30 de outubro de 2005

O Povo

Jornal O Estado do Maranhão   
O povo é sábio, é justo, é bom, é generoso, é altruísta. É a encarnação coletiva do bom selvagem, de Rousseau, transformado num lobo feroz, não muito depois da chegada dos europeus a estas terras, por conta das agressões do invasor. A civilização, tão-só, o corrompe, com as ardilosas artimanhas do capital, que produz sociedades degeneradas, e com as manobras dos capitalistas, sempre dispostos a se aproveitar dos trabalhadores em benefício do aumento de lucros.
Os comentários de alguns jornalistas da imprensa do Sul, irritados com a derrota do sim no recente referendo, permitem se fazer dessa entidade etérea, o povo, retrato como esse.
Esse fetichismo do povo, como possuidor de todas as virtudes em contraste com as elites cheias de todos os defeitos, prevalece apenas, no entanto, até o momento de desacordo entre, de um lado, a visão dos problemas nacionais dos fetichistas e monopolistas da ética e, do outro, a visão popular acerca da melhor maneira de resolvê-los.
Quando essa divergência aparece, é porque o povo não sabe votar, é desinformado e não tem consciência de seus próprios interesses. Renasce, assim, de forma sorrateira, a tese marxista, de natureza indefinida, da “falsa consciência”, segundo a qual, por artes misteriosas das classes privilegiadas, as pessoas, ou a classe trabalhadora, mas não as outras, que sempre conhecem bem o que lhes traz vantagens, agem não apenas de vez em quando, mas de maneira sistemática, contra seus próprios interesses, revelando, de parte de quem acredita nisso, sólido desconhecimento de instintos inatos do humanos.
Apesar do iluminismo de alguns defensores do sim, gente capaz de distinguir o certo do errado e de nos guiar com segurança contra as forças do mal, o povo rejeitou a proibição da comercialização de armas de fogo. Uma articulista sulista disse num texto com o título “A Bancada da Arma”: “O fato é que o referendo era do bem, mas proporcionou o recrudescimento da direita mais assustadora, que manipulou um sentimento geral de protesto”. Quer dizer então que 64% dos eleitores brasileiros são facilmente manipuláveis? Em seguida, deu como causa da derrota do sim a vontade da maioria de votar contra Lula. Quer dizer então que 64% são contra o governo Lula?
Vamos admitir, agora, o seguinte. O povo é formado, por todos os brasileiros, menos os das elites, como alguns defensores do sim parecem imaginar. Ele seria composto, portanto, por gente com renda média muito baixa. Os ricos são minoria e os pobres maioria indiscutível entre nós, como resultado da imensa desigualdade na distribuição da renda pessoal. Se 64% escolheram o não, isso significa, visto essas elites representarem talvez uns 10%, que muitos do povo, a maioria, quem sabe, votaram no não.
Como explicar essa decisão, a se acreditar que o vantajoso para elas estaria na proibição, segundo os luminosos guias das massas, visto serem elas mais atingidas pelas armas de fogo do que o restante da população? A resposta não admite enrolação pós-moderna nem wishful thinking. O verdadeiro interesse delas está na liberação, como evidenciado pela vitória do não. Essa conclusão deriva do fato de não existir nada no comportamento humano que nos leve a pensar nos erros sistemáticos de percepção da realidade como persistentes a longo prazo, em prejuízo do auto-interesse, pois no decorrer do tempo informações relevantes a cada situação, elaboradas a partir de percepções cada vez mais acuradas, em vista da experiência acumulada de cada membro da comunidade, se tornam acessíveis a todos. A persistência no erro seria sinal de violência ao instinto de sobrevivência.
É assim que o povo age: em defesa de seus interesses, como qualquer um de nós, sem babás a lhe dizer como votar. Não foi assim a eleição de Lula?

16 de outubro de 2005

Dois Errados...

Jornal O Estado do Maranhão  
Vai se tornando comum nos meios petistas, bem como nos assemelhados e aderentes, o seguinte argumento amoral – nem imoral chega a ser, o que revelaria certa consideração a padrões de moralidade pública, algo fora das cogitações do ex-campo majoritário do ex-PT. Como, dizem, outros partidos usaram e usam caixa dois em campanhas políticas, o PT estaria justificado por ter criado também o seu, com o fim de comprar os votos necessários à aprovação de projetos do governo no Congresso Nacional, com a força do vil metal, materializada no mal afamado mensalão. Este neologismo, por sinal, tão logo foi inventado pelo ex-deputado Roberto Jefferson, se popularizou instantaneamente, revelando entusiasmada receptividade popular às denúncias do então parlamentar acerca do comportamento criminoso do petismo, outrora monopolizador da moral e dos bons costumes da vida pública.
Por conta desse amoralismo nascido em Paris, em entrevista de nosso presidente, quando ele tentou banalizar o uso do caixa dois, apelidado por ele de erro, para não ter de chamá-lo pelo verdadeiro nome, crime, ouvem-se afirmações solenes de dirigentes do PT e de simpatizantes do partido, com ares de filósofos morais de bar de praia ou pose de doutas autoridades em práticas políticas ilegais, sobre o uso pelo PSDB do mesmo expediente por ocasião da votação da emenda da reeleição a cargos do Executivo.
O novo presidente do PT, Ricardo Berzoini, aquele que, de fichas de recadastramento da previdência social em punho, ameaçou a vida de milhares de idosos “deste país”, como diria Lula, usou o argumento há pouco tempo, ao votar no segundo turno da eleição interna do PT. Muito bem. Vamos cassar os mandatos dos que assim agiram, se eles ainda os têm, e mandar para a mesma cadeia onde se encontram Paulo Maluf e seu filho todos os envolvidos no comércio eleitoral dentro do Congresso Nacional, local dos negócios. O certo, no entanto, é isto: dois errados não fazem um certo, se se pode distinguir o certo do errado em política.
Quem sabe os atuais coordenadores políticos do governo sigam o exemplo de José Dirceu. Aliás, a despeito de todo o seu poder no passado, de tudo controlar na administração pública, ele alega que o esquema de corrupção não era de seu conhecimento – como não era de ninguém mais, segundo alegação de todos os acusados, forçando-nos a concluir que foi criado por geração espontânea ou vivemos uma alucinação coletiva –, e muito menos produto de sua reconhecida engenhosidade, capaz de lhe dar a coragem de dizer que empunhou, sem tê-lo feito, armas contra a ditadura militar.
Se tem gente que tem fé em duendes e leva Paulo Coelho a sério, se o povo acredita nas promessas de época de eleição e Elba Ramalho jura ter sido abduzida por extraterrestres que lhe implantaram um chip no corpo, então não é absurdo dar crédito a Dirceu. Claro, os documentos não o incriminam de modo direto. Mas, quem disse que malfeitores passam recibo de suas tramóias e só provas documentais condenam criminosos?
Se o exemplo for tão exemplar, permitam-me dizer dessa forma, os coordenadores comprarão os deputados compráveis, com o objetivo de constituir uma CPI de verdade, do ponto de vista deles. Ela seria diferente e, até, oposta em seus resultados, à criada há algumas semanas pela base aliada de Lula, visando investigar, imaginava-se, a compra de votos para a emenda da reeleição, mas de fato, vê-se agora, feita com a única finalidade de barganhar com a oposição a investigação das próprias compras governamentais de deputados, num jogo de CPI contra CPI, conveniente aos dois lados. Se tal Comissão fosse constituída, os malfeitos do pessoal do PSDB poderiam ser investigados e seus agentes castigados. Mas, será, mesmo, esse o desejo do governo?

9 de outubro de 2005

É Palhares o Morcego?

Jornal O Estado do Maranhão
Não sei se o leitor já ouviu falar de Palhares, o canalha. Não um canalhinha qualquer. Ele era o canalha irretocável, perfeito, honesto. Atacava sem piedade as cunhadas nos corredores, depositando, qual morcego de filme de terror, mordidas e mais coisas no pescoço e em várias outras partes do corpo delas, na época em que muitas moças casavam, porém não saíam logo de casa, para onde traziam os maridos, pelos menos enquanto eles não arrumassem um bom emprego.
Pois esse personagem inesquecível da ficção de Nélson Rodrigues, era um cara assim. Morava na casa do sogro. Mesmo vivendo lá, não se detinha ante as exigências da falsa moral burguesa do sogro e não deixava passar nenhuma oportunidade de assediar as irmãs da mulher que, pobre coitada, jamais desconfiou de nada.
Agora, os cientistas anunciam a descoberta de inusitado comportamento num ser que age no estilo Palhares. Os machos dos morcegos da espécie Rhinolophus ferrumequinum fazem sexo com a sogra e, até, com a avó de sua mulher, se desta forma se pode chamar a companheira desse predador das cavernas. Eles vivem separados das fêmeas. Só se aproximam na hora do acasalamento. Dão razão, neste ponto, à velha queixa feminina de que, ao aproximar-se de uma representante do outro sexo, o macho tem apenas interesse, vamos dizer, na procriação. Essa conduta pode ser, como se vê, comum não só entre humanos, mas no resto do reino animal.
Não pense, contudo, incrédula leitora, nos morcego como um sujeito dissimulado, desse de fazer coisas como essas às escondidas, protegido pelo escurinho do lugar onde mora. Não, esse faz tudo às claras, em qualquer lugar, quando, louco de desejo pela sogra e pela avó da consorte, que a tudo assiste com olhos compreensivos, resolve se comportar como galã de subúrbio.
Vejam agora a palavra dos estudiosos do assunto.
Na maioria dos mamíferos, o acasalamento é quase sempre estabelecido pelo grau em que os machos são capazes de monopolizar as fêmeas. A escolha é deles. Pode ocorrer algumas vezes, no entanto, que a regalia masculina passe para o lado delas. No caso dos morcegos, elas radicalizaram, quebraram o monopólio masculino e passaram a escolher os companheiros, porém de maneira incomum, porque os compartilham com as mães e avós. É decisão familiar. Elas se reúnem e decidem convocar o morcegão ao imediato cumprimento do dever. Portanto, os culpados não são eles.
A teoria da evolução postula que os indivíduos de qualquer espécie escolherão parceiros que melhorem a aptidão à sobrevivência de seus descendentes. O aumento de parentesco – importante nos animais gregários – resultante do comportamento como esse das fêmeas, aumenta a cooperação social do grupo, tornando maiores as chances de sobrevivência de seus membros. Com certeza, pode-se chamar esse fenômeno de “evolução por nepotismo”.
Essa explicação, todavia, não dá conta ainda da forma como surgiu essa estratégia evolutiva e por que esta e não outra foi adotada. Os cientistas não têm certeza. “Uma possibilidade é que os parentes da fêmea sigam uns aos outros até os locais de acasalamento, ou copiem a escolha de parceiro”, diz o professor Stephen Rossiter, da Universidade de Londres.
Seja como for, quem pode sair reabilitado dessa história é Palhares. Seria ele tão pernicioso como sempre se pensou, ou, ao contrário, é tão-só um bom rapaz que apenas cumpre o seu papel na preservação da espécie, ao tentar procriar dentro da família de sua mulher e promover, ao agir desse jeito, coesão social e, em conseqüência, maior capacidade de sobrevivência?  Não seria boa idéia levantar um monumento a ele, o ex-canalha, e dar-lhe o título de benemérito da humanidade? Não seria ele um incompreendido, mas em verdade exemplar Rhinolophus ferrumequinum?

5 de outubro de 2005

Por Que Não

Jornal O Estado do Maranhão   
Votamos hoje num referendo cuja divulgação nos meios de comunicação omitiu de todos nós informações relevantes sobre o assunto acerca do qual deveremos nos manifestar – a possibilidade da proibição da fabricação e venda de armas de fogo no Brasil –, dizendo sim ou não, e as razões de termos de fazê-lo. Muitos não saberão sequer o significado da palavra referendo e menos ainda diferençá-la de plebiscito, desconhecida de seu Rodrigues, que não admitia ignorá-la, como ignorava também o significado de proletário, no conto de Artur Azevedo, ignorância responsável por rusga familiar entre ele e d. Bernardina, sua mulher. Teimosia e desconhecimento semelhantes a respeito das conseqüências da eventual vitória do sim, criarão condições propícias à elevação do índices de violência e criminalidade, como aconteceu em outros lugares.
A votação é sobre o Estatuto do Desarmamento, lei aprovada com o condicionante, introduzido pelos adversários da proibição, que a consideram inócua e mistificadora, de ter seu artigo 35 submetido à aprovação popular. Os defensores desse dispositivo, por sua vez, segundo entendi da exposição dos argumentos durante o período de campanha, esperam que a proscrição da posse daquelas armas seja decisiva, se não para a redução a zero dos índices, utopia não realizada em nenhum outro país, pelo menos para sua substancial redução.
Eles falam de migração sistemática de armas adquiridas de forma legal das mãos dos cidadãos em direção às dos criminosos, através de roubo ou furto, e dão, assim, a impressão falsa de que o arsenal fora da lei tem sua fonte de abastecimento aí e não no lucrativo e incessante contrabando, fora de controle das autoridades e até com a conivência de muitas delas. A vitória do sim não mudaria nada disso, porém, quase com certeza, aumentaria o lucro dos contrabandistas, deixando o armamento com os malfeitores.
Navegam, os advogados dessa posição, na rota fácil de desarmar as pessoas comuns, em vez de lutar pela repressão ao crime organizado ou desorganizado, por meio da aplicação no aparelhamento das polícias e da justiça de recursos públicos que o governo federal e muitos estaduais irão investir apenas sob pressão. Ademais, quantos de nós compra armas pesadas, como fuzis e metralhadoras, tempos atrás de uso exclusivo das forças de segurança, e as vende aos bandidos?
Argumentam, além disso, com exemplos de agressão dentro do lar, misturando fenômenos sociais diferentes, como se brigas de vizinhos ou de marido e mulher ou mesmo acidentes domésticos com crianças, que por certo podem resultar e resultam em mortes, tivessem a mesma natureza daquela das quadrilhas de traficantes que infestam as cidades brasileiras. Se a proibição fosse capaz de diminuir o elevado número de mortes violentas, então com mais razão se deveria proibir o uso de veículos motorizados, responsáveis por cifras mais altas.
Sabe-se da ausência de relação de causa e efeito ou de simples correlação estatística, entre taxas de criminalidade e a posse legal de armas. Há países cujas populações as portam sem restrições e outros onde elas foram banidas. Contudo, apresentam índices semelhantes, altos ou baixos. As causas são múltiplas, como os sociólogos estão cansados de mostrar. Não será com a pretensão de eliminar apenas uma delas, secundária como neste caso, que se obterá a cura para doença social do tipo da nossa.
São essas as razões de eu votar no não. Faço-o na convicção de não ser possível resolver questões complexas como essa em discussão de uma só vez nem com medida bem intencionada, mas ineficaz. Daqui apouco, caso nenhum bando bem armado assalte os locais onde se vota, possibilidade lembrada por José Chagas recentemente, ou me ataque pelo caminho, estarei cumprindo meu dever.

2 de outubro de 2005

Os Bustos do Panteon

Jornal O Estado do Maranhão   
Na quarta-feira passada, comissão de acadêmicos da Academia Maranhense de Letras – AML, formada por Jomar Moraes, seu presidente, Mílson Coutinho, Joaquim Itapary, Lourival Serejo e eu, encontrou-se com o prefeito de São Luís, Tadeu Palácio, para dar prosseguimento à frutífera reunião do dia 11 de agosto último. Como da vez anterior, ele nos recebeu de maneira cordial e demonstrou, sobre o assunto que nos levava a procurá-lo novamente, vivo interesse e conhecimento detalhado.
Discutimos a situação dos bustos, até pouco tempo atrás presentes na Praça do Panteon, de homens importantes de nossa vida literária, quase todos construtores da identidade cultural maranhense a partir do século XIX, obra continuada por legítimos sucessores no século XX e neste. Enquanto, durante anos, modelados em bronze, estiveram naquele local, era como se ausentes permanecessem para muita gente. Não para os malfeitores, porém, especializados em arrancá-los de onde estavam para, derretidos, vendê-los por qualquer vintém furado a cúmplices receptadores.
Era como se não estivessem ali porque nunca se ouviu clamor público algum contra os atos de agressão a nossa cultura ou o mais débil rumor na imprensa acerca de providências a serem tomadas para evitar a interminável repetição do crime. Os homens ali representados, mortos fisicamente havia mais de um século em alguns casos, morriam mais uma vez, vitimados pela indiferença de muitos, mas não de todos.
Em cumprimento do ditame do artigo 1º de seus estatutos, de promover “a defesa das tradições maranhenses” a AML foi, naquela data, ao prefeito. Este, informado do que se passava, de imediato determinou a retirada dos bustos da praça e abrigou-os no Centro de Artes Japiaçu. Providência em boa hora tomada, pois vários deles já estavam descolados de seus pedestais, indefesos ante o furto iminente.
Concordamos na ocasião sobre a imperiosa necessidade de mantê-los longe da criminalidade, tendo, ainda, a AML, na condição de entidade de direito privado sem fins lucrativos, se prontificado a unir seu esforço ao do Município na tarefa de obter recursos para a execução de projeto de reforma daquele logradouro. Feito isto, eles seriam de novo recolocados lá, em condições adequadas de segurança.
A ausência depressa operou o milagre de torná-los bem presentes. De repente, ganharam vida e tornaram-se objeto da preocupação de gente que os tratava antes com descaso e insensibilidade, sem se importar com o furto e a depredação que sofriam. Ademais, exigiu-se da Academia solução impossível de ser dada, por não ter ela competência legal para tanto. É importante, no entanto, compreender que apenas se inicia a preservação e defesa dos bustos, trabalho aberto, é claro, à participação de quantas instituições estejam dispostas a colaborar. O assunto interessa a todos. É salutar que muitos manifestem apreensão neste momento. Antes tarde...
Na conversa de agora, chegou-se à conclusão de que eles poderiam, em seguida à completa restauração a ser custeada pelo Município, conforme pronta garantia dada pelo prefeito, ser colocados no pátio do Museu Histórico do Estado, após, naturalmente, acerto com a direção daquela instituição. Ali, eles estarão abertos à visitação pública, mas protegidos do vandalismo.
Por fim, foi aprovada a idéia de criação de comissão com representantes da Prefeitura, AML e IPHAN, que terá o encargo acima mencionado, de mobilização de recursos para o remodelamento da Praça. A Academia com o prestígio de seu nome quase centenário e história em defesa de nossa cultura poderá dar colaboração proveitosa à missão. Caso não seja possível fazer a reforma como desejada, nova decisão deverá ser tomada mais adiante, sobre o endereço definitivo dos bustos.
Eis a história.

Machado de Assis no Amazon