18 de dezembro de 2011

A favor de Papai Noel





          Engana-se quem pensa que Papai Noel distribui brinquedos aleatoriamente, sem se preocupar com as consequências de seu apostolado. O bom velhinho obedece a critério claro e objetivo, bastante antigo, usado desde o início de sua autoimposta tarefa de andar pelo mundo no dia do nascimento de Jesus Cristo: a crianças ricas, presentes ricos; a pobres, pobres; a remediadas, remediados. Nada mais acertado. Com a sabedoria acumulada em séculos de trabalho, ele entendeu as dificuldades de oferecer aos miúdos brinquedos iguais com respeito ao preço e resolveu dar a desiguais tratamentos desiguais. 

          Oferecer só os mais caros às crianças exigiria recursos não disponíveis em seu orçamento, limitado como todos os orçamentos. A saída, dados seus parcos recursos, desfalcados por altos impostos do governo da Lapônia, local onde ele mora, poderia ser a doação somente daqueles brinquedos de preço médio, situado entre o mais alto e o mais baixo. Contudo, como fino conhecedor da natureza humana, ele deve ter visto logo as dificuldades de adoção de tal critério.
          Os ricos reclamariam imediatamente porque esperariam mimos compatíveis com sua autoproclamada importância social. Quem sabe exigiriam para seus filhos um desses brinquedos recheados com as mais modernas tecnologias; ou um smartphone da Apple, não um simples e comum celular. Todavia, os garotos receberiam coisas muito mais modestas, já banalizadas pelo consumo de massa. A insatisfação desse pessoal seria fonte certa de agitação e revolta, nem sei se das crianças, mas de seus pais, preocupados com o frágil bem-estar espiritual de seus herdeiros. Ninguém poderia garantir, nessas circunstâncias, a estabilidade política da nação e a felicidade do povo.
          Os pobres, pobres coitados, ficariam inicialmente satisfeitos. Quantos deles teria sequer sonhado em ganhar aquilo que os abastados rejeitariam? Um super-herói de plástico já seria suficiente. Consoles de jogos eletrônicos, dos modelos mais simples, seriam razão de festejos. Até um caminhãozinho de madeira cairia bem. Mas, eles talvez fossem mais perigosos ainda do que os ricos com respeito à tranquilidade dos cidadãos. Depois de experimentarem o gostinho do bem-bom, presenteados com coisas acima de seu desejo, não deixariam de querer mais e mais. Eternos insatisfeitos, sempre com exigências descabidas! Daí a uma revolução “socialista e popular” seria um curtíssimo passo. O melhor, mesmo, seria não agitar as massas. Tudo poderia desandar e os comunistas poderiam ser tentados a novamente comer criancinhas.
          Os remediados, aqueles do meio, imprensados entre os de cima e os de baixo, aparentemente indiferentes a tudo, ficariam muito ressentidos. Eternas incógnitas, quietos pelos cantos, eles não sabem se são ricos ou pobres. Pela manhã ficariam sempre agitados e revoltados, como os ricos e, à tarde, insaciáveis, como os pobres. Dupla fonte de problemas.
          Está aí, portanto, a explicação desse esse antigo procedimento de Papai Noel, de dar presentes caros aos ricos e baratos aos pobres, neste último caso, quando traz algum. Bem avaliada, é uma atitude bastante prudente.
           Não há sentido, portanto, nos comentários que por vezes tenho ouvido de amigos supostamente esquerdistas, de ele não contribuir em nada na luta pela diminuição das desigualdades e promoção da paz social em nosso país e em outros, de desviar a atenção das crianças e seus pais dos verdadeiros problemas da humanidade, de impedir a criação do Paraíso na Terra, etc.. Em exame mais ponderado, no entanto, acabamos por concluir que Papai Noel está certo. Seu critério milenar de distribuição serve para evitar a desordem, a intranquilidade, a instabilidade política, em suma, o caos na sociedade.
          Seja como for, aquela figura simpática ainda estará muito tempo por aí enchendo de boas lembranças a imaginação das crianças, como as lembranças de minha infância, quando, fingindo estar dormindo a fim de flagrar Papai Noel no desempenho de sua missão, eu, despertado por meus pais, acordava feliz com os brinquedos debaixo de minha cama.

4 de dezembro de 2011

Um século de um homem bondoso: a meu pai

Jornal O Estado do Maranhão

Mario Vargas Llhosa disse, a respeito de seu pai, na semana passada no debate de abertura da 25ª edição da Feira Internacional de Livro de Guadalajara, no México: “Tinha medo muito medo dele, e a literatura virou uma possibilidade para que eu mantivesse a dignidade.”
Menciono a declaração do escritor peruano não com a intenção de fazer um julgamento acerca de seu liame – ou sua ausência –, com o pai, mas de referir-me às infinitas formas de que pais e filhos se utilizam em seus relacionamentos, cada uma produto de uma história pessoal e por isso mesmo única. A minha com o meu pai era de outra natureza.
A quarta feira passada marcou os 100 anos de nascimento dele, Carlos Saturnino Moreira, falecido em 1986, filho do comerciante Lino Antônio Moreira. Quando este morreu em 1928 do século passado, vítima de complicações de diabetes, até hoje uma ameaça a seus descendentes, o filho Carlos, da prole o mais velho do sexo masculino, tornou-se o chefe da família com apenas 17 anos. Havia a necessidade de orientar os irmãos e irmãs daí por diante e, sobretudo, de assegurar a sobrevivência material deles, até que pudessem andar pelas próprias pernas: Aldenora, a mais velha de todos, Lino Antônio Moreira Filho, Pérola, Cecília, João e Dayse, mais a viúva Josefina, minha avó.
Entre as virtudes de Carlos, essa, da coragem de colocar sobre os próprios ombros tanta responsabilidade tão cedo na vida, sem mãos de fora do círculo familiar que pudessem ajudá-lo, numa cidade acanhada e escassa em oportunidades, contando apenas com sua determinação de trabalhar e o sentimento de sua obrigação com os seus, é uma das que mais me comovem.
No mundo dos negócios, nunca agiu com a dureza quase sempre associada às atividades econômicas, para ter o sucesso que garantiu a seus filhos a melhor educação da época em São Luís. Temperamento afável e conciliador, dificilmente dizia não, em especial aos filhos e à esposa Maria, que cuidava da disciplina dos filhos nos estudos e em tudo mais. Nada conseguia estressá-lo ou colocá-lo em pânico. Nem a notícia, na madrugada indelevelmente gravada na minha memória, do incêndio do escritório da sua firma de representações na Praia Grande, em sociedade com o português seu Azevedo, como o chamávamos. “O seguro cobre os prejuízos”, ele disse sem se alterar.
É na imagem deixada nas mentes e corações dos filhos, como um homem bondoso, que mais vejo aquela ausência do medo que assombrava Vargas Llhosa. Isso me leva, ao recordar algumas passagens de minha infância e a colocá-lo entre os meus heróis arquetípicos e eternos. Imaginem por um momento um homem e seu filho pequeno, meio calado e muito tímido, num ônibus a caminho da escola. Na confusão da hora de sair do veículo ele se coloca à frente do menino e vai abrindo passagem heroicamente até descer à rua. Quanta coragem, ninguém me faria mal algum, disso eu podia ter certeza.
Agora me vejo de novo, em tempo mais recuado, ao saltar do ônibus na rua do Sol, quase na esquina da rua de São João, caminhando, seguro pelas mãos de meu pai, até a residência de minha avó Marcelina na rua Cândido Ribeiro entre a Rua Grande e a de Santana, para aulas na escola das irmãs Varelas. O esforço que eu fazia na tentativa de acompanhá-lo, com meus passos curtos em comparação com os deles, larguíssimos, não me incomodava. Antes, aumentavam minha admiração pelos passos do gigante. Poxa, quando eu crescer vou andar assim também, eu vinha repetindo comigo mesmo.
Um hábito, já antigo quando eu tive consciência de estar no mundo, bem revelador do relacionamento dele com os filhos, que não era feita, no entanto, de muitas conversas, era o de, perto da hora de sua chegada para o almoço por volta das 11 horas (almoçava-se então mais cedo) tomarmos banho a fim de aguardá-lo. Então, quando ele entrava em casa, aquela fieira de meninos corria até ele ainda no terraço da casa do Monte Castelo e, em completo alvoroço, começava a gritar, todos ao mesmo tempo: quero beijar, quero beijar. Então, um a um, o beijávamos no rosto e ele a nós e à sua mulher, minha mãe.

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