26 de agosto de 2007

A reforma ortográfica

Jornal O Estado do Maranhão
Estamos próximos da entrada em vigor de uma reforma ortográfica, inicialmente no Brasil, São Tomé e Príncipe, e Cabo Verde e depois em Portugal e nos outros países lusófonos, signatários, como esses três, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Os objetivos do Acordo são de reduzir os custos de produção e tradução de livros, facilitar a difusão bibliográfica e melhorar o intercâmbio cultural entre os países de fala portuguesa, que têm em conjunto população de 240 milhões. Para isso, eles concordaram em alterar a maneira de grafar algumas palavras. As mudanças atingirão percentagem muito pequena da língua escrita em cada um deles, de tal forma a se poder chegar a bem-vinda simplificação e a padronização próxima de 100%.
O leitor terá idéia de como os lusófonos andaram até aqui em dissintonia com as nações com herança lingüística comum sabendo disto. O espanhol, falado por cerca de 450 milhões de pessoas em 19 países, tem apenas uma ortografia oficial. Acontece algo semelhante com o árabe em outros 21 países com 250 milhões de habitantes. Ele é escrito numa sistema moderno unificado, em todos os países onde é falado e, na leitura do Corão, até mesmo nos não-árabes.
Há custos associados à mudança, é evidente, além de resistências culturais, como houve em reformas anteriores. Numa delas, a de 1910, nos livramos da palavra farmácia com ph, e de assemelhadas. Mas, não se diga que custos são a mesma coisa que desvantagens, sem consideração dos benefícios decorrentes da alteração.
Pensemos na produção de livros. Feitos no Brasil ou em Portugal, atingirão público maior do que aquele que alcançariam com grafias divergentes entre os dois países, sem provocar rejeição à forma escrita da língua, após um período de adaptação. Haverá redução de custos pelo aumento da escala de produção para atender a esse mercado ampliado, como ocorre com os livros impressos na Espanha. Exemplos são as recentes edições de Cien años de soledad, de García Marquez, e do Dom Quijote de la Mancha, feitas pela Real Academia Española e Asociación de Academia de la Lengua Española em conjunto, que circulam na Espanha e na América do Sul sem barreiras ortográficas. Tal iniciativa seria impossível entre os países lusófonos. Imaginemos também outros custos associados à duplicidade nos documentos internacionais oficiais em português escrito do Brasil e de Portugal, em sítios na internet, programas de computador, etc.
Amostras das mudanças. 1) O hífen não será usado quando o segundo elemento começar com s ou r, sendo essas consoantes dobradas; em vez de anti-religioso, “antirreligioso”, contudo permanecerá como exceção quando o prefixo terminar com r; 2) Não será mais utilizado o acento diferencial, suprimindo-se as poucas exceções (como em pôde) á regra geral que quase os aboliu na reforma de 1971; 3) O trema será eliminado de todo; 4) O acento circunflexo deixa de ser usado em flexões verbais como crêem, que passa a “creem”, ou em palavras terminadas em hiato como vôo, a ser escrito voo; 5) Não se usará mais o acento no ditongos abertos “ei” e “oi”, como em idéia, cuja grafia será “ideia”; no i e u tônicos precedidos de ditongos, como em feiúra (fica feiura); e nas formas verbais como averigúe, a ser escrito “averigue”; 6) Em Portugal, serão eliminados o c e o p mudos: acto passará a “ato”.
Não há data para entrada em vigor do Acordo, mas o MEC já prepara licitação com o fim de comprar livros didáticos com textos elaborados sob as novas regras, a serem usados em 2009, e escolas particulares estão atualizando suas apostilas. A editora Sextante irá incorporar a nova ortografia a seus livros assim que forem lançados ou reimpressos.
A reforma é boa e em pouco tempo irá beneficiar os usuários da língua em todo o mundo.

19 de agosto de 2007

As agências e "a gente"

Jornal O Estado do Maranhão
O presente caos brasileiro, explícito depois do desastre do Airbus da TAM que matou quase 200 pessoas e mostrou completa falta de coordenação entre órgãos encarregados do setor aéreo brasileiro, trouxe a debate público o papel das agências reguladoras no Brasil. O governo, depois de desvirtuá-las, enchendo-as de companheiros ansiosos por mostrar seus conhecimentos especializados em capturar bons empregos públicos e que, no caso da de Aviação Civil, Anac, de vôo de avião entendem tanto quanto eu do idioma mandarim, quer agora politizá-las, atribuindo ao Executivo o poder de demitir seus diretores. Querem matá-las, jogando fora juntos o bebê e a água do banho.
Preservadas de politicagem nos países desenvolvidos, elas desempenham, livres de interferências perniciosas dos governos, papel importante na economia. Seus diretores, aprovados pelo Legislativo, têm mandatos fixos, não coincidentes como o do presidente da República, que não os pode demitir, e trabalham com a independência necessária a entidades reguladoras e fiscalizadoras de mercados. Só assim têm a possibilidade de fazer estes funcionarem de maneira adequada, dadas suas características estruturais.
Nossa aviação não-regional possui apenas duas empresas, a TAM e a Gol. Constitui, por conseguinte, mercado duopolista. No entanto, a Anac, corrompida pelo lulo-petismo, foi transformada em órgão de afago das companhias e não, como deveria por imposição legal, de regulação e fiscalização. Tem entre seus dirigentes pessoas ligadas às duas e muito contribuiu para o desastre do aeroporto de Congonhas. Hoje, seis das dez agências são presididas por filiados ao PT ou ao PC do B, partidos da base aliada do governo. Outros nove diretores são ou foram filiados a outros partidos.
De outra parte, por contingenciamento de recursos de um monte de outros órgãos que batem cabeça na área, investimentos indispensáveis não foram feitos nas pistas dos aeroportos e na modernização dos obsoletos sistemas de controle de tráfego. Nas estações de passageiros, sim.
Decorre de compreensão distorcida ou até de completo desconhecimento dos mecanismos da economia de mercado grande parte da inércia oficial. Assim como há um marxismo vulgar, existe um liberalismo vulgar e apressado, seguido pelos companheiros do PT no governo, a cujas virtudes capitalistas selvagens, aderiram com alegria a toque de caixa registradora. Recém-convertidos, parecem acreditar que as regras do mercado são licenças para lutas hobbesianas, vale-tudo morais na arena econômica.
Não se deve colocar dúvidas sobre a busca do auto-interesse no jogo do mercado, dentro da lei, como responsável pela criação da riqueza das nações. No entanto, não basta isso. A ética é fator de produção tão importante quanto qualquer outro porque a qualidade dos jogadores, isto é, sua aderência ou não a princípios éticos, afeta as próprias regras do jogo econômico. Jogadores ruins produzirão regras ruins, deteriorando o desempenho da economia. Isto acontece aqui, a começar pelo nosso pernicioso jeitinho. O combate à corrupção florescente na ausência desses princípios, é, portanto, não apenas uma questão de moralismo pequeno-burguês, mas um requisito essencial à prosperidade nacional.
A tentativa de enfraquecimento das agências reguladoras tem origem em correntes petistas opostas: uma, oficialista, acredita no capitalismo aético, sem freios e, em especial, sem órgãos de regulação e fiscalização autônomos, isentos de pressões políticas ilegítimas; outra, formada de opositores de dentro do próprio PT, incensa o estatismo desvairado e corrupto. A depender do atraso cultural delas, a prosperidade nacional estará longe do Brasil por muito tempo ainda.
No linguajar companheiro: “a gente” precisa das agências.

5 de agosto de 2007

Um livro de Sálvio Dino

Jornal O Estado do Maranhão
Nas notas para o que seria uma segunda edição do Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão, de César Marques, Antônio Lopes se refere muitas vezes a O sertão: subsídios para a história e a geografia do Brasil, como sendo de Parsondas de Carvalho, alusão que surpreenderá os leitores familiarizados com esse livro, pois é a irmã dele, Carlota Carvalho, nas duas edições, a primeira, de 1924, e a segunda, de 2000, quem nela é apresentada como autora. Lopes cometeu simples engano ou teria outras razões para atribuir a autoria ao irmão de Carlota? A resposta a essas perguntas é uma das tarefas a que se propõe Sálvio Dino, da Academia Maranhense de Letras, no seu Parsondas de Carvalho: um novo olhar sobre O sertão, com prefácio de Milson Coutinho, também da AML, obra dada a público no dia 28 de julho, em Montes Altos, onde Parsondas foi enterrado há 81 anos.
O objetivo central de Sálvio, no entanto, não é esclarecer dúvidas de décadas sobre quem de fato escreveu O sertão , que tem valor informativo e analítico e serve como representativo (outro é A Balaiada, de Astolfo Serra) da forte influência entre nós do pensamento positivista dominante no decorrer das primeiras décadas da República e que tem em Euclides da Cunha o representante mais conhecido no campo literário, com Os Sertões, cujos ecos se percebem até na semelhança dos títulos.
Sálvio pretende, antes, tornar de carne e osso seu biografado, retirando-o, por assim dizer, por breves momentos, do campo da mitologia sertaneja, em que ele aparece com dimensões quase sobre-humanas, homem de ação, trabalhador e corajoso, mas de cultura cosmopolita, espirituoso militante das letras reconhecido “lá fora”, enfim, retirando-o do imaginário popular a fim de projetá-lo, com o realismo possível de ser fornecido pela pesquisa histórica, à condição de ser humano com defeitos e virtudes.
Tendo essa intenção do autor em mente, podemos bem avaliar as informações, resultantes de exaustivas pesquisas em fontes documentais e orais, sobre a vida de Parsondas: o nascimento em Riachão, a infância e juventude, a morte, passando pela viagem a cavalo ao Rio de Janeiro, com o fim de denunciar os desmandos do governo do estado, e o processo a que teve de responder por suposto desacato a autoridades, que de qualquer modo eram reconhecidamente arbitrárias e corruptas.
Valiosa contribuição ao entendimento de nossa história nos dá, ainda, Sálvio, ao anexar a seu trabalho a “Guerra do Leda”, título com que passaram a ser conhecidos os artigos publicados por Parsondas, em A Pacotilha, de São Luís, entre janeiro de 1902 e fevereiro de 1903, conjunto a que ele então chamou “O Grajaú: últimos acontecimentos do Estado do Maranhão no século XIX”, vivo retrato da violência política do início do século XX no sertão maranhense, e que mostra os sofrimentos inimagináveis padecidos pelo povo e lideranças oposicionistas durante o governo de Benedito Leite.
Mas, quem afinal escreveu O Sertão? Parece-me correta a atribuição da autoria a Parsondas, sendo o cotejo estilístico de outros escritos dele com este evidência bastante convincente. Mostra-nos Sálvio também a presença no texto de enganos quanto ao gênero de quem o escreveu, reveladores, em diversos trechos, de um autor masculino, não feminino, e observa a impossibilidade, digamos cultural, de Carlota o ter escrito. A motivação do verdadeiro autor, ao dar o crédito da obra à irmã, estaria em relação incestuosa entre eles, de mais difícil comprovação, embora haja relatos disso na tradição oral da região.
Sálvio Dino, num estilo saboroso de legítimo sertanejo, escritor amadurecido, seguro de seu ofício, como já demonstrou outras vezes, acaba de adicionar contribuição relevante aos estudos sul-maranhenses.

Machado de Assis no Amazon