo mundo compreendeu sua intenção. Ele estava querendo dizer que não lamentassem tanto se ele por acaso morresse em um futuro próximo. Sua doença, no entanto, anda não havia se revelado, com toda sua indiferença pela sorte dos homens bons. Qual intuição misteriosa o levou a pressentir a tragédia na véspera da chegada dela?
No meio da tarde e do expediente de trabalho, na Secretaria do Meio Ambiente, recebo uma ligação de Gastão Vieira. Ele me diz não ter boas notícias sobre a saúde de Sérgio Barreto. Fomos ao Ipase. Nos dois anos seguintes, aquele foi o único momento em que o vimos admitir um pouco de medo. No entanto, estávamos ali, eu e Gastão, em frente a um amigo fraterno e querido, parte importante de nossas vidas, conselheiro, orientador, moderador, crítico, guia, pai e irmão, sem saber o que dizer, recusando-nos, revoltados, a acreditar no aniquilamento físico de uma pessoa com tanta vida para viver ainda, paralisados mentalmente, tomados pela emoção, e eis ele a consolar-nos. Não havia de ser nada, a medicina tinha recurso para as piores enfermidades.
Penso constantemente na coragem dele em enfrentar aqueles anos de luta contra o mal traiçoeiro do câncer, sem jamais lamentar-se, sem achar que outros, menos nobres, poderiam, ou deveriam, ter sido os atingidos, sem se queixar do destino cruel, sem descuidar da preparação meticulosa da vida de sua família para depois de seu desaparecimento e sem deixar de presidir nossas reuniões dos sábado, tomando sua cerveja, sentado em sua cadeira preferida ou semideitado na rede do terraço.
Nessas ocasiões, quando se referia à doença, mostrava sempre otimismo e confiança. Mas, conhecendo seu espírito realista e sua forma de encarar a vida e a morte sem nenhuma ilusão, sei que ele queria, com essas manifestações, evitar o sofrimento de sua família – sua mulher Leda, seus filhos Caio e Vanda – e de seus amigos. Não fora assim, eles sofreriam por acreditar que ele poderia estar sofrendo. Ele esteve sempre consciente de tudo, mas fingia não conhecer a sentença irrevogável.
A morte de um grande amigo sempre nos rouba um pedaço de vida. Ficamos também instantaneamente mais próximos do fim, pelo sofrimento e pelas referências perdidas. Certas experiências e lembranças em comum, compartilhadas, morrem também e assim morremos um pouco. Foi esse meu sentimento quando tudo acabou.
Na véspera de sua morte, quando entrei em seu quarto, ele me olhou, entre sentado e deitado na rede, como em outros tempos, quando eu chegava naqueles sábados, e disse: – Senta aí, pô. Era sua maneira de ser carinhoso com os amigos. Foi a última vez que o olhei vivo e foram as últimas palavras que ouvi dele. Fiquei calado. Apenas me sentei e fiquei olhando uma vida chegando ao fim. Não sei se ele viu as lágrimas nos meus olhos. Eu percebi que era chegada a hora de sua alma descer aos lugares pálidos, duros, nus. Ele também.

19 de maio de 2002

Brasil 2000

Jornal O Estado do Maranhão
A construção de uma nação é uma empreitada de gerações, de caráter coletivo, sem donos nem chefes. Tem sido um equívoco persistente de muitos ver a história como um feito espetacular de homens de qualidades extraordinárias. Pela força da vontade, disciplina e capacidade de mando eles seriam capazes de moldar a trajetória dos povos, não importando a história anterior destes, seu ambiente natural e cultural, suas relações com sociedades diferentes das suas e outros fatores, poucas vezes passíveis de serem controlados por qualquer pessoa individualmente.
Ao assinalar esse engano, não quero negar a importância dos líderes. Todo grupo humano, por necessidade de sobrevivência, precisa de uma direção. Como os talentos são distribuídos desigualmente, embora tenham uma distribuição normal, haverá sempre os indivíduos com menos habilidade para conduzir e os com mais. Estes tenderão a exercitá-la de fato. É um fenômeno natural. Desejo, apenas, enfatizar a grande importância da coletividade na edificação de uma nação. Isso ajuda a não atribuirmos uma importância perigosa à praga do messianismo. Ele brota quase sem controle em momentos de crises e durante eleições, levando ao aparecimento dos nefastos salvadores da pátria.
Essa atitude profilática de desconfiança ajuda-nos também a ter consciência de uma idéia escondida nessa visão da história como produto da vontade de homens excepcionais. É a idéia de superioridade de alguns povos sobre outros. O raciocínio é o seguinte.
Surgem “grandes líderes” apenas entre alguns poucos desses povos, não entre todos. Não será sinal de incapacidade que alguns não produzam tais lideranças? Não serão eles inferiores, se nem grandes chefes conseguem gerar, para arrancá-los da pobreza? A resposta positiva a essas perguntas, ainda que inconsciente ou implícita, dada por muitos, é o alicerce dessa maneira de pensar. Todavia, as personalidades historicamente marcantes nada mais fazem do que aproveitar, por meio de seus talentos naturais, situações favoráveis a sua atuação.
Essa reflexões ocorreram-me após a divulgação do Censo 2000 do Brasil. Vê-se, pelos seus resultados, e apesar das dificuldades, o país caminhando na maioria das áreas, apesar do muito que ainda falta ser feito, ou que deva ser desfeito, especialmente a respeito da concentração na distribuição de renda regional e pessoal. Os bons resultados – e o maus, – nasceram do trabalho, não de um governo, ou de um presidente, mas de várias administrações. Foi uma realização da nação.
Na educação, estamos próximos da cobertura universal da população entre 7 e 14 anos de idade. Nessa faixa, 95% das crianças estão na escola. Mas, houve avanços em todas as outras. Devemos agora melhorar a qualidade do ensino. A taxa de mortalidade infantil está em 29,6 óbitos infantis por mil nascidos vivos. O Brasil foi além do estipulado pela Cúpula Mundial das Nações Unidas pela Criança que estabeleceu a meta de 32 óbitos para o ano 2000.
O rendimento médio dos chefes e das chefes de domicílios brasileiros aumentou 41,9% desde o último Censo, passando de 542 para 769 reais, sendo que houve uma redução na diferença de ganhos entre homens e mulheres. Fizemos progressos no consumo de bens duráveis e de serviços, como automóvel, microcomputador, aparelho de ar condicionado, rádio, televisão, geladeira, máquina de lavar roupa, telefonia, energia elétrica. A economia cresceu, elevou sua produtividade, modernizou-se, e o país melhorou na área social.
 Um observador estrangeiro disse há pouco que o principal problema com os brasileiros era sua baixa auto-estima. Porém, os resultados do Censo não autorizam uma expectativa pessimista sobre o futuro do país, apesar dos problemas ainda não resolvidos, desde as baixas taxas de crescimento do PIB nos últimos anos até as altas taxas de desemprego. Se fomos capazes de resolver vários de nossos problemas na última década, nada nos permite supor que não continuaremos a fazê-lo nos próximos anos.

12 de maio de 2002

Bem da pátria

Jornal O Estado do Maranhão
Saddam Hussein, o chefão do Iraque, é uma figura conhecida no mundo todo. As pessoas pensam nele apenas como um sujeito mau, com um bigode no estilo Stálin, que vive aterrorizando o povo iraquiano, com a prática de tiro ao alvo, ou melhor, de tiro à oposição.
 Mas, como as agências de notícias internacionais, em especial as americanas, vivem dizendo, ele vai além disso. É a própria encarnação de Satanás na Terra, já que suas forças armadas possuem armas de destruição em massa. Os americanos, a julgar pela maneira de falar deles, não têm tal tipo de armamento nem sabiam que o Iraque o tinha durante a guerra deste país, então aliado dos Estados Unidos, contra o Irã.
De qualquer modo, esse tipo de equipamento não pode ficar nas mãos de um diabólico qualquer como Saddam, um dos articuladores, junto, imaginem, com os inimigos iranianos, do eixo do mal, obsessivamente mencionado pelo presidente Bush, filho. No máximo, pode ficar sob o controle de caubóis texanos. Por isso, as tropas de Tio Sam não tardarão a passear na capital iraquiana, Bagdá, em nome da paz entre os povos e da prosperidade da indústria bélica.
Quanto ao incômodo defeito de ser um ditador, o infernal Saddam está na companhia angelical de gente bastante apreciada pelas diplomacias inglesa e americana, como o general golpista do Paquistão, Musharraf. É curioso como a imprensa internacional não o chama pelo nome verdadeiro de ditador. Diferentemente de seu colega iraquiano com seu bigodão, ele prefere um bigodinho. Como os dois professam a mesma fé islâmica e reprimem com igual vigor os adversários, esse é o único meio do paquistanês não se confundir com o colega.
Para não se dizer, no entanto, que o iraquiano não passa de um mal humorado, daqueles que odeiam o mundo e a vida, um ressentido com traumas impossíveis de serem explicados até por Freud, ele resolveu mostrar um surpreendente senso de humor. Não o macabro, já exercitado por ele há muito tempo contra seus súditos. Mas, um de outro tipo. Mais guerreiro, digamos.
Sob a alegação de preparar o país contra a anunciada invasão norte-americana, Saddam botou os ministros para correr, em compacta formação militar, em lugar secreto qualquer de Bagdá, como exemplo a ser seguido pelo povo. A cena, mostrada na televisão, tem um quê de ridículo e grotesco, mas não deixa de ser engraçada. Senhores de certa idade, fardados e com um sorriso meio amarelo, estão lá fazendo um esforço comovente. Querem entrar na cadência da corrida, parecer em plena forma. Tentam acertar o passo. Mas o que eles fizeram mesmo foi dançar conforme a música. Aliás, quem não dançasse, dançaria de seus postos. Em vez de correr pelo chefe, seriam postos para correr do chefe.
Vamos supor, agora, que os Estados Unidos, em nome dessa tal de globalização tão execrada, inventada pelo FMI na imaginação de muita gente, e no interesse dos valores da civilização cristã-ocidental, resolvesse invadir o Brasil, com o fim de destruir tudo que os brasileiros mais valorizam: o futebol, o jeitinho brasileiro, a cachaça, a cerveja, o samba, o Carnaval, o São João, os feriadões, as mulatas e as louras também, de verdade ou não. Nosso governo, sabendo desses planos, iria treinar a nação para a defesa de seu território. O presidente, inspirado em Saddam, chamaria os ministros à ordem unida.
Qual seria o desempenho dessa turma? Eles seriam capazes de dar uma volta completa em torno da Esplanada dos Ministérios, em Brasília? Ou desistiriam todos nos primeiros cem metros? Esses sérios senhores mostrariam determinação e garra num momento tão importante? Ou mandariam tudo às favas e iriam plantar batata em outro lugar?
O certo é que existe aí uma diferença entre o Brasil e o Iraque. Enquanto os “desertores” de lá iriam enfrentar tempos difíceis na prisão, ou coisa pior, os daqui teriam empregos assegurados em uma multinacional, de preferência da área financeira. Para compensar os imensos sacrifícios que sempre fizeram pelo bem da pátria.

5 de maio de 2002

Lua, júpiter, marte...

Jornal O Estado do Maranhão
Escrevem-me alguns leitores. Dizem ter percebido algo estranho em meu artigo do último domingo. É que não havia nenhuma relação do texto com o título. Além disso, este era repetição de outro, “Todos os Santos”, de um artigo meu anterior, de março deste ano, sobre o livro Olhos da alma: Escola Maranhense de Imaginária, de autoria de Kátia Santos Bogéa, Emanuela Sousa Ribeiro e Stella Regina Soares de Brito. No artigo da semana passada, o assunto era diferente. Não era sobre santos, embora falasse do céu.
Têm razão os leitores. Eu mesmo fiquei surpreso com o título que não dei. Explico. Um dia desses, eu ouvia uma bela canção popular americana, chamada “Fly me to the Moon”, do compositor Bart Howard. Nela, há o romântico pedido de um namorado a sua amada de irem juntos à Lua, a fim de cantar entre os astros, e a Júpiter e Marte, somente para ver como é a primavera lá. Eu me lembrei, então, dos avanços da humanidade na conquista do espaço sideral. Escrevi sobre o assunto. Concluí dizendo não adiantar nada ao homem conquistar o Universo, se não achar também a felicidade. O título era “Júpiter e Marte”. Publicado, ele mudou. Virou “Todos os Santos”.
Afinal, o que aconteceu? Faço suposições apenas. Debito o engano à pressão do tempo nas redações e ao uso intensivo da informática. Essa tecnologia onipresente vive pregando peças nos seus usuários, somente para confirmar a Lei de Murphy, segundo a qual tudo que pode dar errado vai dar errado. De qualquer modo, não poderia ignorar as observações dos leitores. Afinal, eles tiveram o trabalho de escrever-me, apontando a troca dos títulos. Assim, evito o risco de ser acusado de ter a cabeça no mundo da Lua, ou nos de Júpiter e Marte.
Mas, já que o assunto é o Universo, abro espaço, aqui mesmo em nosso planeta, para falar das novas câmaras fotográficas colocadas no telescópio espacial Hubble em março. Esses equipamentos ampliam a visão da humanidade sobre o infinito do Universo e ajudam-nos a avançar em nosso conhecimento. Temos dele, agora, imagens mais nítidas e deslumbrantes. Elas mostram um berçário estelar na nebulosa do Cisne e uma impressionante colisão de duas galáxias, entre outras fotos. Astros antes tão longe de nós, que sequer podíamos percebê-los, ficaram de repente ao alcance de nossas vistas.
Isso me leva a pensar na Lua, admirada e reverenciada durante milhares de anos, até a chegada do homem lá, o que não diminuiu seu fascínio. Como ao nosso satélite, tão próximo, chegaremos a outros corpos celestes distantes. Já começamos a admirá-los à distância. Chegará o dia, porém, não importa quantos milhares ou milhões de anos isso possa levar, de passearmos neles e entre eles, esquecidos, pelo menos durante esses momentos de deslumbramento, da dura realidade da vida quotidiana que é, como diz o grande escritor argentino Ernesto Sabato, “uma desoladora confusão de belos ideais e canhestras realizações”. Contemplar o infinito universal é uma forma de ter a ilusão de que se pode escapar da mediocridade geral.
A mesma fascinação do primeiro ser humano a levantar os olhos para o céu e espantar-se com a Lua e as estrelas, domina agora não só os astrônomos e outros profissionais, mas todos os olhares voltados em direção ao céu, a interrogarem-se sobre o começo e o fim de tudo. Tudo começou, segundo a teoria do Big Bang, com uma grande explosão, há bilhões de anos, de um “átomo primordial” que ocupava um espaço infinitesimal, dando origem a um Universo em expansão até hoje.
Virá a hora, no entanto, de essa força expansiva ser mais do que compensada pela força da gravidade. O Universo irá contrair-se, terminando por concentra-se de volta naquele átomo singular. De acordo com uma variante da teoria, a partir desse momento haverá uma nova explosão, em um processo cíclico sem fim. E sem começo. Esse um dos grandes mistérios perante a humanidade. Ele vem inquietando a mente humana há milênios. Será, algum dia, totalmente compreendido pelo homem?

Machado de Assis no Amazon