11 de setembro de 2005

Nova Orleans

Jornal O Estado do Maranhão    
Nova Orleans foi, em 1718, como São Luís em 1612, fundada por franceses. Portanto, cento e seis anos depois de nossa cidade. O Estado de Louisiana, onde está localizada, originalmente foi possessão da França, vendida por Napoleão I aos Estados Unidos em 1803. É famosa pelo Bairro Francês com seu Mardi Gras, que lembra nosso Carnaval, pelo Dixieland jazz e pelo blues, por sua culinária e por ser o lugar de nascimento de músicos como Jelly Roll Morton e Louis Armstrong.
Construída às margens do Mississipi, ela foi atingida por um furacão batizado como Katrina. Poucas vezes houve uma ataque natural tão devastador numa área em que fenômenos desse tipo são comuns. Localizada abaixo do nível do mar em vários pontos, tem em redor diques para contenção do rio ao Sul e do lago Pontchartrain ao norte. Essa linha de defesa, contudo, não foi capaz de conter o imenso volume de água vindo dessas duas direções, quando as barreiras se romperam.
Os que não conseguiram sair de lá, em sua maioria negros, pobres, idosos e doentes, enfrentaram a pior agressão da natureza a uma zona urbana no Sul dos Estados Unidos. Em verdade, a Louisiana apresenta baixos níveis de renda por qualquer padrão de comparação. Mas, não preciso me alongar sobre detalhes conhecidos de todos. Menciono esses dados apenas para assinalar o contraste entre a alegria daquela comunidade, antes, e a violência da natureza, durante, e humana, depois, da passagem do Katrina.
São chocantes os relatos de saques, estupros, violência, assassinatos e todo tipo de conduta brutal e insensível surgida em meio a uma situação que por si só, independentemente do procedimento dos seres humanos envolvidos na catástrofe, já causava sofrimento e morte só pela simples ação da natureza. É o típico comportamento humano em situações-limite, tendo raízes na quota de reações instintivas partilhadas com os outros animais, nossos sócios na posse deste pequeno planeta.
O comportamento anti-social surgiu quase de imediato, logo nas primeiras horas depois da passagem do furacão. Viu-se uma brutal luta pela sobrevivência, como resultado de não haver freqüentemente alimentos e água o que, é certo, cria circunstâncias de ameaça direta às pessoas. Logo se formaram bandos de ataque e de defesa, passando a prevalecer, durante algum tempo, a lei do mais forte. Grupos se formaram com o fim de repelir as ameaças, líderes de um lado e do outro surgiram depressa. Os mais fracos procuraram a proteção dos mais fortes ao preço da submissão e renúncia a qualquer poder decisório próprio, compensados, afinal, pela possibilidade de sobrevivência.
A situação não teve análise cuidadosa da imprensa, apesar dos relatos explícitos, mas desacompanhados de imagens muitas vezes. A descrição de atitudes de solidariedade foi mais comum. Não se pode deixar de lembrar, no entanto, das ferozes lutas entre grupos étnicos em alguns países africanos, embora em proporção muito superior neste caso, pois envolvem a sobrevivência de populações inteiras, quando conceitos morais simplesmente são suspensos num ambiente em que regras de convivência pacífica desaparecem.
Quando a vida se vê sob ameaça, pela ausência tanto de meios que a sustentem no curto prazo, quanto de instituições com capacidade de controlar os mais primitivos instintos do ser humano, não diferentes, na essência, quanto a este aspecto, dos observados no mundo natural, a convivência civilizada sucumbe.
Nas sociedades pobres, em especial nas que não conseguem construir instituições capazes de lidar com a escassez, tal condição é ainda mais evidente, traduzindo-se, se não em guerra aberta o tempo todo, pelo menos em constante tensão social, como se vê em toda parte.
Os acontecimentos de Nova Orleans servirão de lição aos governantes?

Machado de Assis no Amazon