19 de março de 2006

Alma em campo

Jornal O Estado do Maranhão

O conhecimento da alma humana
passa por um campo de futebol

Albert Camus

A Copa do Mundo estará de volta em três meses. O Brasil é o favorito da competição porque nenhum país se igualou ao nosso, até agora, na capacidade de produzir, com tanta freqüência, tantos jogadores com tantas habilidades. Enquanto, no Mundial, de outras equipes se pergunta “quem é o craque deles?”, escasso craque, do Brasil se pode perguntar “quem não é craque nesse time?”. Nenhum otimismo sobre as nossas chances de mais uma vez ganhar o título é exagerado, com a ressalva de ser justamente a capacidade do futebol de surpreender uma de suas mais apaixonantes características. Aliás, esse é um dos poucos esportes capaz de oferecer aos mais fracos chances efetivas de vitória contra os mais fortes, conferindo-lhe a distinção de ser de fato democrático.
Se examinarmos nossa participação em Copas do Mundo, veremos que nem sempre os brasileiros estiveram confiantes como estão agora. Até 1958, ano do primeiro título mundial, tínhamos complexo de vira-lata, como bem disse Nelson Rodrigues. Era unanimidade nacional a afirmação de os outros serem superiores a nós. No entanto, nada justificava o pessimismo. Nos três Mundiais anteriores, o Brasil fora o terceiro colocado em 1938, o segundo em 1950, e tivera participação razoável em 1954, perdendo para o bicho-papão da época, a Hungria. Apesar disso, o desânimo era grande entre os torcedores e na imprensa. Quando naquele mesmo 1958 os jogadores brasileiros partiram para a disputa na Suécia, foi ainda Nelson Rodrigues quem afirmou que o exílio da Seleção terminara.
Apesar de todos os títulos, naquele ano e em mais quatro (1962, 1970, 1994 e 2002), a vira-latice não foi de todo superada. Basta ver a opinião da imprensa e dos comentaristas de mesa redonda de televisão, às vésperas de todas as Copas. Os favoritos são Portugal (eterna aposta de Pelé), Espanha, Holanda, Afeganistão, Iraque, Japão, Botsuana, Togo, qualquer um, menos o Brasil. Essa atitude é freqüente em meios esquerdistas, para quem o esporte continua sendo o ópio do povo, e entre pseudo-intelectuais. Há destes que torcem o nariz para crônicas sobre futebol, sem conhecer, talvez, seu papel na construção de nossa identidade nacional, apesar de sua origem inglesa.
Agora, a Entre Livros, prestigiosa revista mensal sobre letras e artes, traz como assunto de capa essa paixão brasileira e diz que “nova produção ensaística e literária mostra que escritores e intelectuais brasileiros por fim aprenderam a bater escanteio”. De fato, com poucas exceções, como as de Gilberto Freyre, Mário Filho (irmão de Nelson), José Lins do Rego e não muitos outros, os intelectuais no Brasil, o país do futebol, por futebol não se interessaram muito durante o século XX. Nos últimos anos, porém, houve mudanças. Sob a influência do antropólogo Roberto da Matta e do seu livro Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira, foi criado em 1990 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Uerj o Núcleo de Sociologia do Futebol que formou o Grupo de Pesquisa Esporte e Cultura. A partir daí, a produção acadêmica sobre o esporte cresceu, contando ainda com o apoio do Museu Nacional, instituição onde Matta faz pesquisas na área da sociologia.
Como resultado da mudança, podemos, hoje, ler, sobre futebol, textos dos melhores escritores brasileiros como João Ubaldo Ribeiro, Luís Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar, Renato Pompeu e Roberto Torero, e, ainda, dos mais antigos Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond,Vinicius de Moraes e João Cabral, o que talvez ajude a (des)torcer alguns narizes, levando seus donos a torcer sem dores de consciência e a mostrar, de torcedor a alma, cujo conhecimento, como disse com acerto Camus, passa por um campo de futebol.

12 de março de 2006

José Aniesse

Jornal O Estado do Maranhão

Na Quarta-Feira de Cinzas, fomos, parentes e amigos, levar o corpo de José Aniesse Heickel Sobrinho ao cemitério, onde, ainda perplexos com o inesperado de sua morte, nos despedimos do querido amigo, mas não das lembranças que ficarão em nossas mentes e corações até o momento de cumprirmos também o nosso destino inexorável de retorno ao pó. Para muitos, a vida dele não se encerra com o ritual de despedida. Haverá nova e melhor existência num paraíso e nisso vai um consolo para os que ficam pesarosos, todavia crentes num renascimento. Outros, como eu, gostam de pensar que vivemos enquanto sobreviverem naqueles com quem tivemos alguma coisa em comum, e em nossos filhos e netos, a memória do que fomos na vida. Essa, penso eu, é a imortalidade essencial. Se, de fato, for assim, então ele tem, desde já, essa garantia de não morrer nas lembranças de todos os que o conheceram.
Lembranças capazes de me fazer ver no seu féretro, durante o velório, não um homem que nasceu em 1948, ano do meu próprio nascimento, com diferença de poucos meses, mas um menino portando orgulhosamente duas cartucheiras com brilhantes revólveres, um verdadeiro caubói, pronto a sacar suas armas e eliminar os malfeitores, como faziam nossos heróis dos filmes de bangue-bangue e das histórias em quadrinhos que enchiam nossa imaginação de crianças. Organizávamos então, no Monte Castelo, em sua casa, na minha ou nas de outros pequenos companheiros, campeonatos de botão nunca levados até a partida final, por causa da desconfiança de todos em relação aos juízes. Estes, do ponto de vista de cada um de nós, sempre beneficiavam os nossos adversários. O jeito era recolher os atletas à solidão da concentração nas latas de pastilhas Valda, forradas com flanelas, a fim de evitar arranhões nos botões e preservar suas habilidades, e esperar pelo próximo torneio. Jogávamos bolinha e chucho no quintal de terra da vizinha da casa de meus pais, dona Antônia, onde havia uma ramosa mangueira com suas cheirosas frutas, e, aos domingos, futebol de salão no SENAI, com a sempre compreensiva permissão do diretor, Raimundo Teixeira. Nessas brincadeiras e em tudo mais, José Aniesse era intenso, contudo alegre e afetivo, com aquele jeito de andar como quem está sempre a ponto de dar um abraço amistoso.
Havia algo em que ele era superava todos nós, quando crescemos um pouco. Era na vida amorosa. Enquanto a turma toda penava dolorosamente para se livrar da timidez e conseguir uma namorada, uma única, mesmo por brevíssimo tempo, ele, com uma facilidade que espantava todo mundo, fazia coleção delas. Na época, um dos mais famosos galãs de Hollywood, uma espécie de Brad Pitt ou Leonardo di Caprio da época, era Tony Curtis. Pois assim ele era às vezes chamado, pelas conquistas e pela semelhança física com o ator. Consolávamos a nós mesmos da inveja do sucesso do nosso amigo dizendo: Também, ele dirige carro e a gente não! É óbvio que não queríamos reconhecer seu poder de sedução. Além disso, ao dar essa explicação não percebíamos a injusta acusação de as mulheres serem interesseiras.
Já adultos, não tivemos a oportunidade da convivência freqüente ou próxima, seguimos em diferentes direções na vida. Andei por outras terras durante quinze anos.  Mas permaneceu sempre entre nós um relacionamento de verdadeiros amigos, feito dessas lembranças acerca daquele bom pedaço de nossas vidas de meninos felizes, época que recordávamos quando nos encontrávamos.
Por certo, a morte de um amigo ou de um parente nos rouba um pouco de vida, pelas referências perdidas e mutilação de certas experiências compartilhadas, transformadas de repente em apenas metade do que eram. Mas, as restantes poderão servir como um diálogo com o morto. Dessa forma, ele não estará de todo ausente.

Machado de Assis no Amazon