2 de fevereiro de 2003

Armadilhas

Jornal O Estado do Maranhão 
Perguntam-me se não me falta assunto para escrever todas as semanas. Falta, claro, algumas vezes. Acontece com todo mundo que escreve. Ninguém esteve, está ou estará livre dessa pane periódica de idéias. Em algum momento ela vai atacar. É uma situação semelhante à do sujeito chamado a dizer alguma coisa, as famosas “breves palavras para não me alongar”, de duração, não raro, de no mínimo meia hora. De repente, lhe dá um branco. Como tem de dizer alguma coisa, ele diz. Tem início aí uma pequena tragédia. Ele começa a soltar as primeiras coisas que lhe vêm à cabeça, a dar voltas, a repetir-se, a dizer que vai terminar logo, mas, de verdade, não diz coisa nenhuma nem sabe como terminar. Exceto no caso de o “discurso” ser dirigido a seu chefe na festa do seu aniversário. Aí o discursador sabe direitinho os elogios a fazer. Nesta última situação, não falta matéria para ele deitar falação à vontade.
Quem escreve, porém, precisa ter cuidado. O vento leva a palavras, mas não a palavra escrita. Esta, se não dura tanto tempo, especialmente se quem a lança no papel não é um Cervantes, Shakespeare, Dante ou Camões, é, mesmo assim, mais durável do que as vinte e quatro horas do dia de sua escrita. Será, durante algum tempo, a prova de que o dito foi incontestavelmente dito.
Há uma fonte quase inesgotável de temas à disposição imediata do cronista atento. É a imprensa. Todos os assuntos marcam encontro nesse lugar. Nada lhe escapa: amores, ódios, ciúmes, crimes, lutas pelo poder, inveja, amizade, injustiça, justiça, assassinatos, vaidades, roubos, subornos e tudo mais do humano viver e morrer.
Outro dia, por exemplo, li uma notícia sobre um homem, humilde cidadão cumpridor de seus deveres, mas não pagador de impostos porque não tinha renda para tal, bom pai de família, humilde, trabalhador, honesto. Ele foi a uma delegacia de polícia registrar uma queixa sobre qualquer coisa sem nenhuma importância do ponto de vista do delegado, mas muito importante para ele e sua família. Acabou preso, sob a acusação de ser um perigoso traficante de quem a polícia andava atrás havia muito tempo. Seu azar foi ter o mesmo nome do bandido.
Ora, seria muito fácil ver que o preso não era o traficante pela verificação da filiação de ambos, ou pelas suas impressões digitais. Mas, naturalmente, o delegado supôs estar diante de um documento de identidade falso, de mais uma prova de culpa do acusado. Além de traficante, era um falsário, já se via!
Depois do homem ter passado algumas noites de terror na delegacia, sem poder dormir porque as condições de higiene do local não lhe permitiam, concluíram ser ele inocente. Começou, então, a segunda parte dessa história kafkiana. Apesar do reconhecimento do erro pelas autoridades policiais, ele não foi solto imediatamente. Faltava um papel qualquer de um juiz ausente. O papel não aparecia, muito menos o juiz. O resultado foi mais tempo de prisão arbitrária do inocente, até o delegado render-se ao bom senso, que lhe mandava soltar o humilhado.
Situações como essa permitem-nos perceber a razão de o adjetivo kafkiano ser tão popular como sinônimo de acontecimentos sem um sentido aparente. Uma das características da obra literária de Kafka, escritor tcheco de língua alemã, por certo um dos maiores do século XX, é o tratamento de absurdos desse tipo, num tom formal e frio, num estilo preciso, simples e clássico, como se estivesse tratando de fatos naturais do cotidiano e não de engrenagens sinistras que esmagam o cidadão comum. Desse contraste entre forma e conteúdo, nasce a força da literatura de Kafka.
É inevitável a comparação da situação do pobre homem injustamente preso com a de uma personagem do romance do tcheco, O Processo, logo na frase de abertura: “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.”
É isso que se vê diariamente. De uma forma ou de outra, nós todos vivemos também presos a armadilhas e à violência irracional sem remédio.

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