3 de julho de 2005

Rasas e Chatas

Jornal O Estado do Maranhão   
Caro leitor, analise, por favor, cuidadosamente este texto:
“A identidade sexual pode ser usada para os propósitos da hierarquia, segundo Sartre. Sontag, por sua vez, promove o uso do niilismo para modificar a sexualidade e sugere o uso do dematerialismo textual para destruir percepções obsoletas de identidade sexual, numa espécie de paradoxo autofalsificante. Sartre afirma ainda que a narratividade é usada para reforçar o sexismo, mas somente se a premissa do discurso neotextual for válida.”
Agora, este:
“Podemos ver claramente que não existe nenhuma correspondência biunívoca entre elos lineares significantes ou de arquiescritura, que dependa do autor, e esta catálise maquínica multirreferencial, multidimensional. A simetria de escala, a transversalidade, o caráter pático não-discursivo de sua expansão: todas essas dimensões nos removem da lógica do meio excluído e nos fortalecem em nossa renúncia ao binarismo ontológico [...].”
Se ambos parecem destituídos de lógica é porque de fato o são. Não querem dizer rigorosamente nada. O primeiro tem a seguinte história. Eu visitei o sítio http://elsewhere.org/cgi-bin/potmodern, que produz aleatoriamente, por meio de um sofware chamado The Postmodernism Generator, artigos com sintaxe correta (em inglês), mas completamente sem sentido, que lembram um discurso chamado pós-moderno encontrado freqüente nas obras de famosos filósofos e cientistas sociais, embora, às vezes, estes não se classifiquem como tal. De posse de alguns desses “produtos”, selecionei pequenos trechos, misturei-os, traduzi o resultado para o português e acrescentei arbitrariamente algumas expressões. Obtive, assim, o primeiro texto. O segundo é do famoso pós-psicanalista francês Félix Guatari, no livro Chaosmose. Sem comentários.
A idéia de divulgá-los juntos, de modo que o leitor possa perceber a semelhança entre eles, me veio da leitura de um artigo de Richard Dawkins, no livro O capelão do Diabo, e da releitura das Imposturas Intelectuais: o abuso da Ciência pelos filósofos pós-modernos, de Alan Sokal e Jean Bricmont. A história deste último livro é conhecida. Sokal escreveu uma “paródia, cuidadosamente construída, da metatagarelice pós-moderna”, conforme a feliz expressão de Dawkins. Chamou-a “Transgressão da Fronteiras: Por uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica”, inteiramente destituída de sentido, mas cheia de citações de conhecidos intelectuais franceses e americanos, acerca das supostas conseqüências filosóficas e sociais das ciências naturais e da matemática. Ela foi aceita sem nenhuma restrição pela conceituada revista americana de estudos culturais, Social Text, e publicada como se fosse um texto acadêmico, provocando uma interessante polêmica nos meios intelectuais. Daí, a idéia do livro.
A principal intenção dos autores foi de chamar a atenção para os abusos na utilização de terminologia e conceitos científicos fora da situação para o qual foram concebidos, o que leva à elaboração de uma prosa sem sentido e empolada, e a pensamentos confusos (eles analisam Lacan, Kristeva, Latour e Deleuze, entre outras estrelas). Eles queriam também identificar os fatores culturais que permitiram a esse tipo de discurso ganhar bom conceito em alguns círculos universitários. Além disso, o livro ataca com muita propriedade o chamado relativismo epistemológico, que é a visão segundo a qual a moderna ciência não passa de uma narração ou uma “construção social” como outra qualquer, idéia mais apropriada, penso eu, a gente como Paulo Coelho.
Livros e episódios como esses são muito úteis porque nos põem em alerta contra autores que, desejando parecer profundos, eruditos e sofisticados, apenas conseguem produzir obras obscuras, rasas e, sobretudo, chatas.

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