10 de junho de 2003

As crônicas

Jornal O Estado do Maranhão 
Fazem-me perguntas, alguns leitores, sobre a natureza da crônica e sobre os bons cronistas. A resposta não é fácil. Para início de conversa sem exigência de terno e gravata, conversa idealmente descontraída, sem muita sisudez, como um domingo no circo, digo que a mim parece não haver uma definição amplamente aceita a respeito desse tipo de prosa. Tal indefinição tem levado muita autoridade no assunto a classificar como crônica tudo aquilo que nós chamamos assim.
Do ponto de vista da etimologia, a palavra tem origem no latim chronica, chronicorum, “relato de fatos em ordem temporal, narração de histórias segundo a ordem em que se sucedem no tempo”. Há, porém, sutilezas nos significados dela, adquiridos desde sua incorporação, no século XV, à nossa “Última flor do Lácio, inculta e bela”, para ficar com a comum expressão, herdada do parnasiano Olavo Bilac, usada em referência a nossa língua, o que bem mostra a força desse poeta de verdade e a verdade de outro lugar-comum, esse de ser o chavão de agora a novidade de expressão de ontem.
O excelente Dicionário Houaiss da língua portuguesa nos diz da crônica o seguinte: é a “coluna de periódicos, assinada, com notícias, comentários, algumas vezes críticos e polêmicos, em torno de atividades culturais (literatura, teatro, cinema etc.), de política, economia, divulgação científica, desportos etc., atualmente também abrangendo um noticiário social e mundano”. Vê-se, daí, a maleabilidade dela, que pode ir do futebol ao teatro, de Sófocles ou Ésquilo a Ronaldinho, do prefeito de uma cidadezinha do interior do Amazonas a Napoleão Bonaparte, de Adam Smith ao padeiro ou o leiteiro (Minha impressão é de estas duas profissões só existirem hoje como personagens de programas humorísticos de televisão).
É esse falar sobre tudo sem compromisso explícito, com falsa ligeireza, sem excessiva seriedade, a característica mais agradável de uma das vertentes da crônica. Em verdade, muitas vezes ela fala de coisa nenhuma. Tomem os grandes cronistas brasileiros, Machado de Assis, Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, sem esquecer dos maranhenses, que os temos em abundância, de raras qualidades. Inúmeros de seus mais belos textos falam de nada, contam uma não-história, vagueiam sem direção aparente, mas, ao fim de sua leitura, podemos dizer quase com surpresa: – Esse troço ficou bonito, tem poesia!
Todavia, mais de meu agrado é a crônica sobre as coisas miúdas, cotidianas, comuns, prosaicas, banais, corriqueiras e tudo o mais considerado ordinariamente indigno de preocupações elevadas, de reflexões originais, mais apropriadamente tratadas no ensaio, romance, história, antropologia, sociologia, economia.
É na aparente trivialidade da crônica que se podem encontrar, como se encontram, em incontáveis ocasiões, um bocado da poesia do existir, da beleza insuspeitada dos fatos e, até mesmo, do sentido – se é que existe algum – da própria vida, primeira face de uma moeda que tem a morte na outra. Aliás, acho que a grandiosidade dos acontecimentos, como também das pessoas, é apenas uma ilusão. Não existem grandes fatos e grandes homens, mas uma reunião quase imperceptível de pequenos episódios que nos dão, assim concatenados, a sensação de serem monumentais e de contarem com homens e mulheres excepcionais e superiores. São parte da primitiva e eterna mitologia dos povos.
Não nego a existência de talentos verdadeiros, capacitados a inovar, mostrar novos caminhos e conduzir as nações. Digo apenas, com Ortega y Gasset, que o homem é ele mesmo e suas circunstâncias. Cada um de nós, sem uma única exceção, pode ser grande em algumas situações e pequeno em muitas outras, como se vê todo dia.
  Por que eu estava mesmo falando sobre nossas circunstâncias? Ah, sim, porque alguns leitores me perguntaram sobre crônicas e cronistas. Pois bem, afora os maranhenses, Cony, entre os vivos, e Machado de Assis, entre os mortos, são os meus preferidos. Meu gosto, porém, não é importante!

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