25 de outubro de 2014

Depoimento de Youssef



23 de outubro de 2014

O herói sem caráter


Dora Kramer

Remexendo na gaveta de recortes de jornais - valorosos e não raro mais úteis que o Google - encontro um texto escrito em 7 de setembro de 2010. Apenas coincidência a data da independência. O título, Macunaíma. O herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade.

Faltava pouco menos de um mês para o primeiro turno da eleição em que o então presidente Luiz Inácio da Silva fazia o "diabo" e conseguiria na etapa final realizada em 31 de outubro eleger uma incógnita como sua sucessora.

Deu todas as garantias de que a chefe de sua Casa Civil, Dilma Rousseff, seria uma administradora de escol para o Brasil. Não foi, conforme comprovam os indicadores de um governo que se sustenta no índice positivo do emprego formal, cuja durabilidade depende do rumo da economia.

Como ex-presidente, Lula agora pede que se renove a aposta. Sem uma justa causa, apenas baseado na ficção por ele criada de que a alternância de poder faz mal à democracia brasileira. A propósito de reflexão a respeito da nossa história recente, convido a prezada leitora e o caro leitor ao reexame daquele texto.

"Só porque é popular uma pessoa pode escarnecer de todos, ignorar a lei, zombar da Justiça, enaltecer notórios ditadores, tomar para si a realização alheia, mentir e nunca dar um passo que não seja em proveito próprio?

Um artista não poderia fazer, sequer ousaria fazer isso, pois a condenação da sociedade seria o começo do seu fim. Um político tampouco ousaria abrir tanto a guarda. A menos que tivesse respaldo, que só revelasse sua verdadeira face lentamente e ao mesmo tempo cooptasse os que poderiam repreendê-lo tornando-os dependentes de seus projetos dos quais aos poucos se alijariam os críticos por intimidação ou cansaço.

A base de tudo seria a condescendência dos setores pensantes e falantes; oponentes tíbios, erráticos, excessivamente confiantes diante do adversário atrevido, eivado por ambições pessoais e sem direito a contar com aquele consenso benevolente que é de uso exclusivo dos representantes dos fracos, oprimidos e assim nominados ignorantes.

O ambiente em que o presidente Luiz Inácio da Silva criou o personagem sem freios que faz o que bem entende e a quem tudo é permitido - abusar do poder, usar indevidamente a máquina pública, insultar, desmoralizar - sem que ninguém consiga lhe impor paradeiro, não foi criado da noite para o dia. Não é fruto de ato discricionário, não nasceu por geração espontânea nem se desenvolveu por obra da fragilidade da oposição.

Esse ambiente é fruto de uma criação coletiva. Produto da tolerância dos informados que puseram seus atributos e respectivos instrumentos à disposição do deslumbramento, da bajulação e da opção pela indulgência. Gente que tem vergonha de tudo, até de exigir que o presidente da República fale direito o idioma do País, mas não parece se importar de lidar com quem não tem pudor algum.

Da esperteza dos arautos do atraso e dos trapaceiros da política que viram nessa aliança uma janela de oportunidade. A salvação que os tiraria do aperto em que estavam já caminhando para o ostracismo. Foram ressuscitados e por isso estão gratos.

Da ambição dos que vendem suas convicções (quando as têm) em troca de verbas do Estado.

Da covardia dos que se calam com medo das patrulhas.

Do despeito dos ressentidos.

Do complexo de culpa dos mal resolvidos.

Da torpeza dos oportunistas.

Da superioridade dos cínicos.

Da falsa isenção dos preguiçosos.

Da preguiça dos irresponsáveis.

Lula não teria ido tão longe com a construção desse personagem que hoje assombra e indigna muitos dos que lhe faziam a corte não fosse a permissividade geral. Se não conseguir eleger a sucessora não deixará o próximo governo governar. Importante pontuar que só fará isso se o País deixar que faça; assim como deixou que se tornasse esse ser que extrapola".

20 de outubro de 2014

O DITO E O FEITO: ALGUNS FATOS QUE VOCÊ TALVEZ NÃO CONHEÇA

Por Luiz Alfredo Raposo

Para os mais jovens!

          A tática preferida do PT para ganhar eleições tem sido a demonização do governo de Fernando Henrique (1995-2002). Vamos ver, então, algumas coisas que aquele governo fez. E como se comportou o PT. Sim, o PT também atuou naquele período! Na democracia há um papel para o governo, e há outro papel para a oposição. Governo e oposição existem para trabalhar, cada um no seu papel, pelo bem do povo. O papel da oposição (sobretudo se é amiga do povo!) é fiscalizar e procurar impedir (p. ex., pelo voto no Congresso, ou pela ação junto à opinião pública), que medidas contrárias ao povo sejam tomadas pelo governo. E apoiar as medidas favoráveis. Oposição ao governo, sim, ao povo, nunca! Dito isso, vamos aos fatos:

1. o governo FH, entre 1995 e 1998, para proteger o real e manter a inflação lá em baixo, não hesitou em fechar alguns dos maiores bancos privados brasileiros (Banorte, Econômico, Nacional, Bamerindus etc.)! E o PT ficou contra, isso é papel de um partido amigo do povo?!

2. o governo FH, em 1996, botou todas as crianças na escola (lei do Fundef)! Antes não tinha vaga para milhões de crianças mais pobres. E o PT ficou contra, isso é papel de um partido amigo do povo?!

3. o governo FH, em 1996, fez valer geral um piso salarial para os professores da rede pública (lei do Fundef). Antes, havia uma infinidade deles ganhando muito abaixo do salário mínimo. E o PT ficou contra, isso é papel de um partido amigo do povo?!

4. o governo FH, em 1996, criou um sistema de cobrança de impostos simplificado (o Simples) para as micro e pequenas empresas. Isso facilitou a legalização de milhões delas. E trouxe a legalização (a carteira assinada) para milhões de trabalhadores, que se tornaram segurados do INSS e passaram a poder comprar a crédito. Pois o PT ficou contra, isso é papel de um partido amigo do povo?!

5. o governo FH, em 1997, criou os exames nacionais de aferição do ensino, o Provão e a Provinha. E o PT ficou contra, isso é papel de um partido amigo do povo?! Depois, esses mesmos exames, rebatizados de Enad e Enem, viraram a menina dos olhos do PT.

6. o governo FH, a partir de 1998, espalhou pelo Brasil inteiro as equipes do Programa Saúde da Família, médicos, enfermeiros, agentes de saúde atendendo perto de sua casa, programa que o PT quase abandonou. Isso é papel de um partido amigo do povo?!

7. o governo FH, em 1998, privatizou a telefonia, o que permitiu que hoje você tenha seu celular ou seu telefone fixo. Antes, telefone e, sobretudo, celular era coisa de rico. Agora, é de todos, não é ótimo? Pois o PT ficou contra, isso é papel de um partido amigo do povo?!

8. o governo FH, em 1999, enfrentou os interesses dos poderosos laboratórios farmacêuticos e tirou do papel e botou nas farmácias os medicamentos genéricos, bem mais baratos. Para obter autorização para um remédio genérico era rapidinho. No governo do PT, a autorização leva uma eternidade, isso é papel de um partido amigo do povo?!

9. O governo FH aprovou, em 2001, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que melhorou bastante a situação financeira dos Estados e dos municípios. Quer ver? Hoje é raríssimo que os servidores estaduais e municipais recebam com atraso, antes os atrasos eram comuns. Pois o PT ficou contra, isso é papel de um partido amigo do povo?

10. o governo FH, em 2001, criou o programa de bolsas socais (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás), que no final já atendia 5 milhões de famílias. E elas se lembram disso.

11. O PT ficou contra o programa de bolsas, isso é papel de um partido amigo do povo?! Falou muito num outro programa, o Fome Zero, que nunca saiu do papel. Isso é papel de um partido amigo do povo? Aí, depois de muito tempo, o PT enfim descobriu que as bolsas de Fernando Henrique eram a boa solução, juntou-as e deu-lhes um nome novo de Bolsa Família.

12. O governo FH pegou o salário mínimo em R$ 70 e, 8 anos depois, deixou em R$200. O PT, depois de 12 anos, vai deixar em R$ 724. Descontada a inflação, os aumentos do salário mínimo foram bastante parecidos: 4,3% ao ano no governo Fernando Henrique contra 5,1% ao ano, no governo do PT.

13. Ao contrário das acusações caluniosas do PT, o governo FH foi bastante limpo. Nenhum ministro, diretor de estatal, membro graúdo do PSDB foi condenado pela Justiça nem cumpre ou cumpriu pena em penitenciária. O PT diz que Fernando Henrique empurrava para debaixo do tapete, que o Procurador Geral era um engavetador. Mas então, por que o PT depois não retirou o tapete? Por que depois do “engavetador”, os quatro procuradores gerais que o PT nomeou não desengavetaram nada? Porque eram outros engavetadores? Ou porque não havia o que desengavetar? Com o PT é diferente: os mensaleiros (dirigentes do partido e até um ministro) foram condenados pela Justiça e estão cumprindo pena na penitenciária da Papuda. Os ladrões da Petrobras (entre eles um ex-diretor, nomeado pelo PT) estão presos na PF e são réus confessos. Isso é papel de um partido amigo do povo?

14. Aliás, o PT introduziu uma cepa nova de corrupção, muito mais virulenta e letal. Antes, era o roubo artesanal, de milhões de reais, feito por pequenos grupos, com medo. Obra de ladrões só ladrões. A especialidade petista é o roubo em larga escala, o roubo industrial. E a turma rouba, para o PT e para si, bilhões de reais (Petrobras: R$ 10 bilhões!), sem remorso e sem medo de ser feliz! É que são ladrões que têm uma causa como desculpa. Veja o Mensalão. Os condenados estão presos, e os militantes vão gritar, defronte das janelas: “Zé, João, Antônio, guerreiro do povo brasileiro!”.

15. O PT ganhou a presidência em 2002, prometendo que iria desfazer tudo o que o governo FH tinha feito. Não desfez nada. Ou seja, as coisas boas que o governo FH fez vieram para ficar!

16. Em particular, governo do PT continuou administrando a economia do mesmo jeito de FH. Por isso, na época de Lula, o Brasil passou bem pela crise mundial de 2008. Em seu governo, Dilma resolveu usar um jeito diferente (um jeito velho que já tinha dado errado 30 anos atrás). Resultado, a produção deixou de crescer, os preços estão subindo e empregos novos para os jovens, que é bom, não estão aparecendo. Estamos, sim, vivendo de comprar lá fora muito mais do que vendemos. E o governo está gastando muito mais do que arrecada. E a educação não melhora, a saúde não melhora e o transporte público não melhora e o governo não combate a violência que segue crescendo.

CONCLUSÃO: SUA VIDA HOJE ESTÁ IGUAL OU PIOR DO QUE HÁ 4 ANOS. E MELHOR DO QUE VAI ESTAR DAQUI A 4 ANOS, SE DILMA CONTINUAR. ELA PROMETE FAZER UM NOVO GOVERNO BEM MELHOR. MAS POR QUE NÃO FEZ LOGO? O QUE ELA PROMETE AGORA É QUE A JABUTICABEIRA VAI DAR UVA. VOCÊ ACREDITA?

SE NÃO ESTÁ SATISFEITO E TEME PELO FUTURO, O JEITO É MUDAR JÀ.

ENTÃO PENSE NOVO, FAÇA UMA APOSTA NA MUDANÇA. VOTE EM AÉCIO 45 PARA PRESIDENTE!

19 de outubro de 2014

Questão de princípio




Jornal O Estado do Maranhão

          Alguns leitores têm me confrontado por suposta implicância com o PT. Quem, no entanto, tiver a paciência de percorrer minhas crônicas desde a ascensão do partido ao poder, nelas encontrará vários elogios à política econômica lulista, apontando sua correta ortodoxia e continuidade relativamente ao governo anterior. Tal orientação petista, em paralelo a condições favoráveis às commodities brasileiras nos mercados internacionais, nos proporcionou período de tranquilidade com respeito a inflação e crescimento.
          A partir do segundo mandato, Lula iniciou o relaxamento das vigilâncias fiscal e monetária, mudança levada adiante por Dilma. Começamos, assim, a sofrer ameaça do populismo econômico de que resultaram as fortes pressões inflacionárias de agora. Era a volta da ideia obsoleta, àquela altura já completamente desacreditada, a não ser nos países bolivarianos, de que uma inflação um pouco alta não faz mal à economia e ajuda a manter o pleno emprego. Aliás, em recente debate no SBT, a presidente afirmou que só se pode ter inflação de 3% ao preço de 15% de desemprego, sinalizando a manutenção da política frouxa de combate à inflação. Não conheço o manual de economia por ela utilizado. Ouviu falar, talvez, na curva de Phillips, que postula relação inversa entre taxas de inflação e desemprego, válida porém apenas no curto prazo, e confundiu tudo. Por coerência com essa ideia, ela poderia então deixar a inflação subir até não se sabe onde, a fim de alcançar taxa de desemprego zero.
         É evidente a existência de gente desonesta em todos os partidos. Mas, entre os grandes, apenas o PT transformou a roubalheira em prática carimbada como virtuosa. Não é isso que faz ao chamar de heróis seus dirigentes condenados pelo STF? As questões centrais dessa batalha atual pela presidência da República não são os infinitos esquemas de subtração do nosso dinheiro em benefício do partido e dos ladrões petistas, e o uso do aparelho do estatal em benefício próprio. O combate a esse tipo de crime deveria ser apenas corriqueiro, trabalho constante da polícia e outras instituições legalmente capacitadas a isso. Julgo essencial que se tenha plena consciência da guerra de valores em curso, cujo desfecho condicionará os destinos da nação pelas décadas vindouras. De quais estamos falando?
          O mais importante é a democracia como valor em si mesmo. Não se pode trocar a liberdade por um pouco mais de bem estar material ou por suposto benefício “aos mais pobres”. Essa visão prevaleceu nos antigos países comunistas com resultados trágicos em termos de perda de liberdade, morte por fome e execução de milhões de pessoas. Esse é, para mim pelo menos e, creio, a maioria dos brasileiros, um ponto inegociável. O tal “controle social da mídia”, cuja implantação o PT tenta impor, é a primeira linha de ataque à democracia e deve, portanto, ser rejeitado liminarmente. Pelo observado já agora, com os adversários sofrendo ataques sujos financiados com dinheiro público, pode-se imaginar como seria depois.
          Em seguida, vêm os princípios de ordem moral. Não existe e não pode existir crime do bem. Crime é crime mas, infelizmente, o PT tem a alma leninista: tudo vale na conquista e manutenção do poder. Não se pode roubar e depois alegar que o roubo foi por uma boa causa, por exemplo, a suposta melhoria da distribuição da renda pessoal dos agentes econômicos. Note-se, a este respeito, que a igualdade a ser almejada pelas sociedades civilizadas é a de oportunidade, não de resultados.
          Por fim, a democracia não pode existir no vácuo, necessita de instituições que a façam funcionar adequadamente. Esse o motivo de ser obrigação de todos contribuir para a manutenção e aperfeiçoamento dessas instituições. Sem elas, a aplicação dos princípios democráticos fica fragilizada. O que faz o PT, no entanto? Tenta desmoralizar o Supremo e a Justiça, comprar o Congresso com o Mensalão e aparelhar o Executivo. Aí está. Eu não implico com petistas. Condeno o partido em nome de certos princípios caros às sociedades democráticas. Por eles devemos lutar.

7 de outubro de 2014

Dilma e o apagão que não houve



Luiz Alfredo Raposo
Economista



A crise energética de 2001, que ficou conhecida por “apagão” foi, não há negar, um momento escuro do 2º governo FHC. O curioso é que, apesar de o apelido ter pegado, não houve apagão nenhum. Pelo menos, não lembro (e você?) e não encontrei na internet registro de eventos grandes e prolongados do tipo. Nem mesmo racionamento compulsório houve. Deu-se, sim, uma redução progressiva, ao longo de um ano, da oferta das usinas hidroelétricas (e, em consequência, do consumo de energia), precipitada pela inusitada escassez de chuvas, redução que prejudicou o crescimento do país. E a taxa de aumento do pib caiu de 4,2% em 2000 para 1,4% em 2001, segundo os dados oficiais. Cochilo do piloto? Não há dúvida que sim. Uma dose maior de previdência teria resultado na pronta instalação de uma capacidade-reserva de térmicas, num acionamento mais expedito de instrumentos emergenciais (como as térmicas embarcadas, os tais navios-usinas), numa aposta maior nas fontes alternativas, àquela época ainda pouco exploradas etc.

Mas, por questão de justiça, também admito que, diante da crise, o governo agiu de modo exemplar. Reconheceu o problema (com uma dose muito tucana de má consciência...) e montou um plano de emergência inteligente, assentado sobre três eixos: 1) um aumento de preços graduado de forma a conter a demanda, penalizando em especial o consumo excessivo; 2) um programa de estímulos à adoção de tecnologias poupadoras de energia por empresas, setor público e famílias (para as duas primeiras, o BNDES abriu linhas específicas de financiamento, como o Programa de Conservação de Energia Elétrica-PROCEL); e 3) um plano de implantação de novas usinas térmicas, para funcionarem como capacidade de reserva, pronta a ser acionada, sempre que necessário. Houve, ainda, alterações no horário de funcionamento de órgãos públicos (não sei se no setor privado também), para aplainar a demanda diária, reduzir os picos de consumo.

O gerenciamento de toda a operação foi entregue a um ministro (Pedro Parente), que agiu com a objetividade e senso de urgência de um general em campanha. Era interessante vê-lo na TV com assessores, no que pareciam reuniões de estado maior de filme de II Guerra. E isso, paradoxalmente, talvez tenha contribuído para dar uma impressão exagerada do tamanho do problema. Mas deu certo. A sociedade se engajou, entrou no clima, e o consumo caiu significativamente, o que evitou a medida extrema do racionamento. Um ano depois, vieram as chuvas e, com elas, a regularização da produção das hidroelétricas.

Ponto que merece destaque é que, apesar dos pesares, o Brasil saiu melhor da crise, tirou dela uma parcela de ganho permanente. As inovações adotadas (lâmpadas econômicas nas casas, empresas, repartições e logradouros públicos, dispositivos economizadores nas máquinas, motores e utensílios elétricos) mudaram em definitivo o padrão de consumo, derrubaram os consumos unitários para níveis que desde então se mantêm abaixo do pré-crise (diria um economista em seu linguajar pernóstico: o pib tornou-se menos eletricidade-intensivo). Lucro para a economia: menos custo no dia a dia e menos necessidade de investimentos em expansão de capacidade. As novas térmicas (algumas inauguradas já no governo do PT) agregaram-se à matriz energética como fator de estabilidade e de tranquilidade.

Para o PT, porém, o apagão foi só passivo. Mais do que parte, ele virou emblema da herança maldita que teria sido recebida do governo Fernando Henrique. O irônico é que os apagões de verdade, os eventos de apagão em larga escala vieram a ocorrer foi no governo Lula. Em duas ocasiões, em 2005 e 2007 (lembro-me bem e o Google não me deixa mentir...), falhas de manutenção (decorrentes de subinvestimento) no sistema de Furnas provocaram panes de longa duração, que vitimaram extensas áreas nos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. E no final de 2009, o problema que produziu o desligamento de Itaipu “apagou” grandes porções de Sudeste, Nordeste e Centro-oeste, por uma noite inesquecível, lembra? Ao todo, cerca de 50 milhões de brasileiros atingidos e alguns bilhões de reais de prejuízo. Isso, sim, é um apagão que se preza! O governo poderia (ou melhor, deveria) ter reconhecido a gravidade das falhas e se comprometido solenemente com sua correção. Preferiu usar mais uma vez o double-talk, sua arma predileta. E passou semanas e semanas tentando convencer a população de que aquilo era coisa bem diferente de apagão. Foi o raio da silibrina!

A verdade é que o governo do PT nunca fez o que devia no ataque à raiz do problema: a dependência excessiva da energia oriunda de fontes hídricas, gritam já roucos os fatos. Não se empenhou a fundo nem num programa de fontes alternativas nem na interligação mais robusta dos subsistemas de transmissão regionais. Em consequência, o país continua demasiado exposto ao álea climático e às fragilidades do sistema de transmissão (e sua manutenção). Falei acima de episódios. Mas em janeiro de 2009, o engenheiro Jerson Kelmann, que exercia a função de diretor geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), deu uma declaração reproduzida por toda a imprensa (e logo depois, perdeu o emprego...), segundo a qual andamos mais perto do apagão em 2008 do que em 2001. Ou seja, 2008, apesar de inepisódico, teria sido mais difícil do que 2001. Raspamos a trave do racionamento. As térmicas dos tucanos devem ter trabalhado como nunca e no fim, vá-se ver, foram elas que salvaram a pátria!

Algo parecido com 2001 sucede neste ano de 2014. A seca está aí, embora, desta vez, não se veja nenhum Pedro Parente e o governo só abra a boca para negar o problema. Mas a situação é pior: em 2001, as novas térmicas ainda não existam e a economia cresceu. Agora, mesmo com a atual estagnação da economia (que veio andando a passo de tartaruga, desde 2011), o país já se encontraria em regime aberto de racionamento, não fossem as térmicas. Uma conclusão lateral é que, neste ano, o governo contou, além das térmicas, com uma ajudazinha da própria... estagnação! Imagine se houvesse ameaça(!) de crescimento! Mas a culpa toda é de São Pedro...



No dia de hoje, enfim, 6/10/2014, nossa governanta dá a primeira declaração depois da performance surpreendente de Aécio no 1º turno. E não é que, mais uma vez perdendo a oportunidade de fazer o seu dever de dirigente e candidata a um novo mandato, que é se explicar, prestar contas dos acertos e desacertos de seu governo (e todo o tempo ainda lhe seria pouco...)― não é que ela insiste em continuar na oposição a um governo que não há mais e ataca o apagão tucano e, para tanto, falsifica a história! É assim mesmo, lasciate ogni speranza, os petistas não padecem a enxaqueca da má (nem da boa...) consciência. Com o dom de iludir que os exorna, eles nunca têm culpa de nada e querem que as pessoas se esqueçam dos apagões deles para ficar malhando só o judas imaginário do apagão que não houve...

5 de outubro de 2014

Um bom senador


Jornal O Estado do Maranhão

Eu tinha 22 anos em 1970, quando o Brasil ganhou o tricampeonato mundial de Futebol, e cursava o último ano da antiga Faculdade de Economia do Maranhão. De minha turma, fomos três os selecionados para fazer em Manaus um conceituado curso de desenvolvimento então ministrado anualmente pela CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina, da OEA – Organização dos Estados Americanos, em vários países da região em sistema de rodízio: Manuel de Jesus Pinheiro Dias, Pedro Alexandre Gomes de Oliveira e eu, grupo a que se agregou Gastão Dias Vieira. Embora ele não fosse economista, mas advogado, atendia aos critérios exigidos dos participantes pela CEPAL e tinha sido escolhido por mérito próprio. Foram quatro meses de convivência diária. Escutávamos pelo rádio os jogos da seleção e os assistíamos pela televisão três dias depois porque lá não havia ainda transmissão ao vivo.

Antes da ida a Manaus, eu conhecia Gastão apenas por notícias de amigos sobre sua ativa participação na política estudantil, desde os 12 anos de idade, no antigo Ateneu Teixeira Mendes, depois na presidência do Centro Liceísta, do Liceu Maranhense, e do Diretório Acadêmico Clodomir Cardoso, da Faculdade de Direito, atividades que revelam uma vocação política precoce capaz de se manter intacta ao longo de sua vida, como nas verdadeiras vocações. Pudemos manter nessas décadas todas até aqui uma amizade sempre acima das lutas diárias e ferozes do dia a dia da política, da qual nunca desejei participar, a não ser como cidadão interessado nos destinos do Brasil e do Maranhão, dando, aqui e ali, algumas ideias sobre a melhor forma de condução da administração do Estado e de boa aplicação dos recursos públicos.

Menos de um ano depois de voltarmos de Manaus, lá estávamos na Assessoria de Planejamento e Orçamento da Secretaria de Fazenda do Estado, no início do governo Pedro Neiva de Santana. O Secretário era Jayme Santana, depois deputado federal, meu colega na Faculdade, Gastão chefiava a unidade e eu era um dos assessores. Decorridos mais 6 anos, em 1977, consegui uma bolsa do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O coordenador do setor de bolsas no exterior daquele órgão era justamente Gastão. Ele empenhou-se junto ao comitê que julgava os pedidos de apoio, pela aprovação do meu. Fui estudar nos Estados Unidos onde fiquei 5 anos ininterruptos obtendo os graus de mestre e doutor em economia na Universidade de Notre Dame, em Indiana. Em 2008, quando eu presidia a Academia Maranhense de Letras, naquele ano celebrando seu centenário de Fundação, Gastão alocou àquela Casa recursos do Orçamento Federal destinados à organização das festividades.

Acompanhei sua ascensão na vida política desde seu primeiro mandato de deputado estadual, durante cujo exercício ele participou da elaboração da Constituição do Estado, em que, por sua iniciativa, foi incluída a cláusula que destina 5% do orçamento estadual à Uema; depois, suas sucessivas eleições a deputado federal (o mais votado em 2010); finalmente, a presente eleição, em que ele é candidato a senador.

A vocação dele é claríssima. Sempre se interessou pela política e através dela sempre quis contribuir com o pecúlio comum de realizações em benefício da nossa sociedade que vem se acumulando geração após geração de bons maranhenses.

Em sua trajetória de homem público no Legislativo e Executivo, neste tendo exercido diversos cargos de alta relevância e responsabilidade, como os de Secretário de Estado aqui mesmo e de ministro de Estado, com ótimo desempenho em todos, bem como membro de importantes comissões na Câmara dos Deputados, Gastão nunca teve seu nome associado, por mais levemente que fosse, a escândalos de qualquer tipo, fato reconhecido até por seus adversários. Inimigos ele não os tem.

Ninguém haverá entre nós mais bem preparado do que ele para representar o Maranhão no Senado. Poucos o igualarão no amor à nossa terra e esforço com o fim de transformá-la em favor de todos os maranhenses.

É assim que voto, meus senhores.

3 de outubro de 2014

Texto de Luiz Alfredo Raposo



Amigos, se tiverem a paciência de me tolerar mais uma, peço que leiam ou releiam esse trecho de um escrito meu de 4 anos atrás. Bem que eu gostaria de verificar que errei. Infelizmente, verifico que acertei até nos detalhes. Só a volta de Lula não se concretizou. Ainda. O jovem gênio oposicionista a que me refiro no texto quem vocês acham que seja?...

Abs,

Luiz

1. O desmanche ético

Para concluir, devo tocar o nervo mais sensível e inquietante do petismo no poder, sua conduta ética. Mas, para isso, preciso começar de muito antes. O PT nasceu como um partido de massas puro e intransitivo. Seu programa? Uma mistura de sindicalismo clássico e socialismo fabiano, com itens como valorização sistemática da renda salarial, redução da jornada de trabalho, autonomia sindical, reforma agrária, fortalecimento do Estado como empresário e como interventor no mercado, imposto sobre grandes fortunas, restrições à ação dos “grandes negócios”, em particular à banca e ao capital estrangeiro sob todas as formas etc. E suas disposições de espírito, seu ethos? Um ethos moralista e por assim dizer anti-político, de quem está aparentemente menos preocupado em chegar ao poder do que em denunciar os pecados do agir político tradicional: a associação entre a política e os “grandes interesses”, a corrupção, a complacência com o regime militar então vigente etc. E assim botaram eles o pé na estrada: com um programa na cabeça e nenhuma intenção de compromissos ou alianças com o Establishment. E a face ética encontrou, naquele período final de decadência do regime militar e de prostração econômica, uma enorme demanda insatisfeita. Era ela que fornecia as principais bandeiras para a militância e por pouco não obscureceu de todo a face programática.

E os primeiros arraiais petistas além-ABC ergueram-se justamente no solo da indignação moral dos médios e baixos estratos da classe média urbana. Ou, como diz um amigo meu, formaram-se com viajantes da “barca dos enojados” (naquele tempo, ainda não havia povo, não havia lumpen). Esse eleitorado terminou por representar 30%, ou seja, quase um terço do universo votante. O que foi suficiente para botar Lula no 2º turno contra Collor, em 89. E garantir para o PT uma barulhenta “banda de música” no Congresso.

Com a débâcle do socialismo real, as “tendências” formadas pelos antigos militantes leninistas e trotskistas (que eu vou classificar genericamente sob o rótulo de “bolcheviques”), até então precariamente homiziadas, “passando chuva” no PT, resolveram desistir do ideal socialista. Desistiram do que agora consideravam, não indesejável, mas inalcançável no horizonte histórico. Aderiram à linha reformista do partido e, ao cabo de alguns anos, se tornaram hegemônicas. E foi sob o comando desta banda, que o partido abandonou seu isolamento em favor de uma política de alianças com a “direita”, e terminou chegando ao poder em 2002. Deu certo, mas, ponto igualmente de notar, que mudança radical de estilo! Antes, na sua fase virginal, o PT foi a vítima preferida, o cordeiro de sacrifício de mais de uma das “armações” da direita. Com a nova direção, que inusitada, criminal bruteza de jogo se inaugurou! E para prova disso, basta recordar alguns fatos:

· no segundo governo Fernando Henrique, pipocaram pelo país inteiro boatos ou denúncias de que gente graúda nas prefeituras em mãos petistas estaria arrancando um “mensalão” de concessionárias de serviços públicos municipais (em particular, no transporte público e na coleta de lixo), em troca de “facilidades” na celebração ou renovação de contratos. E as “facilidades” incluíam, quase sempre, o superfaturamento de preços. Um desses casos, o de Ribeirão Preto-SP, ficou célebre, anos depois, quando as investigações foram levadas à esfera judicial e desencadearam episódios que culminaram com o afastamento do ministro (e ex-prefeito) Antônio Palocci. Sim, o grande Palocci, com todo aquele ar seráfico de frade capuchinho italiano das Santas Missões! O curioso era a coincidência de o filme ser o mesmo. E de a “justificativa” supostamente dada pelos tais graúdos para semelhantes achaques também ser idêntica: arrecadar dinheiro para a próxima campanha presidencial. A ser verdade, havia método naquelas roubalheiras. Tudo se passava como se os generais petistas, constatando a indisposição dos doadores privados para com o PT, naquela época, tivessem emitido uma diretiva secreta aos dirigentes municipais, no sentido da ordenha dos cofres municipais via concessionários de serviços públicos.

· Pouco depois do choque com o assassinato do prefeito de Campinas-SP, Toninho do PT, em circunstâncias nunca esclarecidas, em princípios de 2002 o país recebe horrorizado a notícia do seqüestro e morte do prefeito de Santo André-SP, Celso Daniel. As investigações policiais conduziram ao indiciamento de uma quadrilha ligada ao PT, que atuava dentro da prefeitura, extorquindo “dinheiro de campanha” às empresas de transporte coletivo. Depõem os próprios familiares de Celso Daniel que este teria perdido o controle sobre a gang e tentado afastá-la, o que levou a sua morte. Que os familiares falavam sério é prova suficiente (embora de modo nenhum necessária, depois dos assassinatos em série que se seguiram ao de Daniel...) o fato de que alguns deles se auto-exilaram e vivem fora do país até hoje. E o caso continua sub judice (as apurações contra gente do PT nunca chegam ao fim, já notou?).

· Em princípios de 2000 (acho que foi isso), Zé Dirceu deu o grito, mandou os militantes “baterem nos opositores, nas urnas e nas ruas”. A palavra de ordem foi seguida à risca: por ocasião de uma manifestação de professores estaduais em greve, na periferia de São Paulo, agentes petistas feriram com porretes improvisados a cabeça inteiramente glabra do governador Mário Covas, já marcado então pela terrível doença que o mataria logo depois. A ação tinha um estilo que não podia deixar de lembrar o dos grupos da SS nazista ou o dos “camisas negras” de Mussolini, tais como descritos nos livros de História. A impressão que ficava era de que se estava tentado inventar um fascismo de esquerda no Brasil.

· Inicia-se o governo Lula, e logo fica claro o projeto do PT de controlar, com gente sua, os fundos de pensão das estatais: Previ, do Banco do Brasil; Petros, da Petrobrás; Funcef, da Caixa Econômica etc. etc. As notícias se sucedem, algumas dando conta de tenazes resistências de parte dos empregados. E são completadas por esta outra: a ofensiva estava sendo comandada em pessoa pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares (que, algum tempo depois, o país viria a conhecer como o executivo do mensalão). Ora, o fato em si era estarrecedor. Os fundos de pensão têm um porte econômico gigantesco. Somados, representam mais do que a Petrobrás. O patrimônio da Previ supera o do Banco do Brasil, e ela é o maior investidor institucional do mercado de capitais brasileiro. E, sobretudo, um fundo de pensão é uma entidade puramente financeira: tudo o que faz é receber o dinheiro das contribuições dos empregados e do patrocinador, aplicá-lo em títulos de dívida e ações, participar dos conselhos de administração de algumas empresas das quais é acionista e pagar as pensões dos associados inativos. Qual o sentido de politizá-los? Mais: que diabo queria o tesoureiro do PT com tais entidades, qual seu interesse em ter poder sobre essas montanhas de dinheiro? Foi a pergunta que ficou e que, hoje, à luz do mensalão, a gente sabe melhor como responder. O certo é que o “aparelhamento”, com uma ou duas exceções, foi efetivado. É provável que não tenha dado o resultado sonhado por Delúbio porque os empregados continuam lá dentro, cuidando do que lhes pertence. Mas, com certeza, não terá ficado apenas nos confortáveis salários recebidos pelos companheiros lá aboletados. Um dia, quando o PT estiver fora do poder, vai-se poder conhecer o tamanho da conta. Prepare seu coração...

· Mal entrara o governo em seu segundo ano, e eis que estoura o escândalo do “.mensalão”. E o que era ele? Uma tentativa de obter, por um processo novo, “nunca antes” visto no país, uma maioria estável na Câmara dos Deputados (os petistas recusam o prêmio de originalidade, dizem ter-se inspirado num “mensalinho” feito antes em Minas). Sabemos todos (nem é o caso de entrar em detalhes) que, no estatuto político desta Nova República, vincado pelo multipartidarismo à outrance e pela liberdade quase absoluta do mandato legislativo frente à hierarquia partidária, a ideia de “base de apoio parlamentar” adquiriu um sentido novo, algo insólito. Na acepção clássica, válida para as democracias maduras de hoje, constitui ela um corpo uni ou pluripartidário disciplinado, cujo comportamento se prevê com alto grau de precisão. Aqui ela se “reduz” a algo muito mais precário, ao conjunto de parlamentares “conversáveis” pelo Executivo. Um mercado persa, onde nada está de antemão decidido. E onde tudo se negocia, do torpe ao sublime. Em geral, participam desse mercado os parlamentares inscritos num dos partidos que ajudaram a eleger o governo. De fora fica a oposição, os iconversados e inconversos. No mensalão que se fez? Em lugar da negociação com seus resultados conhecidos (partilha de cargos, compromisso com projetos, liberação de emendas, facilidades para negócios particulares com órgãos públicos), achou-se melhor o muito pior por excluir a priori toda possibilidade de grandeza: assalariar esse apoio, transformar parlamentares (do “baixo clero”!) em serviçais e retribuí-los com uma “mesada” de valor variável conforme sua “importância”. A “folha de pagamento” assim organizada compreendia meia centena de parlamentares, a maioria do chamado baixo clero, inscritos em siglas formalmente aliadas ao governo. E a regra era clara: votou com o governo, recebeu; não votou, nada de mensalão! Restava um problema: e de onde viriam os recursos para a cobertura de uma “despesa” que o orçamento público não podia prever? E como distribuí-los sem dar na vista? Da solução foi encarregado o tesoureiro do PT. E ele se houve “brilhantemente”, pois a engenhoca que construiu funcionou sem tardança. Interessante escolha, o encarregado tinha cara de açougueiro, e nome que parecia anunciar um destino, parecia termo técnico tirado do Código Penal...

· Apesar da primariedade da tramóia, tudo andou sem tropeço até a denúncia do dep. Roberto Jefferson (presidente de uma das siglas enredadas que se sentiu bypassado). Criou-se uma comoção nacional, instalou-se CPI, mas o governo não deixou que as investigações prosperassem. Tudo não passava de tentativa de golpe. Mensalão não existe!, decretou o presidente. Extraordinário não-acontecimento que todo mundo viu, menos Lula. A senadora Marina, à época, do PT, declara hoje, 11/08/10, ao UOL sobre o triste episodio: “nem todos praticaram erro”. Não praticaram, mas viram, como a declaração da senadora, em cândido estilo bíblico, deixa claro. O delito (tentativa de assassinato de um dos poderes da república, nada menos que isso) foi vastamente documentado com a descoberta de um canal regular entre algumas “contas pagadoras” e uma série de parlamentares. Alguns terminaram perdendo o mandato. Mas nunca se conseguiu apurar ao certo de onde veio o dinheiro. Delúbio, apertado de mil maneiras e expulso da direção partidária, foi de uma frieza “bárbara”, diria uma admiradora, de sua boca só saíam sorrisos gelados. Comportou-se como era de esperar de um herói petista. E a origem dos recursos ficou até hoje envolta em trevas. Uma operação deveras tenebrosa...

· Mas, ainda assim, as evidências recolhidas foram suficientes para levar o país (e a Câmara dos Deputados) à convicção de que o esquema tinha sido comandado desde a Casa Civil, instalada no próprio Palácio do Planalto, em gabinete ali juntinho ao do presidente!!! E José Dirceu não apenas foi demitido da chefia da Casa Civil, como teve cassado seu mandato de deputado. E é paradoxal como esse “acidente” talvez tenha resultado benéfico tanto a Dirceu quanto ao próprio PT. Longe do poder formal, ele encontrou um ambiente mais propício a seus dotes: a queda para agir na sombra, o gosto pela bruxaria política, a saliva, digamos, ofídica... E pôde, assim, seguir melhor seu destino de Golbery do PT. Golbery na alma e na figura (compare-lhes as fotos mais recentes, repare-lhe o ar de filho, sobrinho, meio-irmão temporão, sei lá. O mesmo sorriso sardônico e até o traço facial mais característico do velho general, aquele olhar de raposa do Ártico...). E, assim como nas primeiras diabruras do neo-PT, suas digitais, para quem sabe ver, aparecem mal-disfarçadas nas mais recentes.

· Já falei do “aparelhamento” da máquina pública promovidos pelo PT, num grau insólito na história do país. Falei também do estilo de propaganda típico dos petistas, focado não exclusivamente em suas realizações, mas também em tentativas enganosas de apresentar projetos ainda em perspectiva como se já fossem obras reais ou de se apropriar de realizações de governos anteriores; na mentira como sistema, com a detratação das pessoas e dos feitos dos adversários e os boatos maldosos contra os competidores, quando das campanhas eleitorais. Entro, agora, noutro assunto, dentro da mesma linha, embora incomparavelmente mais pesado: a atração fatal pelos “dossiês”. Começou em 2002 com o famigerado dossiê “Grand Cayman”, com acusações seriíssimas de locupletamento contra o ex-presidente Fernando Henrique e seus colaboradores mais próximos, no programa de privatizações. Como se viu logo depois, tudo forjado, da capa à contracapa. E feito com uma crueldade tamanha, que não excluiu nem gente falecida como o ex-ministro Sérgio Mota. No primeiro governo Lula (ou foi no segundo?), surgiram indícios de que estaria havendo um verdadeiro carnaval com os cartões de crédito corporativos de responsabilidade do gabinete presidencial, inclusive os utilizados por familiares do presidente. O pessoal do governo, na tentativa de intimidar os parlamentares da oposição, empenhados na elucidação do caso, não se inibiu de fazer carga contra alguém tão respeitável quanto a falecida ex-primeira dama, dona Ruth Cardoso: ameaçou “entregar” os extratos de despesas supostamente feitas por ela, quando primeira-dama, pagas com os mesmos cartões. Puro blefe, a reação, como seria de esperar, foi de uma dignidade arrasadora: dona Ruth declarou que não só autorizava como exigia do governo a divulgação dos tais extratos. E sugeriu ainda que o governo, para deixar tudo em pratos limpos, fizesse o mesmo com as despesas correspondentes pela quais fosse responsável. Quem disse que o governo topou? Fez, sim, tudo o que foi preciso para pôr uma pedra em cima do caso. E a chantagem lhe saiu pela culatra.

· Em 2006, a “jogada do dossiê” foi reeditada pelos tais “aloprados”, dessa vez contra o então candidato ao governo de São Paulo, José Serra, e seus familiares. Novamente, forja de cabo a rabo. E tão mal-feita que até o presidente se disse incomodado. Pois não é que, agora, eles voltam à carga, e apelando para um recurso ainda mais sujo, o de espiar pelo buraco da fechadura a vida particular de dirigentes tucanos, como o vice-presidente do partido, Eduardo Jorge, e da filha de Serra! Para isso tentam comprovadamente contratar um ex-araponga do SNI. E determinam a uma funcionária da Receita Federal filiada ao PT que ela quebre o sigilo fiscal dessas pessoas e tire cópias de suas declarações de renda para “compor” o dossiê. E a moça faz o “serviço”!

· Como eu já recordei, no começo o PT rejeitava alianças (em 92, Erundina foi expulsa porque aceitou participar da idéia generosa que foi o governo de união nacional proposto por Itamar). Mas a partir de fins da década de 90, deu uma guinada radical, adotou uma política de alianças “ampla, geral e irrestrita”, que não termina de surpreender. Depois do mensalão, então, nem se fale! Alarmado o país com a enormidade daquela “inovação”, eles tiveram de voltar ao tradicional. Mas aí, inauguraram um estilo novo de fazer o velho. Todos, sem exceção, foram convidados para a seara petista e para o banquete do poder. E só os mais éticos, os inconquistáveis, no seu apego a coisas meio peremptas como história, princípios, altivez resistiram. Na verdade, a “coordenação política” do governo lulista transformou-se na maior máquina de cooptação de que se tem notícia no país. Basta ver o “arco” de siglas e o “álbum de figurinhas” que formam a coligação de apoio a Dilma. O arco é o arco-iris e o álbum..., bem, a associação com os Sarney já vem informalmente da primeira eleição de Lula. E virou eterna como o amor, quando da crise da mesa diretora do Senado de 2009. Naquela ocasião, acuado pela opinião pública e pela maioria de seus pares, inclusive os petistas, por sua conivência com as irregularidades descobertas no setor administrativo do Senado que ele presidia, o sen. Sarney só se salvou graças a Lula. Este interveio diretamente na sua bancada de apoio, fez o PT mudar de posição da noite pro dia, fez o líder da bancada desdizer da tribuna o que, na véspera, dissera da tribuna, e Sarney terminou escapando da destituição, ou, quem sabe, até da cassação.

· A aliança com os Sarney chega, agora, ao seu coroamento (outros dirão ao cúmulo) com a intervenção do PT no diretório estadual do Maranhão, em reação à recusa de apoio dos petistas maranhenses à reeleição de Roseana (a troco do apoio do PMDB a Dilma). E se estende não só a outros caciques peemedebistas, como os insignes Renan Calheiros, Jáder Barbalho e Romero Jucá, mas ao próprio ex-presidente Collor, candidato ao governo de Alagoas. A chamada fina flor das forças progressistas... Lula e Collor, aliás, andam nestas eleições confessadamente contrariados por não estarem, em virtude da lei, podendo casar de papel passado, aparecer unidos no palanque e na propaganda eleitoral.

Os fatos são tão repetitivos e tão chocantes que não posso evitar arriscar uma hipótese explicativa. À primeira vista, a “nova política” patrocinada pela tendência bolchevique parecia denotar apenas o aburguesamento do PT: que o partido resolvera enfim “entrar no jogo”, buscar o poder, pelos mesmos caminhos que as siglas tradicionais. Mas, no fundo, a modificação que os novos senhores traziam consigo era de natureza muito outra, bem mais sombria. Esse pessoal, ao desistir do ideal socialista, perdeu seu altar. Ficou por assim dizer “órfão de transcendência”. E esse vazio foi muito naturalmente preenchido pela idéia do poder pelo poder. Até aí, nada de novo. O problema é que ninguém chega de viagem sem trazer bagagem. Eles tampouco. E, fazendo a inspeção dos teréns, eles viram algo muito querido, que tinham impresso no coração e talvez fornecesse uma arma decisiva ao neo-PT: o “manual de instruções” leninista. E resolveram preservá-lo. E deixavam de ser marxistas nos ideais econômico-sociais, mas continuavam leninistas nos métodos políticos. No linguajar deles, mantinham intacto o “espírito revolucionário”. Ou seja, eram, agora, uns cristãos-novos da sindical-democracia. Prontos a recitar o Pai-Nosso, mas só até um certo trecho...

E o que prevê o “livrinho” é um jogo muito, mas muito bruto. Jogo que está para o praticado nas democracias ocidentais, assim como o vale-tudo está para o judô. E a diferença reflete o fato de que os bolcheviques originais não nutriam a mínima simpatia pelo modelo democrático “burguês”, com o teatro congressual e a cláusula da alternância do poder. Para os democratas liberais, um dogma; um brinquedo de crianças para Lenine e seus duros camaradas. Nisso crentes velhos, que fizeram os novos senhores do PT? Calçaram luvas de veludo em mãos de ferro, adaptaram o livrinho no sentido de incorporar sem discussão, “nesta fase histórica”, os outros dogmas democrático-liberais (o da repartição do poder, o dos direitos e garantias individuais e o da representação popular), mantendo, porém, intacto o método de confronto. Método que parte da premissa de que os oponentes (inclusive os internos, os dissidentes, os “revisionistas”), impõe-se não apenas vencê-los no voto, mas eliminá-los sem mais. E que se resume numa palavra: violência pura e simples. Violência tanto para abrir caminho para o poder quanto, depois, para manter-se no poder. Lenine absolvia a si e aos seus, declamando, com característico entono hegeliano, que a violência “é a parteira da história”.

E a deusa da democracia ainda cobrou tributo à tal parteira... Em lugar da violência física (os massacres, os Gulags, os expurgos), os recém-chegados tiveram de resignar-se (embora nem sempre, como atesta o caso Celso Daniel) à violência moral, com coisas mais benignas como a cooptação e, se esta não funcionar, a desqualificação, a chantagem, a difamação, a desmoralização. E em situação de poder, o golpe adicional do esmagamento político: o fazer cair sobre o oponente todo o enorme peso do Estado, inclusive a propaganda e a perseguição. E, em íntima ligação com isso, uma absoluta sem-cerimônia no lidar com a res publica. Recursos, informações, serviços, tudo é normal desviar, manipular, vender, em benefício partidário e (não ensinava o mestre que a obrigação primeira é sobreviver?), se for o caso, também pessoal. O pensar leninista profundo a respeito caberia num cartaz de manifestante: abaixo os escrúpulos, essa coceira pequeno-burguesa! Viva às maracutaias da nossa turma!

É o jogo. E como ele se adapta bem a um partido de massas como o PT! Foi assim com os seus congêneres no mundo inteiro. Uns mais, outros menos atrozes, cada um, porém, rezando por um livrinho-irmão, filhos que são, todos eles, d’O Príncipe de Maquiavel. E a razão está em que os partidos do gênero, independentemente de ideologia ou ambiente de atuação, podem sempre contar com a “paixão/pulsão de obedecer” dos “militantes”. “Sempre às ordens!”, gritam eles, soldadinhos em ordem unida. E eles são tropa numerosa e ubíqua. E para eles não há serviço sujo. Há missões espinhosas...

Ah, precioso livrinho, adaptado, sua aplicação foi um sucesso, os eventos subsequentes comprovam. Com ele, o partido chegou ao poder, o programa econômico foi trocado e deu tudo certo. A resultante dessas trocas é que era estranha: o PT se transformara num híbrido (ou num monstro), com um programa social-democrata e um ânimo leninista. Não tinha importância. Programa se tornara coisa secundária, qualquer um servia, contanto que ajudasse na luta pelo poder, esta, sim, questão de vida ou morte.

Mas não ficou por aí. O sucesso, por artes da dialética, levou o feiticeiro neo-petista (é o meu pesadelo orwelliano) a ir dar noutra praia excitante, nos umbrais de uma nova utopia: a da ditadura perfeita. Um regime de cara democrática, com executivo e legislativo compostos por representantes escolhidos em eleições populares, as franquias democráticas aparentemente intactas, mas dominado por um partido que nunca perde uma eleição. Com a oposição para sempre débil e vacilante, no íntimo imbecilizada por um misto de admiração e terror, diante da onipotência dos eternos senhores do poder. Com o espaço das liberdades públicas (de opinião, de oposição...) erodido por novas leis e interpretações restritivas. E os controladores do Estado com a faca e o queijo, as mãos livres para os “pequenos” delitos contra os oponentes: as invasões de privacidade, o agente fiscal na porta, o boicote a seus contratos com órgãos públicos etc. Um regime democrático em tudo, exceto na alma. Ah, seria também o crime político perfeito, ao mesmo tempo crime e álibi!

Se essas cogitações fazem algum sentido, fica fácil descobrir o porquê do desconforto atual com a conduta petista. Carência de ética? Sim, a ética petista “encharcou-se” a ponto de, nos últimos tempos, eles fazerem tudo aquilo que haviam outrora amaldiçoado e andarem de braços dados com todas as “más companhias” de antigamente (e de sempre...). Mas, nesse particular, nossa história é tão rica, que já estamos de couro grosso! A carência aguda, que incomoda nos companheiros, é sobretudo de normas aceitáveis, “civilizadas” para orientar a luta pelo poder. De métodos limpos de lidar com os oponentes (e com os companheiros também). De “etiqueta”, para dar um nome a essa rosa.

A etiqueta democrática parte da premissa da alternância do poder como um “valor”, um fim em si. Daí que, bem de acordo, aliás, com o sentido mundano da palavra, cada norma sua encerre, como um secreto perfume, um conteúdo de “delicadeza” e elegância. É que por detrás da regra está a atitude prévia frente ao oponente: o interesse em preservá-lo como contraparte essencial do jogo do poder. O oponente é o outro time! E o outro time, um outro modo de ver e agir que precisa existir e exprimir-se politicamente. E por que precisa? Porque (e, aqui, uma feliz descoberta “metapolítica” das modernas sociedades democráticas, que todos, até seus os políticos, aprenderam a reverenciar), a “verdade” não está nem com o time A nem com o B. Cada um vem com seu ativo e seu passivo. A “verdade” está é em a sociedade mudar periodicamente de um para outro... E a mudança é necessária como neutralizante para os “efeitos tóxicos” típicos do modo de agir de cada um, que o tempo vai acentuando. É algo assim como mexer-se a gente ao dormir... Importa, sim, que seja um movimento “por instinto”, por necessidade sentida pelo corpo social. E não viciado pela ação dos agentes políticos: pela propaganda ou pelo jogo sujo.

Com os leninistas, não. Eles não querem alternância e sua etiqueta é a que eu já descrevi. A diferença de etiquetas cria, então, a situação que os fatos listados acima documentam: enquanto a oposição democrática insiste no judô (e exagera na delicadeza...), o PT, infectado pela atitude leninista de desapreço absoluto aos antagonistas, vistos como inimigos a eliminar, responde com golpes de vale-tudo. Tudo vale, menos perder. E assim é que nasce o predador, o tyranosaurus político.

Agora, mesmo, o partido traz para a eleição presidencial o inconfessado (e evidente) desejo de estraçalhar politicamente o PSDB, seu principal antagonista, infligindo-lhe uma derrota eleitoral feia, acachapante. E de eleger um Congresso submisso, capaz de aprovar qualquer coisa sem fazer barulho. Para isso, e não só como sucedâneo do mensalão, formou esta aliança escandalosa, que congrega não apenas os aliados naturais, mas também outros agrupamentos de quem os petistas tradicionalmente eram os adversários mais ferrenhos (a “vanguarda do atraso” quase em peso). E joga todo o poder do governo a favor de sua candidata presidencial, com o próprio presidente tendo adotado um comportamento mais parecido com o de chefe de torcida do que de Estado, ao cometer, com ar de deboche, uma série gritante de infrações à legislação eleitoral. Ao “jurar” Artur Virgílio e outros opositores “incômodos”. Ao descer de seu cargo para fazer pela TV insultos pessoais ao adversário de sua candidata etc. No fim (é o que eles querem), Serra perde de muito, aniquilado pela força brutal do dinheiro e da falta de escrúpulos. E não só Serra, também os candidatos tucanos aos governos estaduais e ao senado. E todos, inclusive os simpatizantes tucanos, botam a culpa nos idiotas dos candidatos, dos marqueteiros, do partido... É a desmoralização pretendida.

O mais de lamentar é o fato de ser o PSDB o protagonista do mais notável episódio modernizador da história brasileira recente, de tantos e tão bons frutos. E o principal veículo de expressão política das camadas mais arejadas de nossa sociedade. Aquelas, em particular, que mais vocação, mais “embocadura” têm demonstrado para uma tarefa crucial, que é pensar o nosso futuro: detectar tendências, sondar o horizonte de problemas e oportunidades, atualizar temários, botar as cartas do moderno na mesa. Não é de tirar o sono que um tal assassinato se tenha maquinado e esteja em curso?

Para ser sincero, o PT tira o sono, e não é de hoje. Com uma diferença: antigamente, era sobretudo por questões de programa, e se desconfiava que eles fariam bem menos; agora, é sobretudo por questões de comportamento, e, visto o já feito, pode-se ter certeza de que eles farão muito mais...

2. A maldição de Macondo

Antigos tratadistas de Ciência Política, como Maurice Duverger, davam grande importância analítica à dicotomia entre partidos de massas e o que chamaram de partidos de quadros. Ah, velhos mestres, a história embaralhou vossa lição. A experiência do último século ensinou que, no poder, os partidos de massas tendiam a se transformar num tipo singular de partidos de “quadros”. Em quadrilhas que tomam o controle de cada célula do Estado e, além de passar a nutrir-se delas, põem-nas a serviço de seus objetivos sectários. Nos casos mais extremos, só foi possível desalojá-las depois de muito tempo e à custa do sacrifício de milhões de vidas.

Outra peculiaridade dos partidos de massas é sua tendência a se transformarem em instrumento do poder pessoal, nas mãos de um autocrata. Foi assim também no mundo inteiro... E disso sabe bem o feiticeiro de meus pesadelos. O que ele não perderia em saber é que há muita coisa além do que imagina sua vã feitiçaria. Em Latinoamerica, diz o cordel, tudo finda em latifúndio, em mãos de algum coronel. A sombra de Perón estacionou sobre o céu da Argentina desde os anos 40. Os irmãos Castro conquistaram Cuba nos anos 50, e de lá não saem, nem ninguém os tira. Chávez já mandou cortar o pijama para morrer na cama do poder. Cada país parece buscar seu Buendía. E o nosso bojudo e abençoado Brasil? Não sei. Só sei de algumas coisas: que poder de coronel é planta que brota em sua fazenda. E coronel governa com outros coronéis, compadres num grande condomínio. E nutre um fraco por afilhados e Zecas Diabos. E em dois pontos ele e o feiticeiro coincidem: na busca do poder pelo poder e na ojeriza ao moderno. O tecno lhes é fatal. Enfim, coronel que é coronel morre na cama. E coronel é bicho ardido, urde cada estratagema...

Sei também que Lula é um incompreendido. Ele usa a toda hora a santa palavra “companheiro”, mas as pessoas se enganam: companheirismo é pouco para sua grande alma cordial. Sua paixão dominante, seu sentimento congenial é o compadrismo espaçoso e confortável! O compadrio político, em conjunção carnal com o poder, engendra, sou forçado a reconhecer, um macro-cartel de produzir e distribuir privilégios. Sim, mas também um doce e atlântico lidar com gente-do-peito, que fornece o álibi para quaisquer demasias. A desculpa perfeita para a união geral do público e do privado, os gados e as fazendas...

Lula, ao se “misturar”, vendeu a alma, dirão os incompreensivos. Vendeu nada! Só se foi a postiça. A verdadeira, a autêntica é essa alma de compadre latino-americano com que ele enfim se descobriu ao cabo de sua longa e heróica circunavegação de si mesmo. Essa com que, no alpendre, ele recebe Sarney, Collor, Jader, Renan, Jucá e o mais da fina flor. Os companheiros maranhenses entram em greve de fome, querendo se finar de puro desgosto. Mas Lula e Sarney não cabem em si de contentamento. Era fatal terminarem um dia um nos braços do outro. São dois compadres de romance de Gabriel Garcia Márquez, basta reparar naquela voz de minotauro. Ou no retalho de plantation centro-americana que é aquele vasto bigode vicejante...

Mas, replicarão, não se detecta em Lula, embora compadre, a vocação coronelesca. Ora se não! Se até modelito com brasão da república no peito ele botou... Pois não foi ele quem cancelou a utopia e transformou em fazenda o seu PT, quando lhe empurrou goela abaixo, como candidata presidencial, uma afilhada novata no partido, burocrata de gênio difícil e sem qualquer experiência política? Que eleição, jamais disputara uma, sequer para síndica de condomínio? Que, ainda ontem, na hora antecedente à epifania lulista, saía sozinha pela rua, ilustre e desconhecida dama? E cuja virtude é de afilhada: a certeza que dá ao padrinho de que, presidenta, lhe tomará a bênção todo dia, ao nascer e ao pôr-do-sol; e a promessa que faz de devolver-lhe a faixa presidencial à primeira badalada de 2015?

Foi seu Rubicão. Dobrado o PT, era a vez de Lula impor a afilhada ao país, escarnecendo publicamente da lei e da liturgia do cargo, que lhe vedavam ações eleitorais antecipadas. Deu certo (com ele, até aqui, sempre compensou...) e o presidente apareceu de sorriso novo. E me deixou de orelha em pé: pode até ser prevenção, mas eu não consigo mais vê-lo na TV sem achar que ele está botando na Mãe-pátria uns olhares de César hirsuto...

Mas Lula, alegam, com suas alianças compadrescas enfraqueceu o PT e, em última análise, saiu enfraquecido. Saiu nada! O PT, sim, sai com outra cara (a terceira, a quarta?), e, em lugar de candidato a arremedo de partido único, fica mais para, digamos, um primus inter pares. Ou, em nu e cru, para um partido de mordida mais feroz, armado de caninos leninistas. O trunfo de Lula na aliança, no novo Centrão que ele formou com os compadres-coronéis. Não menos, nem mais. Mas ele, agora, já não conta só com a militância petista: torna-se também desde logo o generalíssimo do grande exército de cabos eleitorais dos grotões deste país. Além de mais econômico, mais seguro, calcula: com o PT, ele se protege dos coronéis; e com os coronéis, do PT.

Daí porque, eu digo, ninguém se iluda (nem brinque com fogo e erre nos cálculos algum jovem gênio político oposicionista, pois isso lhe e nos será fatal): ganhando Dilma, depois não vem a oposição. Ou vinga o projeto de meus “bolcheviques” e eles, por quatro gerações, vão nos dar a sua “paz democrático-popular”; ou volta Lula, e corremos o risco de ver cair sobre o Brasil uma maldição. O coronel morrendo de velho em seus aposentos palaciegos, cercado de compadres e afilhados. O povão, como antes, distraído no bananal, tratado a Bolsa Família e doses maciças de propaganda. E os demais? Os demais, (os “anti”, os “contras”) abreviando as vidas, feito uns Sem-Amanhã, em “austera, apagada e vil tristeza”. Como em Macondo... E pensar que, trinta ou quarenta anos atrás, na escuridão do autoritarismo, a esperança deu canto e agasalho para tantos de minha geração (ah, antigos rapazes e moças latino-americanos sem dinheiro no banco...).

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