13 de agosto de 2006

Honesto desconhecido

Jornal O Estado do Maranhão


Em meio a 24 deputados da Assembléia Legislativa de Rondônia, houve um solitário que não se envolveu nas falcatruas dos três Poderes, há pouco noticiadas. Ninguém sabe seu nome, é um desconhecido. Se tivesse entrado na dança seria pop star, porque notícia boa é notícia ruim. Convoco o caro leitor a uma campanha nacional para levantar fundos destinados a erguer uma estátua a esse Honesto Desconhecido. Não se fazem estátuas do Soldado Desconhecido, em lembrança dos homens que deram a vida pela pátria, anônimos que, se não o fossem, poderiam ter os nomes colocados em ruas, avenidas, praças, rodovias? Não se estendem, de outro ponto de vista, menos nobres, tapetes vermelhos para gente que, dado o tempo suficiente, passa de ladrão do dinheiro público a benemérito da sociedade? Não se elegem para fazer leis especialistas em descumpri-las? Não se chama de excelência os que não o são? Não se aplaudem os golpistas federais? Qual a razão de não se fazer tão modesta homenagem como essa, não ao deputado de exceção, propriamente, mas a todos os seus companheiros de ousadia, também desconhecidos?
A imprensa, pelo menos fora do estado, não deu uma palavra que o pudesse individualizar ou a polícia escondeu sua identidade, talvez temendo por sua segurança. Dizem ser a virtude, muitas vezes ou quase sempre, tão-só o produto do medo de ser flagrado com a boca na botija.  A muitos virtuosos faltaria não a vontade de delinqüir, faltaria apenas a coragem de participar da gandaia daqueles a sua volta e enfrentar com indiferença as conseqüências do crime na improvável hipótese de a justiça funcionar e puni-los.  Que seja, é da natureza humana, tanto a vontade quanto o medo. Mas, vamos admitir que o Honesto Desconhecido de Rondônia tenha agido daquela forma por princípios morais. Exceções sempre existem a confirmar a regra. Por que não homenageá-lo e assim homenagear todos os Honestos Desconhecidos?
Imaginem o drama desse homem acuado e angustiado. Chega na Assembléia e descobre sua condição de pária no próprio local de trabalho. Cruza no corredor com um parlamentar e não ouve resposta a seu bom dia. No seu gabinete, chama o contínuo e pede um cafezinho a fim de relaxar um pouco. O constrangido funcionário diz não poder servi-lo, por ordem superior. Quanta humilhação! O antigo motorista não dá mais atenção a seus pedidos, com medo de perder o emprego. No plenário ouve a toda hora a frase famosa: “Lá vem aquele chato de galocha”. Pensa em recorrer ao Judiciário contra a injustiça, por breves momentos apenas, pois se lembra de que, no momento, essa não é uma medida prudente em vista do pânico no Poder em vista da prisão do presidente do Tribunal. Resolve apanhar a filha na escola. Encontra a menina aos prantos: foi vaiada por alguns colegas, filhos dos outros deputados, revoltados, os filhos e os pais, com aquela pose de honesto de Honesto.
Ele e sua mulher foram incluídos em listas negras de recepções. Nas futuras, porque no momento todas estão suspensas, até passar a onda. Não recebem convite nem para chá de panela de boneca. Ele, como medida desesperada, decidiu entrar no programa de proteção a testemunhas, pois percebeu as ameaças a sua vida e da família. Não conseguiu falar com autoridade alguma em Brasília, já muito ocupada com mensalões e sanguessugas. Não estaria melhor protegido se conseguisse sua inclusão na lista de espécies de plantas e animais ameaçadas de extinção, elaborada de acordo com critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza e Recursos Naturais? Se tantas na Amazônia estão em perigo, segundo aviso freqüente dos cientistas de várias instituições de pesquisa, não haverá dificuldade em incluir naquela lista essa raridade, frágil subespécie da espécie humana.

6 de agosto de 2006

Copacabana, Brasil

Jornal O Estado do Maranhão


Foram dois anos de angústias, sobressaltos, medo, incertezas e apenas uma certeza: se fosse descoberta seria assassinada em menos de 24 horas. Aquela mulher de 81 anos de idade, que morava na ladeira dos Tabajaras em Copacabana, chamada no passado de Princesinha do Mar, e vivia exposta aos maus humores e loucuras dos freqüentadores de uma boca de fumo próxima a sua casa, tomara a decisão de filmar as atividades diárias de traficantes e viciados em drogas em frente a sua casa. Comprou uma filmadora caseira com dificuldade, pois recebe quinhentos reais por mês como aposentada, e se pôs a reunir evidências da falta da segurança que não lhe era dada pelas autoridades.
Com base nas imagens obtidas, a polícia prendeu 32 pessoas, nove delas policiais, e a mulher (não se sabe seu nome) ganhou na primeira instância do judiciário o direito de receber R$ 150 mil, como indenização pela situação de desespero em que estava por culpa do governo. Contudo se viu obrigada a deixar sua casa às pressas por causa da ameaça dos bandidos. Enfiaram-na num tal programa de proteção a testemunhas que, se fizer muito e depressa, a protegerá durante algumas semanas. Em seguida a abandonará à própria sorte ou azar de querer consertar não o mundo, tão só a rua onde mora num bairro carioca em outros tempos agitado, mas não violento.
Não terminou aí a história que se revelaria kafkiana mais adiante e revelaria o tipo de justiça dispensada no Brasil. A procuradoria do Executivo recorreu da decisão com o argumento amoral e imoral de homens práticos cheios de razões de Estado, acostumados a olhar os cidadãos como estorvos a suas ações de representantes do Iluminismo tropical, de que o pagamento estimularia outras vítimas da violência – a verdadeira causa do problema, claro, a omissão estatal, não foi mencionada – a ir ao judiciário com pedidos semelhantes, o que levaria ao desembolso de imensas quantias de recursos públicos que, pode-se deduzir, não poderiam mais ser destinadas a sanguessugas. Os desembargadores da 16ª Câmara Cível reformaram a sentença da primeira instância e ainda condenaram a mulher ao pagamento das custas processuais no valor de R$2 mil. Se a ação de indenização não tivesse sido proposta pela Defensoria Pública, a octogenária, que solicitou gratuidade no processo, teria de desembolsar a quantia, a ser obtida do nada, por milagre da multiplicação de cédulas de reais.
Vejam o argumento da desembargadora Simone Chevrand, moradora com certeza de uma rua sem bocas de fumo: “Não se pode deixar de evidenciar que, ao assim agir, a apelada assumiu o risco das conseqüências daí advindas. E elas vieram, tanto que acabou por necessitar ser incluída em programa de proteção à testemunha”. Tamanho desprezo pela justiça e pelo sofrimento alheio, expresso por uma juíza, diz muito ou mesmo tudo sobre nosso arranjo social.
Por certo, considerando a injustiça de nossa justiça o risco foi altíssimo. Em que outro lugar, por mais injusto e opressor que fosse, um comum do povo arriscaria sua vida com o fim de fazer o trabalho da polícia omissa, forneceria as provas materiais contra os criminosos e acabaria, como recompensa, sendo punido, depois de ter comprado o equipamento de investigação com os próprios e minguados recursos? Não em uma sociedade solidária, preocupada em bem administrar a justiça e proteger seus membros mais fracos. Sorte teve de não ser presa, a importuna que ousou perturbar o bom andamento do judiciário e ameaçar o equilíbrio das finanças públicas com demandas sem pé nem cabeça ou com pés de barro e cabeça oca.
E assim la navetta brasiliana va, à deriva, mas certa no rumo de lugar nenhum enquanto as excelências, homens e mulheres da estirpe da doutora Simone , gastam seu latim macarrônico.

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