21 de março de 2010

O Valente Ibama e o Infiel


Jornal O Estado do Maranhão, 21/3/2010
 
O título parece de literatura de cordel, mas a história não tem graça nenhuma. Vejam. Está no site do Ministério da Justiça: “A Força Nacional de Segurança Pública foi criada em 2004 para atender às necessidades emergenciais dos estados, em questões onde se fizerem necessárias a interferência maior do poder público ou for detectada a urgência de reforço na área de segurança”. Deve ter havido então uma necessidade emergencial a justificar o emprego pelo superintendente do Ibama em São Luís, cujo nome não quero saber, da Força Nacional na apreensão há poucas semanas de quatro embarcações que estavam transportando caranguejos no período de defeso, portanto ilegalmente.
Eram elas de grandes empresários de outro Estado, na ânsia de saquear nossos recursos naturais? Eram perigosos piratas do litoral da Somália diversificando suas atividades ao iniciar a cata predatória de caranguejo logo aqui? Havia grave ameaça à segurança nacional? Nada disso. Eram barcos de madeira artesanais e tradicionais ainda existentes no Maranhão, enquadrados numa tipologia rara, de ocorrência apenas em nosso litoral. Eles são exemplos de técnicas navais construtivas com séculos de existência e estão ameaçados de extinção. Faz bem o governo Roseana Sarney em preservar tal riqueza por meio do Estaleiro-Escola.
A multa aplicada pelo importante pequeno chefe do Ibama corresponde a várias vezes o valor de cada barco, muito acima da capacidade de pagamento do proprietário, cujo patrimônio são os próprios barcos. Talvez ele tenha desejado “dar um exemplo” aos dissimulados nativos. Vai ver o sujeito não conhece a cultura local nem sua história nem o esforço heróico de sobrevivência desse homem do mar e ache preservação uma babaquice, como o lobby dos fabricantes de embarcações industriais acha. Há pouco, esse pessoal propôs ao Ministério da Pesca a proibição de crédito federal à pesca artesanal sob a conveniente, para eles, alegação de ser ela destruidora das já destruídas florestas brasileiras. Talvez não se lembre o superintendente que esse mesmo Ibama – tão valente, corajoso e rigoroso com pobres homens pobres desprovidos de apoios importantes e de conexões sociais e econômicas influentes – esse mesmo Ibama, eu dizia, dá licenças a grandes e poderosos pelo Brasil todo, sem o rigor utilizado pelo burocrata do Ibama. Pena esta gente não ser usada como mau exemplo.
Não defendo o ato ilegal de violação do defeso. Censuro a atitude insensível, desvinculada da realidade, arrogante, prepotente e injusta do superintendente, típica de quem é ignorante das coisas locais. Como quase todo mundo sabe, nem tudo que é legal é justo ou moral. A lei não pode ser aplicada como se vivêssemos num buraco negro social, em especial quando o legalismo é seletivo.
Apreendidos, dois deles, movidos a vela, ficaram sob a guarda do Estaleiro-Escola do Estado. Não se sabe por que os dois restantes não tiveram a mesma destinação. Equipados com motores de centro, foram levados a São José de Ribamar e permaneceram lá sob a responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente do município, a partir daquele momento sua fiel depositária, por conta de convênio entre a Prefeitura e o Ibama. Fiel? O bem apreendido, é lei, não pode ser utilizado pelo depositário, sob pena do fiel tornar-se infiel. Sabem o que aconteceu? O fotógrafo Edgar Rocha fotografou uma das embarcações em uma praia de São José na ocasião exata de seu retorno de uma viagem de transporte de sururu, não sei de quem. Telefonei ao Secretário de Meio Ambiente do município. Ele me garantiu que o fato não se repetiria. Daí a três dias, não só um deles foi utilizado de novo como teve seu leme quebrado. Não sei quem pagará os prejuízos. Desta vez eu mesmo fiz fotos numa praia de São José das partes danificadas. Junto com as de Edgar as postei aqui no blog.
Eis a severíssima lei: muito rigor contra quem pode pouco e pouco contra quem pode muito. Como dizia o iletrado e folclórico Paraguaçu, o de Dias Gomes, o Odorico: “Eu quero ver é tu brigar valentemente e defrentemente com um maior do que tu”.
(Voltar para as fotos do caso da apreensão dos barcos artesanais pelo Ibama)

18 de março de 2010

O caso da apreensão dos barcos artesanais: IBAMA e Secretaria de Meio Ambiente de São José de Ribamar

Para entender a história contida nas fotos abaixo, veja primeiro o post anterior (O Valente Ibama e o Infiel) com meu texto sobre a apreensão de barcos artesanais pelo Ibama e o uso indevido deles após serem colocados sob a responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente de São José de Ribamar. Na última linha do texto, há um link para voltar para cá.

Fotos de Edgar Rocha
1 - Barco chegando com sururu

2 - Uma canoa se aproxima

3 - Começa a descarga do sururu. Reparem no número de pessoa


4 - Carga de sururu é baixada do barco

5 - Operação continua
]
6 - Sururu a caminho da praia

7 - O produto da viagem ilegal chegando à praia


Três dias depois... (fotos minhas)


1-  Aspecto do leme quebrado

 2 - Detalhe

3- Outro ângulo

4 - Visão geral do barco

5 - Outro detalhe do leme quebrado

7 de março de 2010

Lembrança e Realidade



Jornal O Estado do Maranhão, 7/3/2010

Narrei algumas vezes nesta coluna algumas lembranças de minha infância, adolescência e parte da vida adulta. Quase sempre nessas ocasiões expressei dúvidas quanto à natureza e realidade delas. O que eu descrevia tinha, de fato, acontecido daquela maneira? A memória havia me traído e eu simplesmente estava reconstruindo, pelo uso de mecanismos da psicologia humana, o passado a partir de fragmentos de histórias ouvidas por mim posteriormente no ambiente familiar e no grupo de amigos com quem eu convivera por anos e anos compartilhando experiências de crescimento e amadurecimento? Difícil responder. Era "realidade", invenção inconsciente? Afinal, o que é "real"? É tudo autoengano? Perguntas cujas respostas não me atrevo a dar. A própria filosofia não ainda chegou a uma conclusão definitiva sobre a questão.
Eu, que não sou especialista nesses mistérios da mente, dou um exemplo dessa dúvida insanável. Eu me recordo, vez por outra, de meus anos americanos. Do meu ponto de vista de agora, essa lembrança é, em parte, uma lembrança de lembranças, logo de segundo grau, ou, ainda, lembrança dentro de lembranças, como num jogo de espelhos. Dito de outra forma. Eu me lembro das lembranças que do Brasil e, em especial, do Maranhão, eu tinha quando estava nos Estados Unidos. Depois de alguns anos, minha memória passou a selecionar somente as coisas boas daqui, esquecendo-se das más. Estas se apagaram, não se deixavam ver ou eu as olhava, contudo não as sentia.  Talvez esteja nesse mecanismo psicológico, um entre vários, a explicação da dificuldade emocional de emigrar, sentida pela maioria das pessoas. Não meu caso – eu já disse isso uma vez aqui – não me foi fácil tomar a decisão de voltar e abandonar um dos melhores, ou o melhor, ambiente educacional do mundo, que estaria ao fácil alcance de minha família, num país de oportunidades sem igual no mundo inteiro. Talvez se a memória não tivesse feito essa seleção darwiniana de lembranças, eu teria lá permanecido. Ao adotar apenas algumas, trouxe-me de volta ao Brasil e ao Maranhão.
Mas, eu queria dizer o seguinte. Essas lembranças de lembranças estão sujeitas, de forma semelhante às originais, neste exemplo aquelas que eu tinha lá, à regra de serem, provavelmente, não apenas reconstruídas. Elas o são o tempo todo. Sucessivas evocações de um acontecimento diferem umas das outras, embora a nós pareçam as mesmas. Aquela de reconstrução mais recente é a edição mais atualizada do acontecimento, como a última edição de um livro. Em outras palavras, o passado está sempre sendo reescrito. Ele é produto do presente tanto quanto ajuda a construí-lo, dialética nem sempre percebida com facilidade.
Isso tudo pode levar um ingênuo extremista da objetividade a declarar impossível um livro de memórias. Consideradas as diversas "edições", como afirmar a veracidade das memórias da última edição, aquela do livro de memórias publicado em certo momento? Podemos fazer um paralelo com o estudo da história. Suas fontes primárias, constituídas dos documentos existentes nos arquivos, passam pelo crivo da subjetividade de quem os escreveu a partir de memórias que ele tinha dos acontecimentos. Lembrar o fato de o autor do documento-fonte ter também consultado documentos não ajuda porque se percorrermos distância suficiente ao longo dessa corrente em direção ao passado chegaremos ao primeiro relato escrito com base apenas em memórias.
Narrativas de lembranças assim como da história precisam apenas ser verossímeis, Não podem ser reconstituições fiéis no sentido fugidio de retratar o que "realmente" aconteceu. Eles configuram em verdade um processo criativo inconsciente, exceto para os estudiosos do assunto. Mesmo assim, estes não conseguem dele escapar. Não fora assim, narrar nossas próprias memórias, expressão de nossa individualidade, seria uma tarefa impossível de ser levada a cabo e, assim, desintegradora da personalidade, como seria igualmente impraticável a tentativa de narrar a história das sociedades.

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