24 de junho de 2001

O livreiro Antônio Neves

Jornal O Estado do Maranhão
É batata: — E a lancha de Chocolate, quando vais falar sobre ela? A pergunta é de meu amigo Celso Veras, gerente regional estadual em Codó, sempre que nos encontramos. Acontece que falei uma vez aqui acerca da época em que não havia a ponte do São Francisco nem avenidas na margem direita do rio Anil. Para ir-se até a Ponta da Areia, saindo da Beiramar (a travessia era longa para minha medida curta de menino), tinha-se de pegar uma embarcação. Mas, da lancha de que ele me fala não guardei lembrança alguma.
Digo a Celso ser mais justo falar sobre o pai dele, Antônio Neves, de quem tenho clara lembrança, e do tempo, já com a ponte inaugurada, em que eu ia à livraria Galeria dos Livros, de seu Antônio, na Rua Grande, 398.
Ali comprei os primeiros livros por mim mesmo escolhidos, embora não ainda pagos com meu próprio dinheiro. Eu chegava tímido da casa de minha avó Marcelina, na rua Cândido Ribeiro, perto da livraria. Ficava olhando fascinado os livros nas prateleiras. Ele, com seu jeito espontâneo, simples e agradável, percebia meu deslumbramento de adolescente e dava sempre um jeito de me deixar – e deixar todos os freqüentadores – à vontade.
Minhas compras eram no sistema antigo do fiado. Se, no fim do mês, quando ia pagar o débito, meu pai, que nunca regateava, dizia brincando que a conta estava alta, seu Antônio vinha em meu socorro: — Deixa o menino ler, Moreira! Eles eram irmãos de maçonaria.
 Aqueles não eram mais os livros que minha mãe, Maria, comprava para meu uso no Colégio Santa Terezinha, das irmãs Valois, ou no colégio Marista. Eram os que eu lia por gosto, pelo prazer da descoberta do universo sedutor da literatura.
Lá tive o primeiro e definitivo encontro com Machado de Assis, na edição da Editora Cultrix, anotada por Massaud Moisés, em oito volumes. Eu os levei para casa no dia 22 de novembro de 1964, com 16 anos de idade. Há algum tempo já havia adquirido o vício sagrado e profano da leitura do qual nunca quis me libertar. Quando chegar meu dia de encontrar o grande desconhecido serei ainda prisioneiro dele.
A Galeria dos Livros, além de lugar de inquietação para nós, leitores compulsivos, como todas as livrarias, era o ponto de encontro dos intelectuais que iam lá conhecer os lançamentos recentes, divulgar seus livros em noites de autógrafos e encontrar-se nos sábados pela manhã.
Essa forma de lançar livros, autografados pelo autor, foi inaugurada por seu Antônio e primeiro usada, com muito sucesso, por Bandeira Tribuzi, no lançamento de Pele e osso, em 1970. Nessa época, eu trabalhava com Tribuzi no Banco de Desenvolvimento na esquina da rua do Sol com Santaninha. Era em um prédio antigo que desabou depois para deixar livre o espaço para um estacionamento particular.
A Galeria funcionou de 1960 a 1976. Tornou-se importante para a vida cultural da cidade, sob a direção daquele homem de grande capacidade empreendedora. A independência de espírito de Antônio Neves não permitiu qualquer discriminação contra os que queriam lançar obras com ele. Essa qualidade era defeito para a ditadura militar que considerava a livraria lugar de reunião de comunistas. Velhos maus tempos!
No início dos anos setenta tornei-me amigo de Celso Veras. Durante algum tempo íamos de manhã cedo “fazer o Cooper” no então pouco povoado Calhau na companhia de Joaquim Emílio, Manuel Alves e outros “atletas”. Mais tarde, nos anos oitenta, fui Secretário de Planejamento e ele trabalhou comigo na coordenação do Projeto Nordeste. Celso foi preso arbitrariamente pela ditadura, assim como o também gerente regional, adjunto, de Imperatriz, Manuel Ventura, meu colega de ginásio no Marista.
Há muito tempo não temos mais livreiros na cidade, daqueles com modos de missionário, como Antônio Neves. É pena, porque precisamos deles. Não foi inútil, no entanto, seu esforço. Os que pudemos tirar proveito de seu belo trabalho teremos sempre os livros, tesouros do espírito que ele descobria para nós.

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