25 de julho de 2010

Meu mal, meu bem


Jornal o Estado Maranhão
    
Quem teve a paciência de me ler quinze dias atrás, no dia 11 deste mês de julho, haverá de se lembrar de minhas considerações acerca do potencial de crueldade – e de bondade, para não sermos injustos com a nossa própria espécie – do ser humano. Alguns leitores me enviaram mensagens em que eu notei certo espanto com minha visão do assunto, como se eu fosse descrente da humanidade, percepção bem longe da verdade. Minha motivação fora o chocante assassinato de Eliza Samudio a mando, tudo indica no momento, do goleiro do Flamengo, Bruno, crime executado por seus comparsas e tão chocante quanto o da menina Isabela Nardoni, assassinada pelo próprio pai e pela madrasta (lembram-se ainda deste caso?).
     Eu dizia então: “A afirmação de serem os humanos capazes das maiores baixezas e nobrezas não é menos verdadeira por ser lugar-comum. [...] Chefes nazistas eram capazes de se emocionar verdadeiramente com a música de Wagner [...]. Terminadas as audições voltavam tranquilos e embevecidos à administração dos campos de extermínio de judeus, tarefa a que se dedicavam com método e entusiasmo, sem dores de consciência [...]”. Isso é a nossa história, um impulso em direção ao mal, coexistente com o bem, que só é domado pela necessidade de sobrevivência do grupo, das aglomerações. Civilizar-se é, então, estabelecer regras de convivência na sociedade. Elas devem produzir não exatamente igualdade de resultados, porque habilidades e talentos são desigualmente distribuídos na população, mas de oportunidades, incluídas aí as de sermos livre de ameaças à vida.
     Em17 de julho vejo na Folha de S. Paulo uma entrevista com Gonçalo Tavares, escritor português de 39 anos, nascido em Angola e considerado o grande nome da nova geração da literatura de Portugal. Dele dizia José Saramago que não tinha direito de escrever tão bem aos 35 anos. Seu romance Jerusalém está na lista europeia dos “1001 livros para ler antes de morrer – um guia cronológico dos mais importantes romances de todos os tempos”. Foi vencedor dos prêmios José Saramago (2005); Branquinho da Fonseca, da Fundação Calouste Gulbenkian (2002); Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores; Conto da Associação Portuguesa de Escritores (2007). Tem 24 livros publicados, o primeiro em 2001 apenas.
     Seu romance A máquina de Joseph Walser será lançado pela Companhia das Letras nas próximas semanas no Brasil, onde ele já tem outros livros por editoras daqui. Ao falar à Folha sobre o livro, parte de uma tetralogia chamada o Reino, ele diz: “Nenhum de nós está fora do barco da maldade”, sentimento de que, afirma com razão, o ser humano é potencialmente uma máquina, mas de bondade também.
     Essa visão não implica descrença na humanidade. Representa em verdade o reconhecimento de que são humanos comportamentos classificados por nós como de animais. Vejam agora o paralelo das palavras de Gonçalo com minha afirmação sobre os nazistas: “Uma coisa que nos espanta é quando vemos uma biografia sobre Stálin ou Hitler e outras pessoas terríveis e percebemos que elas se apaixonaram, que havia quem gostava delas, que tinham gestos carinhosos”.
     Minha intenção é dizer isto. Assunto como esse, com implicações na nossa visão do mundo e da vida, aparece com frequência como tema literário, é comum entre os grandes romancistas, como o provam os muitos livros que o adotam em todas as literaturas. Não é propriedade de ninguém, pertence a uma espécie de fundo comum ao qual não precisamos contribuir para dele fazer retiradas. Está à disposição de todos, tem alcance universal. Tratado pelos grandes escritores pode servir de matéria prima a grandes obras. Este parece ser o caso de Gonçalo Tavares, segundo a crítica e seus leitores. Pretendo conferir em breve, quando o livro estiver nas nossas livrarias ou à venda na internet. A ter-se fé numa afirmação de Saramago, quem ler esse jovem romancista agora, estará lendo um ganhador, daqui a duas décadas, do prêmio Nobel de Literatura. Se não, em menos tempo.
     Tudo que é estranho é humano também.

11 de julho de 2010

Direito à vida


Jornal o Estado do Maranhão

     Combinam-se, no assassinato da ex-namorada do goleiro Bruno, do qual ele é acusado, com razão, parece, fatores culturais e não culturais, na explicação de um crime de grande violência mas não raro e não o mais chocante de quantos o noticiário policial diário nos informa.
     O primeiro fator é certamente a mentalidade machista, que ainda tem larga aceitação na sociedade brasileira. Assim, a mulher, aos olhos de enormes e representativas faixas da população – masculina e feminina – é um ser feito com o fim de servir aos machos da espécie em todas as coisas e mais uma.
     A essa mentalidade deve ser adicionado, neste caso tão em evidência agora, o status do jogador Bruno como uma pessoa de sucesso, crescente fama e perspectiva de continuado desenvolvimento profissional e, portanto, de elevadíssimo nível de renda e capacidade de influenciar pessoas. Ou talvez fosse melhor dizer que a operação não é de adição, mas de multiplicação ou potenciação. Tais componentes servem, quase invariavelmente, para dar a muitas pessoas nessa posição a sensação de imunidade às imposições do sistema de justiça o que, de qualquer maneira, não é uma suposição infundada, consciente ou não, em vista da ineficiência, da lerdeza, da burocracia, do viés em favor de quem tem dinheiro e da injustiça da justiça.
     Como Bruno mesmo disse, segundo a imprensa, à ex-namorada e mãe de seu filho de quatro meses, em nome de quem ela pedia o reconhecimento de paternidade e pensão alimentícia, ele a mataria e ninguém se importaria, algo bem plausível por se tratar de uma garota de programa. A moça já o tinha denunciado à polícia sem que nenhuma providência tivesse sido tomada, como se ela não merecesse proteção do Estado. Imagino os risinhos de deboche de quem recebeu a queixa. Então essa aí tá querendo proteção. Merece é umas porradas! Não funcionam assim as coisas? A Lei Maria da Penha pegou ou não?
     Acima e além disso tudo, no entanto, encontra-se algo mais forte, mais consistente e mais impositivo: a natureza humana no que ela tem em comum com os outros seres vivos, se for possível, mesmo, falar dela como especificamente humana, separada da dos outros. Dela, da natureza, não somos nós parte necessária, não contingente? Como sobreviveríamos num mundo a que não pertencêssemos?
     A afirmação de serem os humanos capazes das maiores baixezas e nobrezas, em todos os graus e de todos os modos, de encarnarem deus e o diabo, o bem e o mal, não é menos verdadeira por ser lugar-comum. (Incluo no “mal” os psicopatas iguais a Bruno, como incluo no “bem” as pessoas incapazes de matar uma mosca, como se diz). É assim mesmo, o espectro que vai de um extremo a outro é amplo entre as pessoas, como o é de uma pessoa em relação a ela mesma. O doutor Jekyll e o senhor Hyde.
     Chefes nazistas eram capazes de se emocionar verdadeiramente com a música de Wagner por suas ressonâncias de um suposto espírito germânico, mas também com Mozart, Beethoven e outros grandes compositores da música clássica. Terminadas as audições voltavam tranquilos e embevecidos à administração dos campos de extermínio de judeus, tarefa a que se dedicavam com método e entusiasmo, sem dores de consciência, sob o escudo do “cumprimento do dever”.
     Quantos homens e mulheres virtuosos, santos indiscutíveis, reconhecidos por suas virtudes não propriamente celestiais, mas terrenas, não se consumiram de remorsos por atos que perante sua própria consciência eram baixos e repulsivos e diante dos outros causaram tanto espanto quanto os atos chocantes de Bruno nos causam neste momento? Quantos santos não são diabos e quantos diabos não são santos?
     Nada do exposto aqui, é evidente, justifica o crime. Este é universal e universal nossa repulsa. Temos a obrigação de lutar pelo aperfeiçoamento institucional que possa proteger a vida em sociedade. O processo civilizatório é feito assim e por isso (permitam-me o antropocentrismo) o homem está no topo da vida na Terra, pois, tendo desenvolvido consciência de si mesmo e senso moral sabe que não só os fortes têm direito à vida.

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