30 de dezembro de 2007

Em 2007

Jornal O Estado do Maranhão, 30/12/2007

Este ano ofereço, se me derem licença os leitores, retrospectiva de segundo grau, pois em vez de discorrer de maneira direta a respeito de acontecimentos importantes de 2007, vou falar sobre o que falei a propósito deles, conforme apareceram em minhas crônicas. Desse modo, os dou através do filtro – tão bom ou tão ruim quanto o de qualquer outro comentarista – que utilizei para selecioná-los. Refletirão, dessa forma, meus interesses e gostos pessoais. O leitor julgará a pertinência de minha seleção não exaustiva e de minhas opiniões, cuja relevância poderá vir, não destas, mas da própria relevância dos fatos.
A economia brasileira foi objeto de duas crônicas. Fiz, primeiro, críticas ao chamado Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, mera re-arrumação orçamentária a serviço de uma jogada de marketing. Em outro texto, porém, defendi o governo em sua tentativa de estabelecer a chamada DRU – Desvinculação de Recursos Orçamentários, porque o excesso de vinculações enrijece a política fiscal e a torna ineficiente, tirando dos dirigentes a liberdade de modificá-la, do lado dos gastos, quando necessário.
No campo cultural falei sobre publicação de livros de autores maranhenses, como Parsondas de Carvalho: um novo olhar sobre O sertão, de Sálvio Dino; Memória da advocacia no Maranhão, de Milson Coutinho; Coletânea de artigos da Revista Maranhense: Artes, Ciências e Letras, organizado por Antonio José Silva Oliveira; São Luís, azulejo e poesia, de Antônio Carlos Lima.
Mas, não assinalei apenas livros. Fiz comentários acerca do meritório trabalho de Américo Azevedo Neto, com sua Companhia Cazumbá, Teatro e Dança bem como sobre o desagrado de parte da população de Pedreiras com a prefeitura da cidade pela recusa dos dirigentes municipais em apoiar a chamada música axé no Carnaval e, relacionadas a isso, comentei ingênuas concepções de tradição e cultura popular. Ainda na área cultural, Machado de Assis e suas observações, em crônicas, a respeito do Maranhão e maranhenses foram objetos de três crônicas.
Nos assuntos internacionais, no campo político, critiquei o regime de Hugo Chávez, da Venezuela, em duas ocasiões, em ambas apontando sua tendência ditatorial e, no ambiental, fiz referência ao relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, IPCC alertando os governos para a responsabilidade humana, “muito provável” e “inequívoca” no agravamento dos problemas climáticos mundiais. O chocante enforcamento de Saddam Hussein pelos americanos também fez parte de meu olhar sobre a cena externa.
Falei ainda a favor da Feira do Livro de São Luís e contra a divisão do Estado; contra a autonomia universitária na forma como grupos de estudantes trotskistas e assemelhados da Universidade querem impô-la e a favor da reforma ortográfica que “é boa e em pouco tempo irá beneficiar os usuários da língua [portuguesa] em todo o mundo”.
Das 43 crônicas do ano, três, pela carga de emoção, voltam sempre à lembrança. Uma, fala do nascimento de meu neto Davi; a segunda aborda a barbárie cometida no Rio de Janeiro contra um garoto, João Hélio, de apenas seis anos, arrastado pelo automóvel de seus pais, dirigido por bandidos, por sete quilômetros; a última lembra a morte em julho de nossa querida e inesquecível Lucy Teixeira, escritora da linhagem de Machado de Assis, Murilo Rubião e Clarice Lispector.
Temos 2008 agora pela frente. É o ano do Centenário da Academia Maranhense de Letras. A nova Diretoria, por mim presidida, receberá tão-só em fevereiro, do atual presidente, Joaquim Itapary, a direção da Casa, a partir de quando irá elaborar a programação das festividades. Não pequena será nossa responsabilidade. Anima-me, porém, a certeza de contar com o apoio dos acadêmicos e da sociedade maranhense.

23 de dezembro de 2007

O bom Papai Noel

Jornal O Estado do Maranhão

O Natal está conosco mais uma vez. A tradição milenar de comemorar o nascimento de um homem, Jesus Cristo, que nasceu há mais de dois mil anos numa pequena cidade do Oriente Médio e teve, e tem, tanta influência sobre milhões de pessoas, é uma das mais enraizadas de nossa cultura. Mesmo as pessoas sem religião, os ateus, os agnósticos e toda a gradação de homens e mulheres sem fé em seres superiores e intangíveis, ou em vida após a morte, ou melhor, em vida após a vida terrena, em reencarnação, vêem, como vejo, o Natal, como parte de suas melhores lembranças de crianças e de adultos com filhos e netos.
Embora mais recente ou menos antigo do que o Natal, pois vem de quase quatrocentos anos depois do nascimento de Cristo, Papai Noel – Pai Natal dos portugueses e Santa Claus (Saint Nicholas), Santa, tão-só, para as crianças americanas –, faz parte dessa tradição. Na minha imaginação de menino de classe média, que cresceu sonhando com presentes na grande data do ano, sua falta na época natalina equivaleria ao cancelamento do próprio Natal.
Não são poucos, no entanto, os cristãos contra Papai Noel, ficção tão real na mente de milhões de crianças, que importamos da Europa junto com nossa língua. Em 1958, um pastor de Copenhague, na Dinamarca, chamou-o de duende pagão, causando grande polêmica, depois de uma campanha de levantamento de fundos por uma organização de ajuda aos pobres, quando sua imagem foi utilizada com o fim de conseguir donativos. Muitos membros da Igreja Testemunhas de Jeová seguem linha semelhante. Não são do século XX, contudo, as primeiras objeções religiosas a ele. No século XVI, grupos protestantes o repeliam, assim como no século XVII os Puritanos da Nova Inglaterra, que o viam como símbolo pagão ou como imposição da Igreja Católica.
Muitos psicólogos não aprovam incutir-se nas crianças a crença em Papai Noel. Isso causaria grande frustração no momento da descoberta da verdade. Não direi ser bobagem essa opinião, já que sai da boca de profissionais da psicologia. É apenas exagero. Digo apenas isto. A descoberta pode ser, creio eu, e com freqüência é, um dos momentos de entrada simbólica no mundo adulto. Quando descobri que ele era em verdade meus pais, senti, sim, alguma frustração, mas logo passei a olhar meus irmãos mais novos com certa condescendência, porque eram simples crianças, crentes ainda em Papai Noel. Eu, orgulhoso, não. Se eu não passei então a gente grande, pelo menos comecei a compartilhar um grande segredo com os adultos.
Ouvem-se vez por outra críticas à comercialização de sua imagem, usada para aumentar as vendas de fim de ano. Não é de agora tal prática, porquanto desde o início do século XIX os americanos, sempre atentos a novas maneiras de ganhar dinheiro e engenhosos em gastá-lo, a tinham adotado. Incrementar vendas e, portanto, aumentar o número de empregos bem como a renda das pessoas não é uma ação típica de alguém como Santa? Afinal, não tem origem em boas ações sua justificada fama? Existirá procedimento mais meritório de ajudar as pessoas do que dar a elas a oportunidade de trabalhar? Querem impedi-lo de agir como um verdadeiro cristão e de entrar no reino universal de Deus? Por favor, incrédulos senhores, deixem o gordo e risonho velhinho em paz. Ninguém é tão cristão quanto ele nem tão perseverante, qual o Super Homem sem criptonita, em sua eterna luta pelo bem de nossas crianças.
Ele está aí há tanto tempo que não será fácil demiti-lo nem levá-lo a pedir demissão nem muito menos aposentá-lo por tempo de bons serviços nem convencê-lo a negar presentes perfeitos para as crianças. Se não for assim, como o avô poderá ver no rosto do neto Davi, o rei Davi, o sorriso de felicidade pelos presentes de Papai Noel?
Ave, bondoso e eterno Noel.

16 de dezembro de 2007

Fortuna crítica de Machado de Assis

Jornal O Estado do Maranhão

Raros escritores brasileiros têm fortuna crítica tão extensa quanto a de Machado de Assis. Ainda em vida ele viu críticos de diversas tendências iniciarem a análise sua obra, com freqüência perplexos ante textos ficcionais que não sabiam bem como classificar e lhes pareciam estranhos.
Nas Fontes para o estudo de Machado de Assis (Rio de Janeiro, INL, 1958), J. Galante de Sousa relaciona, para o período , 1.884 verbetes. A Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis (Rio de Janeiro, Livraria São José, 1965), de Jean-Michel Massa, autor do melhor livro sobre o jovem Machado, A juventude Machado de Assis, : ensaio de biografia intelectual (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/Conselho Nacional de Cultura, 1971) acrescenta outros 132 referentes a 1957 e 713 ao ano de 1958. Em 2005, Ubiratan Machado, em Bibliografia machadiana, (São Paulo, Edusp, 2005), nos deu mais 3.282, perfazendo, assim, 6.011 verbetes. Conhecendo-se, porém, a impossibilidade de localizarem-se todas as referências ao escritor carioca na imprensa brasileira, pode-se afirmar que o total deve situar-se acima desse último número que, em 2008, ano do centenário de sua morte, deverá aumentar bastante, pois com certeza haverá copiosa produção de artigos em jornais e revistas, e de livros de ensaios.
Para se ter idéia de como evoluíram esses números, pode-se fazer uma periodização. Entre o início de 1857 e o final de 1907, ano anterior à morte de Machado, portanto num período de cinqüenta e um anos, foram identificadas 209 menções a sua obra, resultando em média anual de 4,1; nos trinta e um anos entre 1908 e 1938, este último imediatamente precedente ao do centenário de seu nascimento, surgiram mais 461, ou 14,9 por ano em média; de 1939 até 1957, logo antes do cinqüentenário de sua morte, período de 18 anos, foram outras 1.346, com média anual de 74,8, significa dizer acima de seis referências por mês; por fim, entre 1958 e 2003, período de 46 anos, foram localizadas mais 3.995, produzindo média por ano de 86,8, equivalente a mais de sete por mês.
Pode-se ver, por conseguinte, que o número médio anual de citações não apenas cresce, mas o faz a taxas crescentes em todos os períodos, com exceção do último, delimitados por datas significativas para os estudos machadianos.
Esses algarismos referem-se tão-só a material publicado no Brasil. A partir do início dos anos sessenta, pesquisadores norte-americanos intensificaram o trabalho de tradução e estudo da literatura de Machado cuja divulgação em outros países foi facilitada pela influência mundial da cultura dos Estados Unidos. Antes, contudo, a primeira tradução de uma obra dele, Memória póstumas de Brás Cubas, foi feita no idioma espanhol e publicada em Montevidéu em 1902. Em carta a Luís Guimarães Filho (Correspondência, Editora Mérito, São Paulo, 1961) diz Machado: “A tradução só agora a pude ler completamente, e digo-lhe que a achei tão fiel como elegante merecendo Julio Piquet [o tradutor] ainda mais por isso os meus agradecimentos”.
Inúmeras qualidades respaldam essa permanência do escritor carioca e levam-no a dialogar com diferentes culturas e sucessivas gerações, que renovam sempre a leitura de sua obra, levando-o a vencer o maior desafio a que um escritor pode se submeter: a prova do tempo, que diminui, ou apaga incontáveis vezes o brilho ilusório do momento. Uma delas é a originalidade, capaz de levar um conceituado crítico literário como Harold Bloom, de renome mundial, a dizer no seu livro Gênio: “Todavia, uma frieza misteriosa emana das suas Memórias póstumas, obra que contém atmosfera tão original que não permite comparação com qualquer outro texto ficcional, a despeito do débito inicial com Sterne”.

9 de dezembro de 2007

Bolas e boladas

Jornal O Estado do Maranhão

Duas notícias relacionadas à maneira como pode funcionar o sistema de justiça no Brasil. A primeira, de agosto deste ano. A juíza da Vara de Infância e Juventude de Madureira, Mônica Labuto, resolveu despachar no meio da rua. Segundo o desembargador José Carlos Murta Ribeiro, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ela expôs o Poder Judiciário a vexame e desobedeceu ordem de superior hierárquico no campo administrativo com o fim único de fazer proselitismo. A origem da história está nestes fatos.
A Vara da Infância, instalada em janeiro, funciona em prédio onde há 14 cartórios. O Tribunal decidiu que o edifício funcionaria somente até 21h, por questão de segurança. Tal determinação quase inviabilizou o trabalho da juíza, pois diligências com o objetivo de coibir a presença de menores em bares e boates, não podem ser feitas antes da hora de fechamento do prédio pela comezinha razão de que esses estabelecimentos começam a funcionar justamente depois das 21h.
Numa sexta-feira, a dra. Mônica determinou a realização de urgente diligência e, para não abrir o prédio e desobedecer a determinação do Tribunal, e depois de ter negada solicitação de aumento do horário de funcionamento, colocou mesa e cadeiras de trabalho na calçada. Ela tinha de receber autuações feitas pelos comissários entre as 22h e meia-noite ou correr o risco de ver extraviados os documentos. Enquanto os funcionários não retornavam, ela distribuiu vários exemplares do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para se ter idéia da enormidade de suas responsabilidades, é suficiente dizer-se que a Vara da Infância abrange 30 bairros do Rio de Janeiro, com um milhão e quatrocentos mil habitantes. Área tão extensa e com tanta gente necessita da presença permanente do poder público no combate à presença de menores depois das 22h em bailes funks e bares, como lá é comum. Ela queria justamente cumprir sua obrigação, mas foi ameaçada pela burocracia e pelo corporativismo judicial.
A segunda notícia, de setembro, fala de outra juíza Olga Regina Guimarães, da magistratura estadual da Bahia. A meritíssima inocentou o colombiano Gustavo Duran Bautista, acusado de enviar mais de meia tonelada de cocaína para a Europa. O Tribunal de Justiça da Bahia abriu “rigoroso” inquérito com o fim de investigar as ligações da magistrada com ele e a Polícia Federal gravou conversas telefônicas do traficante com ela e o marido, Baldoino Santana. Este, numa delas, diz que não caiu nenhum dinheiro em sua conta, comprometendo-se Bautista a fazer o depósito na manhã seguinte; em outra ela informa que foi à Polícia Federal e estava tudo “Ok” com as fichas de antecedentes do traficante. Houve mais. O casal visitou-o em julho em uma casa em São Paulo, encontro confirmado pela filha dele. Diante de tantos indícios e provas, o presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Benito Figueiredo, disse, como homem cauteloso e experiente, que a denúncia era grave, mas a dra. Olga não seria afastada naquele momento.
O resultado de todas essas peripécias? No primeiro caso, da juíza Mônica Labuto, o presidente do TJ do Rio, entrou com representação no Órgão Especial da Corte, pedindo o afastamento temporário e imediato dela. Vá querer dar mau exemplo, cumprindo sua obrigação! Vá mandar a burocracia às favas e ir em frente, a fim de ver o que acontece! No outro caso, o da juíza amiga do traficante, ela foi promovida, elevando-se de Juazeiro a Salvador, junto com um grupo de 50 magistrados.
Uma juíza não deu bola para a lei, recebeu uma boa bolada e ainda foi premiada; a outra deu tratos à bola para cumprir a lei, levou do Tribunal uma bolada na cara e ainda foi punida.
Ora, bolas, parece coisa muito bem bolada, feita por gente boa de bola (no mau sentido, claro).

25 de novembro de 2007

Machado e maranhenses

Jornal O Estado do Maranhão
Como cronista nos jornais do Rio de Janeiro, Machado de Assis fez, durante décadas, muitas referências a coisas e fatos do Maranhão, e a seus escritores. Entre estes, tinha especial admiração por Gonçalves Dias. Em crônica de novembro de 1893, revela que o vira pela primeira vez na redação do Diário do Rio de Janeiro e se emocionara: “Ouvia cantar em mim a famosa Canção do Exílio”. Mas, a muitos outros escritores maranhenses dedicou atenção também.
Em conhecida página de crítica, “A Nova Geração”, de 1879, publicada na Revista Brasileira, analisa um grupo que ia surgindo, de novos escritores. Entre eles, os maranhenses Teófilo Dias e Artur Azevedo. Aí, na primeira parte da análise, afirma o declínio do Romantismo e reafirma alguns conceitos estéticos sobre o Realismo, como já o fizera e viria ainda a fazer em outras ocasiões. Não deixa, porém, de colocar a discussão em perspectiva histórica apropriada ao ligar o ocaso do Romantismo ao “desenvolvimento das ciências modernas, que despovoaram o céu dos rapazes, que lhes deram diferente noção das coisas, e um sentimento que de nenhuma maneira podia ser o da geração que os precedeu”.
Não haveria, por isso, de condenar-se de forma absoluta um movimento literário que fornecera contribuição decisiva para nossa independência literária. E o Realismo? Tinha seu programa algum direito à exigência de ser chamado de verdadeira arte? Para Machado ele “é a negação mesma do princípio da arte” e “se a exata cópia das coisas fosse o fim da arte, o melhor romance ou o melhor drama seria a reprodução taquigráfica de um processo judicial”. No entanto, no ano anterior, 1878, em análise de O primo Basílio, de Eça de Queiroz, afirmava que “alguma coisa há no Realismo que pode ser colhido em proveito da imaginação e da arte”. Nesse quadro de idéias analisa a nova geração.
A Gonçalves Dias existem três curtas referências, de passagem apenas. Numa delas compara sua poesia com a de Teófilo Dias. “A Gonçalves Dias sobrava certo vigor, e, por vezes, tal ou qual tumulto de sentimentos, que não são o característico dos versos do sobrinho”. Para Machado o tom principal deste é a ternura cheia de melancolia e certa audácia de estilo. Descobre no espírito do poeta maranhense, ao comparar seu último livro, Cantos tropicais, com o anterior, Lira dos verdes anos, tendência nova, mais de acordo com os novos tempos.
De fato, uma das características da poesia da recente escola era a rejeição ao puro sentimentalismo romântico e a invocação de conceitos como Justiça, Liberdade, Revolução, Socialismo, Positivismo e outros que, constituindo nobres aspirações sociais, certamente não poderiam ser tomados como ideais literários ou estéticos. No poema Poesia Moderna, essas características se mostram e fazem sentir a Machado “que esses toques políticos do Sr. Teófilo Dias são de puro empréstimo, talvez um reflexo do círculo de amigos”. A avaliação final é positiva, pois diz que seu verso é melódico e puro.
Não é o caso com Artur Azevedo. Neste não encontra Machado a mesma propensão presente no poeta dos Cantos Tropicais, e considera sua poesia puramente satírica. De O dia de finados, A rua do Ouvidor e Sonetos diz “que o estilo de tais opúsculos é incorreto, que a versificação não tem o apuro necessário, e aliás cabido em suas forças. Sente-se naquelas páginas o descuido voluntário do poeta; respira-se a aragem do improviso, descobre-se o inacabado do amador”. Mas o defeito mais grave que lhe acha está em outro aspecto. “A cor das tintas é demasiado crua, e os objetos nem sempre poéticos”. Acha, de qualquer modo, nos sonetos do maranhense a melhor parte de sua obra, julgamento que não contempla evidentemente a produção completa de Artur, ainda em construção naquele 1879.

18 de novembro de 2007

Democracia em excesso

Jornal O Estado do Maranhão
É fácil dizer que existe democracia em países ditatoriais quando não se mora lá ou quando se é presidente de outro, onde ela se impôs. Muitos que não moravam na União Soviética, mas tinham imensa admiração por Stálin e seu regime, eram a favor da ditadura do proletariado, cuja existência era justificada como forma superior organização política, mas não a suportariam, com certeza, como muitos não suportaram, residir na antiga URSS. No Brasil, eram, claro, contra a pluralidade de partidos políticos, a liberdade de imprensa, os direitos individuais, contra tudo, enfim, que lembrasse a “democracia burguesa”, pois tinham a esperança de, no futuro, o partido deles se tornar o único. Não sendo isso possível, se contentavam em aproveitar as desprezíveis liberdades de que gozavam na época, a fim de planejar a ditadura popular a ser dirigida pelos camaradas mais espertos, sem essa chatice de dar satisfações à sociedade.
É de se lamentar que o presidente Lula, incansável e duro crítico da ditadura brasileira quando líder metalúrgico em São Paulo, saia em defesa do caudilho Hugo Chávez, que acaba de anunciar a implementação de um plano de desenvolvimento de energia nuclear, depois de o rei da Espanha mandar o perigoso falastrão venezuelano, que aos poucos encaminha a Venezuela em direção da ditadura pessoal, sem disfarçá-la, sequer, com a capa ideológica da ditadura do proletariado, calar a boca em reunião da 17ª Cúpula Ibero-Americana. Não é a primeira vez. Há meses, Lula invocara, com o fim de justificar medida arbitrária do venezuelano, pretensa aderência à legislação local do decreto de Chávez de fechamento da RCTV, a maior rede de televisão privada daquele país. Esqueceu, ou fingiu não saber, ou não sabe, mesmo, das façanhas de Hitler, para ficar no exemplo mais conhecido. O alemão também agiu dentro da lei, quando se tornou chefe de governo, e seria reeleito quantas vezes quisesse, como o venezuelano quer agora. Alguém teria a coragem de dizer que a Alemanha era uma sociedade livre nos tempos de Hitler? Desejará nosso presidente algo semelhante no Brasil?
Mais lamentável do que a defesa da esdrúxula democracia venezuelana foi a confusão feita por Lula entre presidencialismo e parlamentarismo. Ora, se ninguém reclamou, como ele disse, do longo tempo de governo de Margareth Thatcher, do Reino Unido, e de Felipe Gonzales, da Espanha, é porque no parlamentarismo governa quem for majoritário no Parlamento. O primeiro ministro é apenas o eleito ou aprovado pela maioria, com o objetivo de exercer as funções de chefe do governo. Ele permanecerá nesta condição enquanto seu partido for majoritário nas sucessivas eleições, como ocorreu naqueles dois países. Caso contrário, passará suas funções à nova liderança da, até aquele momento, oposição. Não é mesmo caso de reclamação – britânicos e espanhóis não reclamaram –, pois essa é a regra do jogo.
No presidencialismo é diferente. O presidente, eleito em votação direta, e não pelo Congresso, poderá se achar em minoria no Legislativo, mas não será obrigado a deixar o governo, devendo cumprir mandato fixo até o fim. Nesse sistema, de um modo geral, é permitida apenas uma reeleição. Os Estados Unidos, que permitiam a reeleição por sucessivos períodos, limitou-a, com a 22ª Emenda, a apenas uma, depois dos quatro mandatos de Franklin Roosevelt.
Pois Chávez manipulou as regras e mudou-as, aproveitando-se da infeliz decisão da oposição de se abster de participar das últimas eleições para o Congresso, dando vantagem ao governo. Agora poderá se eleger quantas vezes quiser, se a mudança for aprovada em referendo, tornando-se presidente eterno da Venezuela. Por excesso de democracia, conforme a bem informada e moderna análise de Lula.

11 de novembro de 2007

A cidade fala

Jornal O Estado do Maranhão
São Luís fala. Fala, esta cidade. Fala por sua história, sua geografia, sua arquitetura, seu traçado português, suas ruas em ladeira, seus sobrados e igrejas; por sua gente e suas crianças; por seus ventos, como agora, pura carícia e frescor; fala por suas hipnotizantes luas cheias que o bebê com nome de rei do povo judeu olha fascinado, comparando-as com a lâmpada acesa na sacada do alto prédio, de onde se vêem navios à distância, iluminados ( com a luz da lua?) na noite tão bonita. São vários os idiomas, os signos, as linguagens reveladores da cidade.
Ela fala também por seus bons escritores, artistas plásticos e fotógrafos, que os há apaixonados por ela, e muito. Vejam o caso deste São Luís, azulejo e poesia, pequeno e belo livro com texto de Antônio Carlos Lima e ilustrações de Jesus Santos, contando ainda com fotos de Márcio Vasconcelos.
Antônio Carlos, um dos melhores jornalistas maranhenses, ex-diretor de redação deste jornal e ex-diretor do Centro de Estudos Brasileiros, da embaixada do Brasil em Santiago, Chile, fez São Luís contar sua própria história, desde a fundação até nossa época, depois de ter conversado com ela, seduzindo-a e convencendo-a a se mostrar, a fim de obter um texto natural e simples. As crianças, que formam o público a que o livro se dirige, terão ouvidos para escutar e olhos para ler, e mais terão quando adultos, pois se o tiverem lido terão crescido no amor pela cidade – não aquele do poeta, eterno apenas enquanto durar –, pois será amor, se me permitem dizer, eternamente eterno, como são os amores delas. Por acaso, alguém deixa de ser criança?
Desde a vinda dos franceses, comandados pelo senhor de La Ravardière e por François de Rasilly, fundadores da França Equinocial aqui, e mesmo antes da vinda deles, a partir da chegada a nossas terras de piratas e aventureiros de várias nacionalidades, ainda no século XVI, até o surgimento da metrópole de quase um milhão de habitantes de nossos dias, quase 400 anos depois de sua fundação em 1612, passando pela período de grande crescimento econômico no século XIX, que possibilitou o surgimento de uma brilhante geração de intelectuais, quando se tornou conhecida como Atenas Brasileira, e permitiu a construção de um conjunto arquitetônico de grande valor histórico atualmente, assegurando-lhe em 1997 o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, dado pela Unesco, o texto toma o leitor ou o pequeno leitor pela mão, no estilo caracteristicamente leve e descomplicado de Antônio Carlos, correto, seguro, claro e saboroso, como se pode ver no seu livro de crônicas e reportagens Além da Ilha, e o conduz pela história da cidade, de forma didática, com paciência de bom professor, dando informações precisas, indicadoras da notável capacidade de síntese no autor.
Jesus Santos, expositor em São Paulo, Brasília, Salvador, Bogotá e Nova York, artista maduro e inquieto, que realizou sua primeira exposição no Salão Nobre da Academia Maranhense de Letras em 1967, hoje em pleno domínio de seu artesanato pictórico e um dos maiores talentos, se não o maior de sua geração, valoriza o livro com ilustrações de cores vibrantes ajustadas perfeitamente ao texto e, portanto, ao próprio público a que é destinada a obra, contendo todos os elementos simbólicas do nosso imaginário acerca dos momentos fundadores de nossa sociedade e desse corpo vivo que é a cidade.
Não sei se ainda se ensina história do Maranhão nas escolas. Se o fazem, este deveria ser livro de uso obrigatório. Se não, deveriam fazê-lo. Afinal, num ambiente em que se produzem tão poucos livros sobre o assunto e num ano em que a cidade completa 10 anos como Patrimônio da Humanidade, o aparecimento de um como esse deveria ser motivo de adoção imediata pelas escolas e salvas de foguete.

4 de novembro de 2007

Arte Cazumbá

Jornal O Estado do Maranhão
Não surpreenderá o sucesso que a Companhia Cazumbá, Teatro e Dança faz no Brasil e no exterior a quem vir amostras de seus espetáculos, como vimos na semana finda, vários confrades da Academia Maranhense de Letras, no Centro de Cultura Cazumbá, na rua da Manga, no bairro do Portinho, ao lado de outros convidados do teatrólogo, coreógrafo e escritor Américo Azevedo Neto, diretor do grupo, com décadas de paixão pelas artes no Maranhão e ocupante também de uma cadeira da AML. As instalações foram reformadas, novos equipamentos de som e iluminação foram montados, e exposição e venda de livros e discos de escritores e músicos maranhenses bem como peças de artesanato estão agora permanentemente à disposição do público. A Companhia disporá daqui por diante de aprimorada infra-estrutura e atualizada tecnologia de palco. Os espetáculos, quando não estiver excursionando, serão sempre às quartas-feiras. O trabalho, um dos mais consistentes, persistentes e inteligentes no mundo da dança e teatro brasileiros, conta com o apoio, desde 2003, da Petrobrás, por meio dos mecanismos da Lei Rouanet, de apoio à cultura no Brasil. O grupo anda pelo Brasil e mundo. Já esteve em Santos, apresentando-se no Teatro Municipal Brás Cubas; em Passo Fundo, na 21ª Feira do Livro; no Rio de Janeiro, no Circo Voador, em 2006, quando comemorou 1.000 apresentações em excursões; em Capina Grande, na Paraíba, no Festival de Inverno; em Curitiba, no Teatro HSBC; em Diadema, no Centro Cultural Diadema; em Fortaleza, no Anfiteatro Sérgio Motta - Dragão do Mar; em João Pessoa, no Teatro Ariano Suassuna; em quase todas as capitais brasileiras e na França, abrindo o Festival de Dança de Lyon. Num mercado como o nosso, com oportunidades de emprego limitadas, em particular no campo das artes, a existência de uma companhia como essa, utilizando em tempo integral 47 pessoas, entre artistas e administradores, força de trabalho mais numerosa do que a da maioria das empresas do Estado, é sinal de competência administrativa e artística e da força de nossa cultura, capaz de produzir espetáculos tão belos em meio a muitas dificuldades, mas se mantendo sempre de pé, sustentada por suas profundas raízes na terra, como neste caso. Mas, afinal, o que é a Cazumbá? Vamos defini-la pelo que não é. Como Américo repete à exaustão, não é um grupo folclórico. Utiliza, sim, temas do folclore (do bumba-meu-boi, tambor de crioula, péla porco e outros) sejam de raízes africanas, européias ou indígenas, como matéria prima, processando-os com inventividade. Estiliza-os, transformando-os em criações originais. Pode-se identificar pelo visto no palco – é de manifestações feitas ao ar livre em suas origens, mas depois levadas ao palco, de que estamos falando – os motivos populares inspiradores dos espetáculos, mas sente-se em tudo coisas novas e belas. Não fizeram diferente, muitas vezes, grandes nomes da literatura mundial ao aproveitar o folclore de suas culturas com o fim de produzir obras de alcance universal. Fiquemos tão-só no exemplo russo: Púchkin, fundador da moderna literatura russa, utilizou canções da poesia popular medieval russa em suas composições. Tchaikóvski fez algo semelhante na música clássica. Esse processo de recriação com originalidade, de incessante renovação estética, é feito por artistas o tempo todo. Os assuntos tratados artisticamente, são em verdade poucos, pois tudo sobre o homem com suas angústias e alegrias já foi dito, desde que o primeiro teve um minuto de ócio na luta pela sobrevivência e pôde levantar a vista, olhar para o infinito do universo e refletir sobre o finito de sua própria vida. Arte é precisamente dizer de forma nova e com renovado vigor o dito há muito tempo. É isso o que vem fazendo há 34 anos a Companhia Cazumbá. E muito bem.

28 de outubro de 2007

A Feira

Jornal O Estado do Maranhão
A Feira. É dessa forma que deveríamos nos referir à Feira de Livros de São Luís, encerrada ontem na Praça Maria Aragão e cujo patrono foi Josué Montello, porque ela o foi de verdade, e das melhores. Foi uma promoção da Prefeitura Municipal de São Luís, contando com vários parceiros locais e nacionais e com o apoio institucional da Academia Maranhense de Letras e de entidades ligadas à produção de livros no Brasil.
Como disse Jomar Moraes, em sua crônica da última quarta-feira aqui n’O Estado do Maranhão, ela não foi a primeira em ordem cronológica, porque outras já houve.Não há de se duvidar, todavia, de sua primazia, quando se consideram a qualidade e a dimensão de que se revestiu e o ambiente de entusiasmo que gerou, refletido nos comentários dos seus freqüentadores. Foram observações feitas por escritores famosos nacionalmente, como Moacyr Scliar, que me revelou sua agradável surpresa com a dimensão nacional e boa organização do encontro, por intelectuais maranhenses, por militantes da área cultural, por livreiros, mas também por freqüentadores anônimos, comuns, mas, nem por isso menos importantes, unânimes em elogios, num exemplo eloqüente de que nem sempre a unanimidade é burra, como não foi desta vez.
Acontecimento como esse não tem por fim a mera venda de livros, embora, evidentemente, a comercialização, ao colocar ao alcance das pessoas publicações que elas não teriam a oportunidade de conhecer sem a Feira, cumpra a importante função de ajudar na formação de novos leitores – especialmente entre os jovens alunos da rede municipal de ensino, que lá estiveram o tempo todo, em todos os horários –, formação fundamental no fortalecimento cultural de qualquer sociedade, e gere, ainda, a comercialização, incremento de renda para os agentes econômicos locais, objetivo econômico de que tanto se fala no discurso porém pouco se promove na prática.
Quem por qualquer contingência não pôde visitá-la, terá idéia aproximada dos outros objetivos e da amplitude das atividades ali desenvolvidas por uma simples listagem: seminários, palestras de escritores maranhenses e nacionais, oficinas, encontros, exposições, lançamentos de livros, atrações dirigidas ao público infantil, espetáculos teatrais, apresentações de grupos da cultura popular maranhense, espetáculos musicais populares, exibição de filmes, vídeos e performances poéticas, bem como diversas atividades que, embora fazendo parte da programação, foram realizadas em diferentes locais, como no Núcleo de Cultura Lingüística, na Praça Gonçalves Dias, e no auditório do Sesc, na avenida Silva Maia.
Foram discutidos temas – dou apenas pequena amostra – como políticas públicas do livro, técnicas de construção naval artesanal do Maranhão, o arquivo como espaço de leitura, a linguagem cinematográfica na escola, o fortalecimento e a democratização dos sistemas de bibliotecas públicas, arte sacra e a imaginária em São Luís, o Plano Nacional do Livro e a Leitura, e dezenas de outros ligados tanto à cultura popular quanto a cultura erudita.
A Feira mostra com perfeição as potencialidades e a riqueza da cultura maranhense e resulta da soma de felizes circunstâncias e do concurso de vontades de bem realizar. O prefeito Tadeu Palácio demonstrou sensibilidade para sua realização. E tanto que a instituiu por lei, tornando ilegal sua interrupção nos próximos anos por seus sucessores. A de 2008 já me parece certa.
Não estaria completa esta breve notícia se não fizesse menção ao presidente da Fundação Municipal de Cultura – Func, Edirson Veloso, por todos apontado como a alma do evento, ao lado de Lúcia Nascimento e Teresa Valois, coordenadoras gerais, competentes planejadoras e eficientes executoras da árdua, contudo recompensadora tarefa de fazer viver a Feira.

21 de outubro de 2007

Em Revista

Jornal O Estado do Maranhão
Acaba de vir a público compilação de artigos publicados entre 1916 e 1920 na Revista Maranhense: Artes, Ciências e Letras. A publicação de agora, da Editora Uema, da Universidade Estadual do Maranhão, tem como organizadores os professores Antonio José Silva Oliveira, Ilma Vieira dos Nascimento, José Augusto Silva Oliveira e Maria Eliana Alves Lima e, na orelha, conta com esclarecedor texto do nosso confrade da Academia Maranhense de Letras, Marialva Mont’Alverne Frota, autor, entre outras obras, de Sousândrade: o último périplo. Os textos de 1887, primeira fase da Revista, que teve três números, não foram localizados ainda, apesar dos esforços dos pesquisadores. Os divulgados agora são da segunda fase.
Em 1916, vivíamos no Brasil experiência política de criação recente, pois tinha então apenas 27 anos a República brasileira. Esta nasceu sob influência do Positivismo, doutrina de cunho sociológico, com sua visão de estágios evolutivos da humanidade (teológico, metafísico e positivo), que, por sua vez, era parte do cientificismo daqueles tempos, percepção sobre a realidade social, ligada à ascensão da civilização industrial, alicerçada na convicção de que os problemas enfrentados pelas sociedades humanas poderiam sempre ser resolvidos com o auxílio das ciências da natureza ou das sociais.
No Maranhão, em luta com acentuado declínio econômico desde o século anterior e a despeito do ambiente nacional de entusiasmo pela ciência e pela necessidade de sua divulgação, predominavam as manifestações culturais literárias, caracterizadas por um saudosismo romântico a respeito das glórias do passado, ao tempo em que aquilo que se convencionou chamar de pré-modernismo já anunciava o modernismo brasileiro, que, como reação sistemática às formas de arte já superadas nos centros culturais do sul do país, aqui chegou só no fim da década de 40, após a volta, de Portugal, de Bandeira Tribuzi e do surgimento de uma nova e talentosa geração que divulgou entre nós o modernismo nacional, já em sua segunda geração.
A Revista Maranhense: Artes, Ciências e Letras, apesar do nome, tinha sua produção de artigos, embora diversificada, quase totalmente voltada para Artes e Letras, (80% de seus títulos eram de gêneros literários), ficando os de caráter científico em segundo plano do ponto de vista numérico, sendo evidente, no entanto, a importância atribuída por seus colaboradores à educação do povo, e não apenas das elites. Isso não significa dizer que assuntos científicos, especialmente os relacionados ao imperativo de seu ensino, não fossem tratados naqueles 80%. Não é demais enfatizar a prioridade da Revista à educação da sociedade, àquela altura com percentagem altíssima de analfabetos entre seus membros. Ou seja, havia um discurso consistente sobre a relevância de se ter formação científica moderna, mas poucos artigos científicos de fato, o que não é de causar surpresa pois não se dispunha de instituições de pesquisa naquele momento.
Um desses textos, de José Augusto Corrêa, saiu em fevereiro de 1917, propunha acharem-se quantias proporcionais tal que a soma dos extremos das proporções fosse 9, a dos meios, 6, e a soma dos quadrados dos quatro termos, 85. De resolução extremamente simples, mesmo na época, indica o nível dos artigos da Revista classificados como científicos.
Depurada de alguns defeitos editoriais, o que poderá ser facilmente feito em segunda edição, a publicação cumprirá melhor seu propósito de colocar ao alcance do público material importante para a compreensão de alguns aspectos de nossa vida cultural no início do século XX, período importante para o estabelecimento de uma reflexão informada sobre algumas características da sociedade maranhense hoje.
Está de parabéns a Universidade Estadual.

14 de outubro de 2007

Vou estar...

Jornal O Estado do Maranhão

Andou bem o governador do Distrito Federal ao decretar a demissão do gerundismo. Aliás, ele deveria estar fazendo isso, ou melhor, ele deveria estar tentando adotar a medida há muito tempo para evitar estarem falando mal do governo, os críticos de sempre.
Se pareço estar usando o gerundismo, é porque de fato estou. A doença é altamente contagiosa e verbalmente transmissível. Por isso, precisamos estar sempre de olho na sua insidiosa mania de se infiltrar no discurso alheio. Daqui até o fim prometo me policiar, com o fim de evitar o contágio.
O decreto se refere, em verdade, não ao gerundismo, mas ao gerúndio. Levado ao pé da letra, estaria demitida com a canetada uma das formas nominais do verbo na língua portuguesa, tarefa impossível. A intenção do ato foi banir o uso abusivo e errado do gerúndio e evitar que o gerundismo em suas formas mais abusivas sirva como desculpa para a incompetência e burocratismo. Mas, não pretendia apenas isso, pois não se pode supor que o governador ignorasse ser impossível legislar sobre gramática, embora, na prática, muitos militantes do PT tenham demitido há séculos o plural, que eles parecem odiar. Tenho comigo ser evidente a ironia do governador. Ele quis colocar em evidência, penso eu, o fato de o uso, aparentemente inocente, de modismos lingüísticos, servir ao fim de encobrir o descaso com a coisa pública e a inépcia estatal.
Assim como há leituras literais da Bíblia, há leituras literais de decretos, como a daquele professor de português que disse que o assunto deveria ser deixado por conta da Academia Brasileira de Letras. Por sinal, em momentos polêmicos surgem na televisão, não se sabe vindos de onde, especialistas em qualquer coisa, peritos em obviedades, se atentarmos bem.
“Fica proibido o uso do gerúndio para desculpa de ineficiência”, diz um artigo do decreto. Isso evitaria diálogos deste tipo: “Como estão as obras em Taguatinga?”, poderia perguntar o chefe do governo do Distrito Federal a um de seus secretários de Estado. Poderia ouvir como resposta isto: “Vou estar providenciando um relatório imediatamente. Os técnicos vão estar produzindo um paper (esta palavra deveria ser demitida também), em menos de uma semana, governador”.
Vou estar traduzindo... Peço desculpas pelo escorregão, eu quis dizer, tão-só, dou a tradução: “Não providenciei a tempo a droga do relatório e agora vou ter de botar aqueles incompetentes pra inventar qualquer coisa, depois a gente faz um ajuste no fim da obra. O diabo é que justamente pela incompetência deles não sei quando isso vai estar ficando pronto. Governadores não deveriam sair de seus gabinetes e estar metendo o bedelho em obras públicas”.
Parece que os portugueses tiveram percepção mais aprofundada da equivocada polêmica com respeito à intenção do governador. Vejamos, na grafia portuguesa: “O decreto em que um governador brasileiro ‘demite’ o gerúndio é ‘irónico’, para além de não se poderem ‘demitir ideias, objectos ou conceitos’, salientam duas investigadoras do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa”, segundo resumo do jornal Expresso, de Lisboa.
Proponho um remédio contra a renitente praga do gerundismo. Em vez de se usar o gerúndio como no Brasil, verbo auxiliar+gerúndio, de uso bastante antigo na língua, por que não se adota a forma de Portugal, verbo auxiliar+preposição ‘a’+infinitivo, de uso muito mais moderno? Diríamos, então, estou a fazer, em lugar de estou fazendo. O diabo é que, como o vírus da doença é resistente e refratário a vacinas, alguém poderia estar querendo inovar (olha aí outro escorregão): Vou estar a estar fazendo... Sei lá, algo assim, bastante inovador, original.
É, vou ter de estar pensando numa solução melhor.

7 de outubro de 2007

Um irmão

Jornal O Estado do Maranhão

O prédio fica na rua do Sol na esquina com a de Santaninha, onde hoje funciona um estaciona-mento para automóveis. Lá, sede do Banco de Desenvolvimento do Maranhão, nós, técnicos e funcionários, recebemos em 1970 ou 1969, não estou bem certo, a notícia da contratação de Bandeira Tribuzi para o órgão, não propriamente um banco, apesar do nome, mas uma agência de desenvolvimento semelhante a muitas criadas nos Estados a partir do final dos anos 60, que marcaram o início da euforia de acelerado crescimento econômico da presidência militar do general Medici.

Éramos muito jovens e víamos os governos como capazes de, por simples “vontade política”, num voluntarismo que a nós parece tolo hoje, transformar sem demora e mesmo revolucionar arranjos sócio-econômicos injustos de nossa sociedade e superar assim interesses políticos poderosos estabele-cidos há séculos no Estado. Em suma, achávamos fácil quebrar velhas estruturas e criar um novo mundo.
A essência desse idealismo juvenil permaneceu em nós. Não nos tornamos cínicos, por medo de sermos etiquetados como ingênuos, nem passamos a achar que nada muda e apenas a lógica do capital conta, embora ela conte muito. Antes, aprendemos não depender a luta por mudanças apenas do querer e percebemos ter a realidade do poder a capacidade de impor uma lógica conflitante com a justiça social em muitas circunstâncias da vida social.
Houve grande e genuína agitação no Banco: Tribuzi vai chegar! Para meus 22 anos de então, sendo eu ainda aluno da antiga Faculdade de Economia, a convivência com aquele homem reverenciado como um dos grandes nomes da poesia e da cultura maranhense, com uma história de perseguido político preso e demitido de seu emprego pelos militares, por causa de suas idéias libertá-rias e agudo senso de justiça social, sua família submetida a dificuldades em razão de sua recusa em renegar princípios, tudo isso era de admirar e inibir ao mesmo tempo. Mas, o que eu tinha em mente era tão-só a imagem do homem, não o próprio homem. Com este vim a estabelecer grande amizade que se prolonga até hoje nas periódicas conversas que tenho com Maria, sua viúva.
Essa proximidade com o ser humano Tribuzi, com a pessoa comum no sentido de ser como um de nós no dia-a-dia, com dores e alegrias, sentimentos e paixões, como pelo futebol, em especial pelo Moto Clube, zangado-se quando, ao fazermos o bolão da Loteria Esportiva, na época grande novidade, prevíamos a derrota desse time, a proximidade, eu dizia, criou as condições para a influência intelectual que ele viria a ter sobre a maioria de nós.
Em nossas conversas nos intervalos da elaboração de projetos, programas e planos, inclusive de planos estaduais de desenvolvimento de dois governos, fomos – pelo menos esse foi o meu caso – aos poucos moderando o ímpeto das críticas a tudo e a todos. Devagar ele foi nos mostrando os limites do voluntarismo e abrindo-nos os olhos para a necessidade de termos os pés firmes no chão sem abrir mão de valores morais.
Quando, em 1977, desejando fazer mestrado e doutorado em economia nos Estados Unidos, me candidatei a socorro financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, que tinha como dirigente da área de concessão de bolsas o hoje deputado federal Gastão Vieira, foi Tribuzi quem me orientou na elaboração de documento justificativo do pedido. Eu, por sugestão dele, pretendia estudar as implicações sócio-econômicas da implantação de uma grande siderúrgica em São Luís, projeto de que se falava já naquela época, há trinta anos. Trinta anos, e bem antes já se discutia com esperança e emoção o assunto!
Guardo com muito carinho um exemplar do seu último livro, Breve memorial do longo tempo, com a seguinte dedicatória: “A Lino, que é irmão”.

30 de setembro de 2007

"Memória da advocacia no Maranhão"

Jornal O Estado do Maranhão 30/9/2007

Milson Coutinho deu a público poucas semanas atrás valioso produto de sua invulgar capacidade de trabalho. Falo de Memória da advocacia no Maranhão, mais um volume de sua já vasta bibliografia, lançado em solenidade comemorativa dos 75 anos de criação da OAB-MA.
A obra cobre os anos que vão do princípio do século XVII – por ocasião das primeiras medidas de implantação do Estado Colonial do Maranhão, quando, nas palavras do autor, “com a instalação da Câmara Municipal e a eleição de dois Juízes Ordinários, ou da Terra, começam a surgir pleitos na esfera judiciária, as chamadas pequenas causas, resolvidas pelos Oficiais da Câmara” –, até 1950.
Na visão de conjunto que Milson oferece aos leitores, junto com dados biográficos de renomados advogados desse longo período, podemos discernir um processo de mudança positiva no sistema legal, que viria se completar, apesar do golpe de 1964, no intervalo entre 1950 e a promulgação da Constituição de 1988, a ser estudado por ele em próximo volume a ser publicado em 2008.

Podemos tomar dois episódios como exemplos das mudanças ocorridas na prática da advocacia nesses séculos, a fim de bem avaliar a distância, não em termos de anos, mas de diferenças institucionais, que nos separa das concepções e práticas legais daqueles tempos antigos.
Um deles está no comportamento de João Mendes de Aragão, primeiro homem de leis com formação superior, neste caso pela Universidade de Coimbra, a ter banca no Maranhão, que até então contava tão só com provisionados. Ele fora juiz togado no Grão Pará, tendo aqui chegado em 1714. Aragão tinha sido, naquela universidade, contemporâneo de Vicente Leite Ripado, que aqui era ouvidor-geral, representante da justiça real e máxima autoridade judicial nos territórios ultramarinos de Portugal. O advogado foi residir na casa do ouvidor. Milson localizou no Catálogo dos manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, o documento número 1.159, que entre outras coisas, diz, em denúncia a Lisboa pelos Oficiais da Câmara e diversos moradores de São Luís, em 1716, o seguinte: “Que o dito João Mendes sendo assim como assessor, é, em tudo, diretor das obras do dito ouvidor, sentenciando [o ouvidor] sempre em favor das partes por quem [Aragão] advoga”.
Não vou ao ponto de afirmar a inexistência de cabalas entre juízes e advogados nos dias correntes. Mas, quando elas ocorrem, caracterizam apenas um repugnante desvio da norma, que, apesar de todas as deficiências de nosso ordenamento legal, é tratado de acordo com os ditames dos códigos de leis e processos, embora muitas vezes com irritante lentidão.
Outro exemplo. Os jesuítas opunham-se à Companhia Geral do Maranhão e Grão-Pará. Um deles, padre Bellester, chegou a dizer: “Quem entrar nesta Companhia de Comércio não entrará na de Cristo, nosso Redentor”. O vice-provincial no Maranhão, padre Bento da Fonseca, contratou o bacharel João Tomás Negreiros para representar contra a Companhia na Mesa do Bem Comum, em Lisboa. A representação foi rejeitada e Negreiros, simples autor da petição em nome de seus clientes, foi mandado preso por Pombal para a África por causa da demanda. De lá, solicitou ao rei transferência para Portugal, sendo atendido. Por uma espécie de injustiça divina acrescentada à injustiça terrestre, ele morreu na prisão, destruída pelo grande terremoto de Lisboa em 1755.
O conhecimento de episódios como os deste livro, bom fruto de aprofundadas pesquisas em fontes primárias, como costuma fazer o autor, nos permite avaliar o quanto já se caminhou, não apenas, ou não somente, com relação ao exercício da profissão de advogado, mas, em especial, na administração da justiça, fundamento do Estado democrático de direito.

16 de setembro de 2007

Tempos e costumes

Jornal O Estado do Maranhão 16/9/2007
A propósito de acontecimentos recentes da vida política nacional, há dias reli a famosa crônica de Machado de Assis, O Velho Senado, peça de evocação do Senado do Império em 1860, quando ele era um jovem repórter, “adolescente espantado e curioso”, de 21 anos, do Diário do Rio de Janeiro, jornal dirigido por Saldanha Marinho. Entre seus colegas jornalistas naquela Casa, estavam Bernardo Guimarães, então repórter do Jornal do Comércio, autor do famoso romance A escrava Isaura, e Pedro Luís, do Correio Mercantil, da mesma idade do romancista de Dom Casmurro, e que viria a ser o patrono da cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras, um dos precursores do condoreirismo poético e ministro dos Negócios Estrangeiros, bem como dos Negócios da Agricultura, tendo contado, nesta última função, com a colaboração de Machado, funcionário do ministério.
A fim de se ter idéia de como era o Senado, basta reparar nestas observações da crônica: “Esta minudências, [são] agradáveis de escrever [...] Achava-lhes [nos senadores] uma feição particular, metade militante, metade triunfante, um pouco de homens, outro tanto de instituição. [...] Dissentiam sempre, mas é próprio das famílias numerosas brigarem, fazerem as pazes e tornarem a brigar; parece até que é a melhor prova de estarem dentro da humanidade. [...] Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante. [...] mui excepcionalmente, eram admitidos ouvintes no próprio salão do Senado [...] porém os expectadores não intervinham com aplausos nas discussões. A presidência de Abaeté redobrou a disciplina do regimento, porventura menos apertada no tempo da presidência de Cavalcanti”.
Passa então Machado a descrever as imagens de grandes nomes do Senado, que lhe ficaram na memória, como Eusébio de Queiroz, “justamente respeitado dos seus e dos contrários”; Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco, que lhe escreveu a biografia que é também um amplo retrato do Segundo Império, “orador para debates solenes”; marquês de Olinda, “lúcido e completo”; Paranhos, “uma das mais fundas impressões que me deixou a eloqüência parlamentar”.
Fica-se com a impressão, descontada a possível e até provável idealização do passado, que os homens daquele tempo, com todos os vícios e virtudes próprios do ser humanos e com tudo de ruim que pudesse haver numa formação social inteiramente destorcida pelo escravismo, criador nas classes dirigentes do sentimento de estar acima das leis, e pudesse prosperar numa política feita com e para as elites econômico-sociais, não traziam, esses homens, seus vícios privados à arena pública, não os confundiam com o interesse público, ou pelo menos procuravam manter as aparências, o decoro externo e extremo, a impressão de seguirem as regras. Não eram santos nem diabos, apenas homens em quem as virtudes públicas prevaleciam sobre os vícios e que mantinham a liturgia do poder. Sua moral não estava tão distante daquela dos representados.
Mas os tempos e os costumes mudam, estes para pior, se a transgressão da lei e da moral não é punida e é, até, vista com certo entusiasmo, como sinal de firmeza e certa esperteza avaliada como admirável.
A absolvição pelo plenário da Casa do presidente do Senado Renan Calheiros é simbólica dessa visão. Contudo, a realpolitik (“política baseada em fatores práticos e materiais em vez de objetivos teóricos ou éticos”, segundo definição do Merriam-Webster Dictionary), não pode ser o único fator a determinar nossa vida política. Princípios deveriam contar, perdoem-me a ingenuidade.
Pode ser que as vestimentas, como a do porteiro do Senado, na visão que Machado teve, sigam “as praxes do tempo”, e por isso envelheçam ou se troquem ou se desmanchem por si mesmas. Mas há mandamentos perpétuos, não mandatos.

9 de setembro de 2007

Os mortos ausentes

Jornal O Estado do Maranhão 
Acabo de saber da morte de Luciano Pavarotti, um dos cantores líricos mais populares do século XX, grande intérprete de Donizetti, Puccini e Verdi. Sua popularidade mundial decorreu em parte de suas apresentações na Copa do Mundo da Itália em 1990, quando cantou o hino oficial da competição, a bela ária Nessun Dorma, da ópera inacabada Turandot, composta por Puccini, com libreto escrito por Giuseppe Adami e Renato Simoni com base na obra teatral homônima de Carlo Gozzi.
Seus últimos momentos, ele os passou em casa. Acometido de um câncer de pâncreas tinha consciência da proximidade da morte e preferiu terminar seus dias e partir ao encontro do “nada definitivo” de Epicuro, que não há de ser temido, em seu próprio lugar, consolado não pelo “desconsolo do Eclesiastes”, como dizia o viúvo Machado de Assis, mas pela presença dos que lhe eram caros e o amavam e o amaram até o fim, e pela certeza de ter vencido a eterna guerra da busca pela felicidade.
Esse morrer em casa, em cama familiar, pouco vemos no mundo urbano moderno. Hoje morremos em hospitais, sozinhos, em ambientes desconhecidos, deprimentes, frios e indiferentes, sem nada de nosso, sem um sorriso amigo, embora triste, sem uma lágrima a rolar nos rostos em volta e no nosso, em verdade sem mesmo um rosto em que lágrimas possam rolar, sem uma única mão para apertar, longe de um protetor, longe de nossos familiares, longe dos seres amados, longe de nossas lembranças, longe de nossos arrependimentos, longe de nossos erros e acertos, longe de tudo, longe de nós mesmos, pois é reflexo condicionado sedar pacientes de UTI por qualquer coisa e por nada, entupi-los de tubos infectados pelo descontrole da infecção hospitalar, matá-los antes de morrerem, quando lhes tiramos a consciência, tornando-os reféns de desconhecidos atarefados e apressados demais, e interessados de menos em olhá-los com interesse humano. Ninguém mais tem a oportunidade se despedir da vida nem nos é oferecida uma última escolha. A morte foi exilada na região hostil constituída pelos hospitais. Tornou-se um inconveniente que não deve nos desviar um minuto da imperiosa necessidade de ganhar dinheiro e manter o status social, é acontecimento cuja proximidade deve ser evitada ou que tem de ser rapidamente afastado da mente consciente, logo após o velório, este também banido das residências, como se não se pudesse morrer onde se vive ou não houvesse morte de fato, de tal forma que as novas gerações crescem sem nunca presenciá-la, sem quase poder expressar sua dor pela perda ou olhar a face do morto. Os mortos estão ausentes.
Quando não era ainda assim, lembro de ter tido contato com a grande desconhecida muito cedo, em 1956, contando eu não mais de 8 anos de idade. Durante os distúrbios políticos decorrentes da eleição José de Matos Carvalho – pessoa de extrema simpatia e gentileza que vim a conhecer muitos anos mais tarde em Brasília – para governador do Estado, Orestes Lima Pereira, casado com uma prima de minha mãe, atingido por um tiro de fuzil, por ter inadvertidamente entrado em zona de confronto entre forças legalistas e tropas policiais rebeladas, morreu nas imediações do Palácio dos Leões, naquela hora ameaçado de invasão. O velório foi realizado em sua casa na rua da Cruz, creio. Pois ali, vendo o corpo inerte de um pai de família que deixava a viúva com uma dezena de filhos na orfandade – aspecto do drama sempre presente em minha lembrança desde então, com as ressonâncias de tragédia grega do nome do morto – a idéia abstrata da morte de repente se fez real, concreta. Pude então intuir, sob o impacto da impressão angustiante do momento, o motivo de tanta tristeza dos parentes e amigos, o significado de morrer e o de dizer-se nunca mais, nunca mais...

2 de setembro de 2007

Os quarenta

Jornal O Estado do Maranhão
O Supremo Tribunal Federal – STF, com a decisão de aceitar denúncia pelo Ministério Público Federal de dezenas de mensaleiros de partidos da base de apoio ao governo em Brasília, acaba de tornar mais evidente ainda, como se já não o fosse bastante, antiga e pertinaz conspiração das elites brancas e más contra o povo e seus dignos e até indignos representantes, estes por descuido. Só pode ser essa a explicação para a aceitação unânime pelos membros do STF, depois de cinco dias e 32 horas de sessão, da maioria dos itens individualizados da peça denunciatória (não sei se essa palavra pertence ao campo do empolado jargão dos chamados operadores do direito, mas, vá lá, assim seja, permaneça a palavra denunciatória) do procurador-geral da República, baseada em esforço de análise que lhe tomou muitos meses de trabalho.
Os bem remunerados advogados da turma disseram não haver provas na denúncia contra seus clientes (clientes no bom sentido, é claro), a ponto de torná-la inepta (sem os requisitos legais, contraditória, obscura, em conflito com a letra da lei, segundo o Aurélio, dicionário a que se tem de recorrer com freqüência, junto com os de latim, quando a lei e a justiça são temas de debate), embora não pensem assim os juízes. Ao contrário, vislumbraram a existência de fortes indícios de malfeitos, que lembram em alguns pontos a inepta Operação Uruguai da época do processo de impeachment de Fernando Collor, expulso do cargo de presidente, mas hoje senador pela vontade do sábio povo de seu Estado, Alagoas, o mesmo do preguento, resistente, renitente e indiferente presidente do Senado, Renan Calheiros, sujeito hábil em quebrar galhos, como seguro para futuros problemas dele com as generosas leis pátrias.
Mas, eles, os causídicos ou defensores de causas nobres, ou não, jamais disseram que não havia crime, apenas afirmaram a ausência de provas provadas, como por exemplo, recibos em que o acusado declarasse o recebimento de tais e tais quantias a título de mensalão para apoiar os projetos do governo na Câmara dos Deputados; ou afirmasse o envio de dinheiro de forma ilegal a paraísos fiscais em algum país-ilha de mares muitas vezes navegados, tudo com firma reconhecida em cartório de fé.
Objetará uma bem intencionada e imparcial observadora da cena política nacional com a impossibilidade da existência de conspiração das elites brancas e más porque justamente o relator da denúncia é um negro, ministro Joaquim Barbosa, doutor pela Universidade de Paris II, professor no Instituto de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da conceituada Universidade de Columbia, uma das dez melhores dos Estados Unidos, ex-oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores, tendo serviço em Helsinki, na Finlândia, país de gente branca. Ele, observe-se, manteve a elegância durante o tempo todo das sessões, embora com problema de saúde típico das elites, dores na coluna, segundo informações da imprensa, instituição que também conspira sem descanso contra os interesses populares, o que bem dá respaldo a velho e querido projeto do PT de regulamentação do exercício da profissão de jornalista com o fim de “coibir excessos”, como os praticados a toda hora por aí, sempre em prejuízo dos homens do governo, pobres vítimas. Mas, como se vê da amostra do currículo do ministro-relator ele foi cooptado pela conspiradora elite branca e má brasileira, passando a fazer parte da trama antipopular e antinacional, à qual atraiu seus companheiros do STF.
No fim, porém, fica-se com a desagradável sensação de que algo faltou no julgamento dos companheiros de mensalão do PT e dos partidos coniventes. Se existem rastros da existência de quarenta ladrões, onde estará o facinoroso Ali Babá desses tão fabulosos acontecimentos?

26 de agosto de 2007

A reforma ortográfica

Jornal O Estado do Maranhão
Estamos próximos da entrada em vigor de uma reforma ortográfica, inicialmente no Brasil, São Tomé e Príncipe, e Cabo Verde e depois em Portugal e nos outros países lusófonos, signatários, como esses três, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Os objetivos do Acordo são de reduzir os custos de produção e tradução de livros, facilitar a difusão bibliográfica e melhorar o intercâmbio cultural entre os países de fala portuguesa, que têm em conjunto população de 240 milhões. Para isso, eles concordaram em alterar a maneira de grafar algumas palavras. As mudanças atingirão percentagem muito pequena da língua escrita em cada um deles, de tal forma a se poder chegar a bem-vinda simplificação e a padronização próxima de 100%.
O leitor terá idéia de como os lusófonos andaram até aqui em dissintonia com as nações com herança lingüística comum sabendo disto. O espanhol, falado por cerca de 450 milhões de pessoas em 19 países, tem apenas uma ortografia oficial. Acontece algo semelhante com o árabe em outros 21 países com 250 milhões de habitantes. Ele é escrito numa sistema moderno unificado, em todos os países onde é falado e, na leitura do Corão, até mesmo nos não-árabes.
Há custos associados à mudança, é evidente, além de resistências culturais, como houve em reformas anteriores. Numa delas, a de 1910, nos livramos da palavra farmácia com ph, e de assemelhadas. Mas, não se diga que custos são a mesma coisa que desvantagens, sem consideração dos benefícios decorrentes da alteração.
Pensemos na produção de livros. Feitos no Brasil ou em Portugal, atingirão público maior do que aquele que alcançariam com grafias divergentes entre os dois países, sem provocar rejeição à forma escrita da língua, após um período de adaptação. Haverá redução de custos pelo aumento da escala de produção para atender a esse mercado ampliado, como ocorre com os livros impressos na Espanha. Exemplos são as recentes edições de Cien años de soledad, de García Marquez, e do Dom Quijote de la Mancha, feitas pela Real Academia Española e Asociación de Academia de la Lengua Española em conjunto, que circulam na Espanha e na América do Sul sem barreiras ortográficas. Tal iniciativa seria impossível entre os países lusófonos. Imaginemos também outros custos associados à duplicidade nos documentos internacionais oficiais em português escrito do Brasil e de Portugal, em sítios na internet, programas de computador, etc.
Amostras das mudanças. 1) O hífen não será usado quando o segundo elemento começar com s ou r, sendo essas consoantes dobradas; em vez de anti-religioso, “antirreligioso”, contudo permanecerá como exceção quando o prefixo terminar com r; 2) Não será mais utilizado o acento diferencial, suprimindo-se as poucas exceções (como em pôde) á regra geral que quase os aboliu na reforma de 1971; 3) O trema será eliminado de todo; 4) O acento circunflexo deixa de ser usado em flexões verbais como crêem, que passa a “creem”, ou em palavras terminadas em hiato como vôo, a ser escrito voo; 5) Não se usará mais o acento no ditongos abertos “ei” e “oi”, como em idéia, cuja grafia será “ideia”; no i e u tônicos precedidos de ditongos, como em feiúra (fica feiura); e nas formas verbais como averigúe, a ser escrito “averigue”; 6) Em Portugal, serão eliminados o c e o p mudos: acto passará a “ato”.
Não há data para entrada em vigor do Acordo, mas o MEC já prepara licitação com o fim de comprar livros didáticos com textos elaborados sob as novas regras, a serem usados em 2009, e escolas particulares estão atualizando suas apostilas. A editora Sextante irá incorporar a nova ortografia a seus livros assim que forem lançados ou reimpressos.
A reforma é boa e em pouco tempo irá beneficiar os usuários da língua em todo o mundo.

19 de agosto de 2007

As agências e "a gente"

Jornal O Estado do Maranhão
O presente caos brasileiro, explícito depois do desastre do Airbus da TAM que matou quase 200 pessoas e mostrou completa falta de coordenação entre órgãos encarregados do setor aéreo brasileiro, trouxe a debate público o papel das agências reguladoras no Brasil. O governo, depois de desvirtuá-las, enchendo-as de companheiros ansiosos por mostrar seus conhecimentos especializados em capturar bons empregos públicos e que, no caso da de Aviação Civil, Anac, de vôo de avião entendem tanto quanto eu do idioma mandarim, quer agora politizá-las, atribuindo ao Executivo o poder de demitir seus diretores. Querem matá-las, jogando fora juntos o bebê e a água do banho.
Preservadas de politicagem nos países desenvolvidos, elas desempenham, livres de interferências perniciosas dos governos, papel importante na economia. Seus diretores, aprovados pelo Legislativo, têm mandatos fixos, não coincidentes como o do presidente da República, que não os pode demitir, e trabalham com a independência necessária a entidades reguladoras e fiscalizadoras de mercados. Só assim têm a possibilidade de fazer estes funcionarem de maneira adequada, dadas suas características estruturais.
Nossa aviação não-regional possui apenas duas empresas, a TAM e a Gol. Constitui, por conseguinte, mercado duopolista. No entanto, a Anac, corrompida pelo lulo-petismo, foi transformada em órgão de afago das companhias e não, como deveria por imposição legal, de regulação e fiscalização. Tem entre seus dirigentes pessoas ligadas às duas e muito contribuiu para o desastre do aeroporto de Congonhas. Hoje, seis das dez agências são presididas por filiados ao PT ou ao PC do B, partidos da base aliada do governo. Outros nove diretores são ou foram filiados a outros partidos.
De outra parte, por contingenciamento de recursos de um monte de outros órgãos que batem cabeça na área, investimentos indispensáveis não foram feitos nas pistas dos aeroportos e na modernização dos obsoletos sistemas de controle de tráfego. Nas estações de passageiros, sim.
Decorre de compreensão distorcida ou até de completo desconhecimento dos mecanismos da economia de mercado grande parte da inércia oficial. Assim como há um marxismo vulgar, existe um liberalismo vulgar e apressado, seguido pelos companheiros do PT no governo, a cujas virtudes capitalistas selvagens, aderiram com alegria a toque de caixa registradora. Recém-convertidos, parecem acreditar que as regras do mercado são licenças para lutas hobbesianas, vale-tudo morais na arena econômica.
Não se deve colocar dúvidas sobre a busca do auto-interesse no jogo do mercado, dentro da lei, como responsável pela criação da riqueza das nações. No entanto, não basta isso. A ética é fator de produção tão importante quanto qualquer outro porque a qualidade dos jogadores, isto é, sua aderência ou não a princípios éticos, afeta as próprias regras do jogo econômico. Jogadores ruins produzirão regras ruins, deteriorando o desempenho da economia. Isto acontece aqui, a começar pelo nosso pernicioso jeitinho. O combate à corrupção florescente na ausência desses princípios, é, portanto, não apenas uma questão de moralismo pequeno-burguês, mas um requisito essencial à prosperidade nacional.
A tentativa de enfraquecimento das agências reguladoras tem origem em correntes petistas opostas: uma, oficialista, acredita no capitalismo aético, sem freios e, em especial, sem órgãos de regulação e fiscalização autônomos, isentos de pressões políticas ilegítimas; outra, formada de opositores de dentro do próprio PT, incensa o estatismo desvairado e corrupto. A depender do atraso cultural delas, a prosperidade nacional estará longe do Brasil por muito tempo ainda.
No linguajar companheiro: “a gente” precisa das agências.

5 de agosto de 2007

Um livro de Sálvio Dino

Jornal O Estado do Maranhão
Nas notas para o que seria uma segunda edição do Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão, de César Marques, Antônio Lopes se refere muitas vezes a O sertão: subsídios para a história e a geografia do Brasil, como sendo de Parsondas de Carvalho, alusão que surpreenderá os leitores familiarizados com esse livro, pois é a irmã dele, Carlota Carvalho, nas duas edições, a primeira, de 1924, e a segunda, de 2000, quem nela é apresentada como autora. Lopes cometeu simples engano ou teria outras razões para atribuir a autoria ao irmão de Carlota? A resposta a essas perguntas é uma das tarefas a que se propõe Sálvio Dino, da Academia Maranhense de Letras, no seu Parsondas de Carvalho: um novo olhar sobre O sertão, com prefácio de Milson Coutinho, também da AML, obra dada a público no dia 28 de julho, em Montes Altos, onde Parsondas foi enterrado há 81 anos.
O objetivo central de Sálvio, no entanto, não é esclarecer dúvidas de décadas sobre quem de fato escreveu O sertão , que tem valor informativo e analítico e serve como representativo (outro é A Balaiada, de Astolfo Serra) da forte influência entre nós do pensamento positivista dominante no decorrer das primeiras décadas da República e que tem em Euclides da Cunha o representante mais conhecido no campo literário, com Os Sertões, cujos ecos se percebem até na semelhança dos títulos.
Sálvio pretende, antes, tornar de carne e osso seu biografado, retirando-o, por assim dizer, por breves momentos, do campo da mitologia sertaneja, em que ele aparece com dimensões quase sobre-humanas, homem de ação, trabalhador e corajoso, mas de cultura cosmopolita, espirituoso militante das letras reconhecido “lá fora”, enfim, retirando-o do imaginário popular a fim de projetá-lo, com o realismo possível de ser fornecido pela pesquisa histórica, à condição de ser humano com defeitos e virtudes.
Tendo essa intenção do autor em mente, podemos bem avaliar as informações, resultantes de exaustivas pesquisas em fontes documentais e orais, sobre a vida de Parsondas: o nascimento em Riachão, a infância e juventude, a morte, passando pela viagem a cavalo ao Rio de Janeiro, com o fim de denunciar os desmandos do governo do estado, e o processo a que teve de responder por suposto desacato a autoridades, que de qualquer modo eram reconhecidamente arbitrárias e corruptas.
Valiosa contribuição ao entendimento de nossa história nos dá, ainda, Sálvio, ao anexar a seu trabalho a “Guerra do Leda”, título com que passaram a ser conhecidos os artigos publicados por Parsondas, em A Pacotilha, de São Luís, entre janeiro de 1902 e fevereiro de 1903, conjunto a que ele então chamou “O Grajaú: últimos acontecimentos do Estado do Maranhão no século XIX”, vivo retrato da violência política do início do século XX no sertão maranhense, e que mostra os sofrimentos inimagináveis padecidos pelo povo e lideranças oposicionistas durante o governo de Benedito Leite.
Mas, quem afinal escreveu O Sertão? Parece-me correta a atribuição da autoria a Parsondas, sendo o cotejo estilístico de outros escritos dele com este evidência bastante convincente. Mostra-nos Sálvio também a presença no texto de enganos quanto ao gênero de quem o escreveu, reveladores, em diversos trechos, de um autor masculino, não feminino, e observa a impossibilidade, digamos cultural, de Carlota o ter escrito. A motivação do verdadeiro autor, ao dar o crédito da obra à irmã, estaria em relação incestuosa entre eles, de mais difícil comprovação, embora haja relatos disso na tradição oral da região.
Sálvio Dino, num estilo saboroso de legítimo sertanejo, escritor amadurecido, seguro de seu ofício, como já demonstrou outras vezes, acaba de adicionar contribuição relevante aos estudos sul-maranhenses.

15 de julho de 2007

Lucy (dez)

Jornal O Estado do Maranhão
E para onde vão esses pés, essa fronte,
livres do óleo que fervia nas tardes?
Eles vão para tudo.
Lucy Teixeira
Elegia Fundamental
Ela possuía a lucidez e a lucidez possui o seu nome: Luci. Lucy Teixeira, a quem conheci em 1998 e com quem, apesar da diferença de idade, fiz uma grande amizade. Lucidez que a acompanhou até o instante de começar a padecer, sem nenhuma necessidade e a despeito dos esforços para protegê-la da amiga que lhe assistia em todos os momentos.
Poetisa, romancista, contista, cronista, crítica literária, ensaísta, teatróloga, artista plástica, agitadora cultural, Lucy marcou a cultura maranhense do século XX como uma de suas figuras mais significativas. Se a sua produção não é conhecida como deveria em nosso país, a razão está unicamente em ter ela morado muitos anos na Europa, a serviço do Ministério das Relações Exteriores.
Conviveu, em Minas Gerais, com grandes nomes da literatura nacional, companheira de estatura intelectual igual à deles: Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, Murilo Mendes, Paulo Mendes Campos e o extraordinário contista Murilo Rubião. Na Itália, conheceu Italo Calvino e o poeta Giuseppe Ungaretti, professor entre 1937 e 1942 de Língua e Literatura Italiana na USP. Em São Luís, junto com Ferreira Gular, organizou o Congresso Súbito de Poesia, origem do Grupo Ilha que teve entre seus participantes Bandeira Tribuzzi e José Sarney.
Andou pelo mundo, mas retornou ao Maranhão, atraída pelo chão amado para, definitivamente, nele ficar e fincar sua luz. Quantas vezes, em momentos de desânimo com o provincianismo local, arrependido de ter retornado ao Maranhão, eu ouvi dela, tão experiente em viver no estrangeiro, a observação de nada ser melhor do que estar na própria terra. Nesta, acrescento, se é estrangeiro tão só pela inarredável condição da incomunicabilidade humana. É muito peso, isso. Estar longe das raízes, porém, seria muito mais pesado.
Lucy pertence à linhagem de escritores como Machado de Assis, Murilo Rubião (em alguns dos contos dela, sentimos ecos do mineiro, num tom mais doce e menos angustiado), Franz Kafka, Virginia Woolf e Clarice Lispector. Sua prosa é surpreendente, exata, inovadora, poética, possui certo modo de se apropriar do inverossímil, lembrando um pouco a narrativa kafkiana, e tem grande originalidade e dicção única. Sua leitura acaba por delinear sutilmente, pelo gradual abrandamento do estranhamento inicial, as grandes questões sobre o sentido da vida, as únicas de fato importantes. É moderna no sentido de ter a emoção sob controle, de não se render ao sentimentalismo fácil, à breguice pseudo-lírica, como, aliás, ela vinha pregando desde a juventude. É grande injustiça, derivada de percepção equivocada de sua obra, referir-se a Lucy como expoente da literatura feminina, como tenho ouvido, pois, embora trate da condição da mulher em nossa sociedade (ver Um destino provisório), sua universalidade dispensa tal classificação, que a limita. Demitamos a feminina.
Orgulho-me de ser o único acadêmico recepcionado por ela na Academia Maranhense de Letras e devo-lhe, como já assinalei em outra ocasião, o ter me aventurado no duro ofício de escrever. Durante o preparo para publicação dos originais do seu livro de contos, No tempo dos alamares & outros sortilégios, tarefa de que me encarregou, a mim e à professora Marisa Moreira, como revisora, dizia que eu poderia e deveria escrever, quase me obrigando à árdua, contudo gratificante, empreitada. Na hora de publicar as primeiras crônicas, eu as submetia a sua crítica certeira e benéfica. Depois, iria me cobrar com freqüência a escritura de contos.

8 de julho de 2007

Domingo no cinema

Jornal O Estado do Maranhão
Leio crônica do professor Alan Kardec, da Universidade Federal do Maranhão, sobre os antigos cinemas de Grajaú, sua terra natal. Ele, ao perceber ali a presença dominante de filmes americanos, propôs uma reflexão acerca da forma de absorção da cultura estrangeira no Brasil, em especial a dos Estados Unidos, país que, devemos observar, respaldado em gigantesco poderio econômico, leva a todo lugar sua cultura, em seus aspectos ruins e nos bons, como nos casos dos avanços científico-tecnológicos e do jazz, seja o tradicional ou de raiz, seja aquele que “representa um som universal de diferentes tribos”, no dizer do paulista-maranhense Augusto Pellegrini, no seu Jazz: da raízes ao pós-bop.
Daquela cidade é também um velho e querido amigo, Sálvio Dino, meu companheiro na Secretaria da Fazenda do Estado no governo Pedro Neiva de Santana, entre 1971 e 1975, quando o secretário da pasta era Jayme Santana, antes meu colega na antiga Faculdade de Economia do Maranhão. Sálvio, hoje meu confrade na Academia Maranhense de Letras, está com um livro a ponto de impressão, Parsondas de Carvalho: um novo olhar sobre o sertão, sobre o qual farei comentários em breve. Quando trabalhamos naquele órgão eu era um economista recém-formado e acreditava ser fácil mudar o mundo para melhor. Muito mais freqüentes, descobri depois, eram as repetidas e variadas tentativas de muita gente de torná-lo pior, muitas vezes com sucesso.
O professor me fez lembrar minha própria época de garoto no antigo primário. Íamos ao cinema, num tempo sem brinquedos eletrônicos e televisão, embora desde o início dos anos 50 o sul do Brasil já contasse com algumas emissoras, naturalmente em preto e branco e sem transmissões nacionais – íamos, eu e meus irmãos, ao cinema, eu dizia, somente após termos feito, durante a semana, as lições de casa do Colégio Santa Terezinha, das irmãs Valois, no Monte Castelo. Era uma exigência inflexível de minha mãe que fazia, na mesa oval amarela da copa do bangalô em frente ao Senai, com um lápis e nossos cadernos de deveres na mão, após nos ter concedido certo tempo, rigorosa avaliação de nosso desempenho, cerimônia que nos liberaria para assistir aos filmes ou nos deixaria de castigo no domingo seguinte, a decisão na dependência de nossos acertos ou erros. Bendita exigência, pois criou em nós o hábito do estudo e nos ensinou o valor da disciplina.
O Rialto, na rua do Passeio, em frente à residência de meus tios maternos Saul Raposo e Edilde, perto do antigo e minúsculo Pronto-Socorro, não longe do atual Socorrão I, era o nosso preferido. Antes das sessões, trocávamos gibis com outros garotos e depois víamos os seriados de aventura, cujos episódios eram como os capítulos das novelas de televisão hoje, com a diferença de se ter de esperar uma semana até ver o seguinte, em que se saberia se o mocinho, pendurado à beira de um precipício, por obra de malfeitores, havia caído de verdade, como parecia que iria acontecer, ou se o Super Homem, afetado pela criptonita, mineral esverdeado de outra galáxia, que lhe tirava as forças, havia recuperado seus poderes.
Este era meu herói predileto, por sua invulnerabilidade e capacidade de voar, de dar voltas ao redor de nosso planeta. Quando pouco tempo depois vi o Sputnik russo, caminhando feito um andarilho celestial, incansável lá no alto, brilhante como Vênus, e, no entanto, artefato humano, imagem que nunca mais me saiu dos olhos, achei que deviam mostrar assim o Super Homem nos filmes, solitário e inalcançável, criatura de fora da Terra, como ele era.
E assim, de domingo em domingo, chegamos por um tempo, criança que éramos, a acreditar na bondade, lealdade e honestidade de nossos heróis, na ilusão de serem essas as mesmas virtudes do mundo fora das telas.

17 de junho de 2007

Coque, coque

Jornal O Estado do Maranhão
Reportagem recente da Veja mostra a contaminação das escolas brasileiras de nível médio por lamentável proselitismo esquerdizante. Os danos potenciais à educação são imensos porque se trata de doutrinação ideológica de jovens em período formativo. No entanto, eles não deveriam se submeter a visões primárias, além de unilaterais, acerca de assuntos importantes para a compreensão do mundo em que irão viver e trabalhar. Os tópicos curriculares devem ser debatidos a partir de mais de um ponto de vista, honestamente apresentados, e não servir de desculpa a tentativas de catequese.
Eis a história. A mãe de uma aluna do Colégio Pentágono, de São Paulo, ao examinar apostilas usadas pela filha, produzidas pelo grupo COC para 200 escolas particulares e 220.000 estudantes, descobriu o que ela chamou de “panfletagem grosseira” e de “porno-marxismo”. Fiquemos num único exemplo: “A dissolução das comunidades neolíticas, como também da propriedade coletiva, deu lugar à propriedade privada e à formação das classes sociais, isto é, a propriedade privada deu origem às desigualdades sociais [...]”.
Ao falarmos de classes queremos nos referir a grupos de indivíduos ou famílias com poder, prestígio, riqueza e interesses semelhantes no interior de uma sociedade. A existência delas é anterior ao capitalismo e não é inerente a ele, como insinua o autor do texto. Não há um vínculo necessário entre elas e determinada coletividade. Não foi uma hipotética dissolução da propriedade coletiva e o aparecimento da propriedade privada a qual, em princípio, poderia ser apropriada de forma igualitária, as causas do surgimento de classes. Há consenso entre os estudiosos de várias tradições políticas acerca do importante papel das desigualdades de variadas naturezas no nascimento delas, e não o contrário.
Na análise marxista, elas se definem em relação ao processo produtivo e à posse dos meios de produção: a classe capitalista os possui, enquanto a trabalhadora, deles destituídos, dispõem tão-só de sua força de trabalho, situação que a obriga a vendê-la no mercado, assegurando apenas sua própria reprodução. Não passa de anacronismo aplicar esse conceito, elaborado com bastante perspicácia por Marx no século XIX, a uma época anterior ao aparecimento do capitalismo, como se lê na apostila.
No texto, há ainda ignorância presunçosa do autor a respeito de suposto igualitarismo numa era de ouro da propriedade coletiva. Ora, os cientistas sociais estão cansados de ensinar que a distribuição de talentos nas populações é normal. Num extremo, encontramos um pequeno número de indivíduos com muitos talentos inatos. No outro, com poucas habilidades, número também reduzido de pessoas. Entre os extremos, está a maioria, num continuum de talentos médios. Assim, é quase impossível resultar dessa característica igualdade em termos de rendimentos individuais, ainda que todos tivessem no início a mesma riqueza acumulada. Mas, um mínimo, necessário à sobrevivência digna, deve ser garantido aos membros mais vulneráveis da comunidade. Se se tentasse assegurar renda igual a todo mundo, haveria forte desincentivo aos mais talentosos na aplicação de suas habilidades em seu próprio benefício e no do grupo, com prejuízos coletivos evidentes.
Assuntos complexos como esses não podem ser distorcidos por doutrinadores do marxismo vulgar, em benefício de visões maniqueístas da vida social, mas em prejuízo da formação dos jovens. Outro texto, pior ainda do que o transcrito acima, intitulado “Como se conjuga um empresário”, tolo e de extremo mau gosto, serviu de tema de redação do vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais. Sucumbirão Minas e os mineiros a modismo tão primário?
Está na hora de dar um bom coque na cabeça dura desse pessoal.

10 de junho de 2007

Delírio na Venezuela

Jornal O Estado do Maranhão
Só o Partido dos Trabalhadores, em sua paranóia anticapitalista, seria capaz de propor a cassação da licença da Globo, concernente a serviços de transmissão de televisão, concessão do Poder Público. Digo mal, pois não é só o PT; também o MST, uma tal Central de Movimentos Populares e assemelhados. A proposta surgiu após o fechamento da RCTV por Hugo Chávez, da Venezuela, oportunidade em que o PT deu uma nota de apoio ao ato.
Alega o caudilho venezuelano que a emissora participou de tentativa de golpe contra ele. Ora, a televisão Venevisión, na época oposicionista, do magnata Cisneros, coordenadora de fato da rebelião – anteriormente, lembremos, Chávez havia tentado seu próprio golpe –, mudou de lado, passou a ser bem tratada e adotou ardor oficialista de recém-convertido. Portanto, o crime da RCTV não foi o de ter apoiado o golpe antes, mas de ser contra o governo agora, quando se ouvem ameaças de fechamento da Globovisión, outra organização divergente.
Segundo o PT, que não vive no cotidiano a falta de liberdade em nosso vizinho que segue acelerado rumo ao caos econômico e ao social, a RCTV é a “TV Globo de lá” e apenas uma “minoria opositora” é contrária à violência oficial. Gostariam de fazer o mesmo no Brasil, proposta reveladora de profundo espírito democrático.
Essa turma está correta num certo sentido: impedir o funcionamento da televisão, a de maior audiência lá, é como proibir, aqui, o funcionamento da Globo. Só que, enquanto alguns grupelhos achariam a proibição perfeita para a democracia proletária, de triste memória nos países onde foi adotada, o restante da sociedade brasileira a rejeitaria.
Acham que as “liberdades burguesas”, como a de não concordar com regimes auto-intitulados de esquerda, de ir contra o populismo e a tentativa de implantação de um sistema político autoritário, de ser a favor das liberdades individuais, são crimes de lesa-pátria.
A fim de evitar a condenação do abuso pelo Brasil, o presidente Lula invoca a pretensa conformidade das medidas contra a RCTV à legislação local, esquecendo-se, só para ficar no exemplo mais conhecido, que Hitler também agiu dentro da lei, quando se tornou primeiro-ministro. As semelhanças entre os dois ditadores não ficam só nisso, porquanto ambos, antes de chegar ao poder pelas vias legais, fracassaram em tentativas de golpe de Estado. Lula, infelizmente, foi muito mais longe. Disse que não renovar a concessão foi tão democrático quanto uma eventual renovação. É uma forma distorcida, mas, vamos dizer, autêntica de ver as coisas de parte de um presidente autêntico.
Os acontecimentos na Venezuela não dizem respeito tão-só a ela. Se não por uma questão de princípio, pelo menos porque o país faz parte do Mercosul como membro pleno desde julho de 2006, na primeira nova adesão ao bloco desde sua criação em 1991 pelo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, durante a presidência Sarney. Há, entre suas cláusulas constitutivas, uma de exigência de funcionamento pleno da democracia no sistema político dos sócios, condição ausente da Venezuela hoje. Veja-se a modificação na Constituição com a finalidade de nela incluir dispositivo que permite a reeleição de Chávez sem limite, aprovada por um Congresso dócil, mas compensado com benesses governamentais, algo parecido com um mensalão ao estilo chavista.
O povo de lá não terá sequer o consolo de viver num regime de força com a triste compensação de bons resultados na economia, pois há sinais de desorganização do sistema produtivo, com fortes pressões inflacionárias e ameaça de desabastecimento.
A culpa de tudo não pesará nos verdadeiros responsáveis, mas nos sabotadores capitalistas, inimigos da pátria do “socialismo do século XXI”, seja lá o que esse perigoso delírio signifique.

20 de maio de 2007

Vôo na manhã

Jornal O Estado do Maranhão
Da sacada vêem-se os prédios modernos, onde muitos anos antes pescadores passeavam seus pequenos barcos a vela e suas redes; vêem-se as ruas, as avenidas, o asfalto, o mangue, a lagoa, o mar e a praia com pequenos seres seminus caminhando aparentemente despreocupados, mas em verdade pensando na vida e em suas armadilhas. Será que ele me ama, divaga a garota e olha o próprio corpo descoberto por um biquíni azul. Ali estão os pássaros, os beija-flores, por exemplo, e também os urubus, em seu passeio matinal, lá no alto, despertando inveja nos caminhantes lá embaixo.
Um dia desses, dia de sol e muito vento, sem nuvem alguma no céu, presente somente o azul, um deles, cujo nome e espécie nunca se chegou a saber (seria descendente de um daqueles que costumavam pousar na pitombeira no fundo do quintal com cheiro de terra, depois do almoço, nas quentes tardes de antigamente, e que – tiro certeiro de baladeira –, morriam sem ao menos sentir a aproximação do caroço de pitomba, bala vegetal?), quis dar uma volta na avenida Litorânea e na cidade. Vinha do porto do Itaqui. Primeiro, ultrapassou a fileira de navios, mensageiros de terras distantes, esperando em fila indiana a vez de atracar, e voou em ziguezague entre eles. Depois, deu uma volta completa em torno de cada um, como a cumprimentar os homens do mar e consolá-los das saudades dos seus. Tão longe de casa se encontram, afinal. Aquele acenando do convés com um sorriso melancólico lembra-se da filha desconhecida que acabou de nascer.
Foi até a Ponta de São Francisco e à da Areia, disse bom-dia à brancura das duas, e finalmente, planou a meia altura de volta à Litorânea. Mirou o canteiro central da avenida como linha de referência e foi até o Barramar, já quase no Olho D’Água. Onde as dunas nas quais as crianças brincavam no passado? Foram os grandes ventos de agosto que as deixaram assim ou os homens? Fez então um semicírculo acrobático, suave e gracioso, e retornou, agora mais veloz, pois vinha a favor do forte vento feito de fortes rajadas, já quentes naquela hora da manhã, não sem antes lançar um olhar em direção ao Araçagi. Tomou novamente a avenida – a bem dizer, tomou apenas uma das infinitas dimensões do espaço a pouco mais de dez metros de altura da pista, talvez, – até chegar ao Calhau. Aí, imaginou deixar em casa, por uma dezena de minutos apenas, a companheira e os filhos, e resolveu ir mais longe, dar uma volta na cidade.
Olhou as pequenas dunas a sua esquerda, fez uma leve curva e aproveitando o vento ascendente que acompanhava o perfil de uma das elevações, quase a tocou, fazendo rápido e leve cumprimento, como os cavalheiros de outrora, antes de elevar-se até alcançar seu topo. Daí, por um instante parado no ar, após breve momento de hesitação, seguiu em direção da cidade velha, após concluir que a família não ficaria exposta à fúria dos elementos, naturais ou humanos. Pareceu não me ver na sacada.Talvez o sol em contraluz, talvez a ansiedade de passear em breve num mundo novo.
Em um bar no térreo de um prédio antigo, com mesas pequenas de metal, dessas fornecidas pelos fabricantes de bebidas, um homem tomava sua cachaça e maldizia a vida, que nada lhe dera e tudo, que sempre fora pouco, lhe tomara. O carteiro, a duas quadras dali, perguntava pelo antigo morador da porta-e-janela antiga. Entrega-se correspondência a mortos? Na ponte que liga a parte velha da cidade à nova, avistou um homem com a barba por fazer, os olhos fixos na água. Não reparou quando o pássaro pousou a seu lado na amurada. Pensaria no abandono pela namorada?
Enquanto voava de retorno a sua casa, pensou, ele também, na existência e seus ardis. Haveria um modo seguro de aprender com a vida, sem essa estranha sensação de desconhecer a própria vida?

Machado de Assis no Amazon