16 de janeiro de 2005

Poeta e Poetisa

Jornal O Estado do Maranhão 
Dizem ser de Cecília Meireles a afirmação de que poetisa é qualquer mulher que faz versos e poeta uma autora de boa poesia. Portanto, para não se fazer confusão entre a má e a boa versejadora, não seria, nesta última hipótese, “poetisa” o feminino, de poeta, mas, sim, “a poeta”. Era desse jeito que ela, não sei se em consideração às suas muitas qualidades poéticas, gostava de ser chamada. Vem desse equívoco – pois mesmo as grandes poetisas o cometem nem que seja uma vez apenas na vida – a utilização estranha, pelo menos para mim, em círculos restritos, de poeta como substantivo comum de dois gêneros.
Existe claro preconceito feminista, com origem nos anos setenta, parece-me, nessa maneira de utilizar o simples feminino de uma palavra que, pela terminação em a, não ficaria de todo mal empregada se convencionássemos incluí-las entre as femininas. Alternativamente, quem sabe ela pudesse ser utilizada como sobrecomum. A ser assim, se assemelharia, quanto ao uso, à palavra criança, por exemplo: A criança (menino ou menina) viu a uva; mas a poeta (versejador ou versejadora) a comeu. Difícil seria usar “poeta macho” e “poeta fêmea”. Enfrentaríamos decerto a acusação de incentivo ao sexismo e à liberação dos mais baixos instintos animalescos no ser humano, pois essa forma, chamada epicena, é usada para animais.
A palavra poetisa foi dicionarizada pela primeira vez por Morais em 1813, no seu Dicionário da língua portuguesa. Os mais conhecidos dicionários da atualidade não abonam o emprego do comum de dois gêneros neste caso. Todos eles – o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, o Novo Aurélio, o dicionário da língua portuguesa, o Michaelis, moderno dicionário da língua portuguesa e o Dicionário da língua portuguesa contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa – registram poeta e seu feminino poetisa e só. Em nenhuma de suas acepções se encontram referências a possível uso da palavra como comum de dois gêneros.
Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova gramática do português contemporâneo, ao analisar a flexão de gênero dos substantivos, observam que há vários masculinos terminados com a vogal a, característica, no entanto, da terminação do feminino. Entre eles, artista, camarada, colega, poeta, profeta. “Alguns apresentam uma forma própria para o feminino, como poeta (poetisa), e profeta (profetisa); a maioria, no entanto, distingue o gênero apenas pelo determinativo empregado: o compatriota, a compatriota; este jornalista, aquela jornalista; meu camarada, minha camarada”.
O Houaiss informa também, usando como fonte de datação o Índice do vocabulário do português medieval, de A. G. Cunha, que poeta, “escritor que compõe poesia”, teve seus primeiros registros em documentos, ainda no século XV. Ora, poetisa, “pessoa do sexo feminino que faz poesia”, é palavra tão boa quanto poeta, pois é da mesma época desta. Reparem o seguinte. Não há qualidade nenhuma, nessas definições, a distinguir o masculino do feminino. A referência é ao mesmo fazer poético, do homem e da mulher, sem nenhum juízo de valor nos dois casos. Não sei de onde saiu a idéia de os substantivos femininos terminados isa terem conotação negativa.
É certo que a língua, viva como é, muda o tempo todo e as palavras adquirem novos e, às vezes, inesperados significados e usos. Não fora assim, poderíamos ainda falar o latim ou o português quinhentista. Igualmente certo, porém, é que não se podem impor essas mudanças por decreto, modismos, idiossincrasias de grandes escritores ou, até, desconhecimento, pelo falante, das características básicas de sua própria língua.
Meu receio é de me criticarem por usar a bela e sonora palavra poetisa, cuja origem está no grego. Afinal, posso fazê-lo, pois não pretendemos ser a Atenas Brasileira?

9 de janeiro de 2005

Ainda o Reggae

Jornal O Estado do Maranhão
Volto ao reggae. É que acabo de ler um excelente artigo, cujo título é “O Nacional-burrismo”, de Sérgio Paulo Rouanet, filósofo, cientista político e ensaísta, diplomata de profissão, ex-ministro da Cultura do governo Collor e membro da Academia Brasileira de Letras. Ele ataca, justificadamente a meu ver, o nacionalismo cultural, “uma das idéias mais perigosas que jamais afligiram o planeta”. O perigo está na tendência à hipervalorização da própria cultura por grupos sociais em detrimento de outras. De fato, se dermos uma olhada nos livros de história, veremos sem nenhum esforço o quanto essa idéia já provocou de conflitos e guerras. Mais, até, do que interesses puramente econômicos.
Em verdade – parece-me pertinente dizer – muito se ouve em círculos semiletrados cujos freqüentadores se passam por donos de sólidos conhecimentos sobre qualquer coisa, uma defesa ingênua e desinformada de uma suposta cultura tradicional, de verdadeiras raízes populares, sempre contraposta a uma outra, das classes dirigentes, artificial porque impregnada de elementos “de fora”, submissa à globalização, o que quer que esse termo signifique e, portanto, deficiente de cor local, de brasilidade.
Com essa assombração, cria-se uma falsa disputa. De um lado, a autêntica cultura do povo e, de outro, a das elites, inevitavelmente artificial, como se a primeira fosse, ou pudesse ser, impermeável a qualquer influência externa, e a outra se formasse simplesmente por imposições originadas em culturas “estrangeiras”. Deriva daí a idéia de que somente as “nossas” manifestações populares são “originais”, quando, muitas vezes não são uma coisa nem outra.
Mas, onde entra o reggae nessa história toda? Entra no mesmo capítulo do samba, do futebol, do Carnaval, do Natal, do Papai Noel e, mais recentemente, do Hallowween, manifestações alienígenas, todas essas, incorporadas, porém, ou em período de incorporação, à cena local. É o capítulo da afirmação de nossa identidade cultural de brasileiros e, mais especificamente, de maranhenses, através da abertura para o mundo e da absorção das melhores características de outros povos. Essa é uma forma de enriquecimento nessa área. Imaginem se um xenófobo da época, com base naquela visão distorcida, tivesse impedido Charles Miller de trazer o futebol para o Brasil no final do século XIX. Seria um ganho ou uma perda cultural?
Tomemos um exemplo de importação lingüística. Deletar chegou à nossa língua através do inglês to delete. Eu dizia em uma crônica de fevereiro de 2003 que esse verbo tem pedigree (esta palavra é outra importação do inglês, mas com origem no francês), porque sua origem está em deletus, particípio passado do verbo delere, cujo significado é suprimir, remover, destruir. Mas, muita gente rejeita o rejeita por considerá-lo cópia servil do inglês. Ora, Rouanet, toma como exemplo o mesmo deletar para dizer com acerto que no Brasil o problema não está nas importações (neste caso inteiramente justificada), mas na ignorância acerca do nosso idioma e na incultura generalizada, evidência do fracasso do nosso sistema educacional.
Precisamos considerar tudo isso para entender, mas não justificar, a notória reação contra o reggae em nosso meio. Podemos importar o futebol (football), mas não o reggae; o Natal, mas não o reggae; o Papai Noel (São Nicolau), mas não o reggae; e assim por diante. O certo é isto. Apesar de todas as resistências, o reggae veio para ficar. Amalgamado com traços culturais há mais tempo por estas praias, produziu algo nosso, que por sua vez continuará a sofrer mudanças, como todas as coisas vivas sofrem. Não será surpresa se chegar o dia de alguém falar dele como uma autêntica tradição maranhense necessitada de proteção contra ameaças de todo tipo.

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