9 de setembro de 2007

Os mortos ausentes

Jornal O Estado do Maranhão 
Acabo de saber da morte de Luciano Pavarotti, um dos cantores líricos mais populares do século XX, grande intérprete de Donizetti, Puccini e Verdi. Sua popularidade mundial decorreu em parte de suas apresentações na Copa do Mundo da Itália em 1990, quando cantou o hino oficial da competição, a bela ária Nessun Dorma, da ópera inacabada Turandot, composta por Puccini, com libreto escrito por Giuseppe Adami e Renato Simoni com base na obra teatral homônima de Carlo Gozzi.
Seus últimos momentos, ele os passou em casa. Acometido de um câncer de pâncreas tinha consciência da proximidade da morte e preferiu terminar seus dias e partir ao encontro do “nada definitivo” de Epicuro, que não há de ser temido, em seu próprio lugar, consolado não pelo “desconsolo do Eclesiastes”, como dizia o viúvo Machado de Assis, mas pela presença dos que lhe eram caros e o amavam e o amaram até o fim, e pela certeza de ter vencido a eterna guerra da busca pela felicidade.
Esse morrer em casa, em cama familiar, pouco vemos no mundo urbano moderno. Hoje morremos em hospitais, sozinhos, em ambientes desconhecidos, deprimentes, frios e indiferentes, sem nada de nosso, sem um sorriso amigo, embora triste, sem uma lágrima a rolar nos rostos em volta e no nosso, em verdade sem mesmo um rosto em que lágrimas possam rolar, sem uma única mão para apertar, longe de um protetor, longe de nossos familiares, longe dos seres amados, longe de nossas lembranças, longe de nossos arrependimentos, longe de nossos erros e acertos, longe de tudo, longe de nós mesmos, pois é reflexo condicionado sedar pacientes de UTI por qualquer coisa e por nada, entupi-los de tubos infectados pelo descontrole da infecção hospitalar, matá-los antes de morrerem, quando lhes tiramos a consciência, tornando-os reféns de desconhecidos atarefados e apressados demais, e interessados de menos em olhá-los com interesse humano. Ninguém mais tem a oportunidade se despedir da vida nem nos é oferecida uma última escolha. A morte foi exilada na região hostil constituída pelos hospitais. Tornou-se um inconveniente que não deve nos desviar um minuto da imperiosa necessidade de ganhar dinheiro e manter o status social, é acontecimento cuja proximidade deve ser evitada ou que tem de ser rapidamente afastado da mente consciente, logo após o velório, este também banido das residências, como se não se pudesse morrer onde se vive ou não houvesse morte de fato, de tal forma que as novas gerações crescem sem nunca presenciá-la, sem quase poder expressar sua dor pela perda ou olhar a face do morto. Os mortos estão ausentes.
Quando não era ainda assim, lembro de ter tido contato com a grande desconhecida muito cedo, em 1956, contando eu não mais de 8 anos de idade. Durante os distúrbios políticos decorrentes da eleição José de Matos Carvalho – pessoa de extrema simpatia e gentileza que vim a conhecer muitos anos mais tarde em Brasília – para governador do Estado, Orestes Lima Pereira, casado com uma prima de minha mãe, atingido por um tiro de fuzil, por ter inadvertidamente entrado em zona de confronto entre forças legalistas e tropas policiais rebeladas, morreu nas imediações do Palácio dos Leões, naquela hora ameaçado de invasão. O velório foi realizado em sua casa na rua da Cruz, creio. Pois ali, vendo o corpo inerte de um pai de família que deixava a viúva com uma dezena de filhos na orfandade – aspecto do drama sempre presente em minha lembrança desde então, com as ressonâncias de tragédia grega do nome do morto – a idéia abstrata da morte de repente se fez real, concreta. Pude então intuir, sob o impacto da impressão angustiante do momento, o motivo de tanta tristeza dos parentes e amigos, o significado de morrer e o de dizer-se nunca mais, nunca mais...

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