31 de dezembro de 2005

Papagaios, Patos, Gatos E Perus

Jornal O Estado do Maranhão  
Seu Antônio, viúvo, aposentado solitário, morador de Brasília, tinha um papagaio havia mais de quarenta anos, sua única companhia depois da morte da mulher. (Não sei se o animal tem vida tão longa, confio na informação da TV.). Tinha também um vizinho inimigo de papagaios, à semelhança daquele outro de Timon, no Maranhão, que não gostava de cachorros, em especial de Bingo, que o mordeu, despertando-lhe a ira, disso resultando denúncia à polícia e prisão do cachorro, humano também (como o papagaio), na divinatória classificação do ex-ministro do Trabalho, Rogério Magri, pois, como se vê hoje, bicho virou gente, a julgar por clínicas de estética, hotéis, academias de ginásticas e salões de beleza que antes serviam apenas aos chamados seres racionais, mas agora prestam serviços aos clientes de quatro patas, que fazem gato e sapato de seus pretensos senhores.
O caso do viúvo, porém, é outro. Ele queria apenas companhia confiável, alguém para lhe aliviar a solidão de eremita urbano. Escolheu um papagaio. O morador do lado, com certeza um defensor da natureza preocupado com os bichinhos, desde que ele não saia do conforto de sua poltrona em frente da televisão, resolveu dar um presente de Natal, ou de Ano Novo, e de grego, ao aposentado e o denunciou às autoridades encarregadas da defesa da vida selvagem. Selvagem, todavia, foi a reação da burocracia estatal, opressora contumaz do cidadão ordinário (ordinário no sentido de comum e não de falto de qualidades.). O papagaio foi depressa levado pelos fiscais, não com a finalidade de ser mandado de volta à natureza, pois a ela ele não se readaptaria, depois de tempo tão alongado em apartamento, mas para continuar engaiolado no jardim zoológico da cidade onde a poucos faz bem, mas de seu ex-companheiro ameaça a vida, pela ausência involuntária, conforme se percebeu da lamentação impotente do pobre homem na televisão.
Num país como o nosso onde as leis não pegam, as florestas são devastadas, os esgotos são lançados em quantidades crescentes nos corpos hídricos, a poluição do ar aumenta de maneira exponencial com o crescimento das zonas urbanas, o Ibama, órgão encarregado de fazer cumprir a legislação ambiental, de fato a fez cumprir com rigor, por fim mostrando a que veio. Morra o homem, viva o papagaio, que de qualquer modo viveria, e bem viveria, com seu dono, melhor do que com o Ibama, e prevaleça a aplicação irracional, insensível, injusta e burocrática da lei. Se a questão é apenas produzir um papel qualquer autorizando a guarda do animal por seu Antônio, qual a razão então para tomar o papagaio e depois devolvê-lo ao apartamento, supondo ter sido essa a intenção dos fiscais? Queriam, tão-só, fazer o homem sofrer? Mostrar um serviço que não prestam nos assuntos importantes de verdade? Enfrentariam com a mesma audácia contrabandistas de madeiras nobres da Amazônia?
Não culpo, no entanto, os funcionários. Num órgão que não os treina, não lhes dá incentivos nenhum, não os remunera de forma adequada nem lhes equipa bem e, além disso, recebe apoio mínimo do governo, como tem sido regra nesta e em quase todas as administrações federais e estaduais, hábeis em fazer discursos ecologicamente corretos sem contrapartida de medidas concretas, alguma coisa esses servidores irão mesmo fazer a fim de justificar a manutenção de suas funções. Nem sempre boa coisa sairá dessa combinação de infelizes circunstâncias.
Enquanto não se concertam as coisas, pessoas como seu Antônio, que já passaram o tempo de posar de gato, pagam o pato, só por terem papagaios. Mais seguro seria criarem perus de festa de fim de ano. Pelo menos com esses o Ibama não se preocuparia, mesmo assados no forno, depois de forçados a beber cachaça e degolados.

18 de dezembro de 2005

Ratos e Homens

Jornal O Estado do Maranhão 
Pesquisas científicas que procuram maneiras de utilizar células-tronco em seres humanos provocam intensos debates, pelas dúvidas que suscitam no campo da ética. Ao contrário das demais células, elas são capazes de se diferenciar, constituir diferentes tecidos em nosso organismo e de se auto-replicar. No entanto, tão-só as embrionárias, assim chamadas por serem encontradas nos embriões, podem se diferenciar ou se transformar em qualquer um dos 216 tecidos do corpo humano. O restante das células-tronco podem, em um caso, modificar-se em quase todos os tecidos, menos na placenta e anexos embrionários; em outro, se diferenciam em poucos; no último caso, em apenas um tecido. Elas poderão ser úteis, para citar somente dois casos de aplicação promissora, na cura da diabetes e na regeneração de lesões graves. (Não, eu não me tornei de repente um especialista no assunto, só usei a internet para obter essas informações no sítio do jornal O Estado de S.Paulo, na seção sobre educação).
Pois bem, acabo de ler na imprensa que o biólogo paulistano Alysson Muotri, à frente de equipe de cientistas do Instituto Salk de Estudos Biológicos, nos Estados Unidos, injetou células-tronco embrionárias humanas (CTEHs), ainda na barriga da mãe, no cérebro de filhotes de ratos. Elas se integraram com perfeição a estes, criando uma cobaia que passou a ter um órgão em parte humano, pelo menos do ponto de vista físico. Após o nascimento, os cientistas os sacrificaram com o fim de examinar sua estrutura cerebral. Descobriram que as CTEHs se espalharam por toda a massa craniana dos filhotes e conectaram-se com as células comuns. Na opinião do Dr.Allysson, as perspectivas são boas: “Poderíamos transplantar CTEHs derivadas de pacientes com Alzheimer [por clonagem] para o cérebro de animais normais e observar a capacidade de integração e diferenciação delas”. Eles funcionariam como modelos de doenças neuronais e seriam de fácil observação.
Se, como acabamos de ver, é possível injetar células humanas em animais por que não seria admissível o processo inverso? Isso com certeza não foi feito ainda pelos cientistas, mas não tenho dúvida de que a natureza já o fez há muito tempo, em verdade desde a humanidade se pôr de pé e andar ereta, olhando para a frente, achando-se superior a seus parentes do reino animal, com o nariz levantado, como a grã-fina de Nélson Rodrigues, no Maracanã. Em algum ponto da evolução das espécies (com a devida licença dos criacionistas) houve a transferência de células-tronco de ratos para certo tipo de seres humanos. Comprovaremos tal afirmação se observarmos com atenção o comportamento de exemplares com forma humana e mente de rato, que agem o tempo todo como roedores, sendo a comparação desfavorável a estes, que roubam e roem, quando roubam e roem, apenas pela instinto de sobrevivência e não pelo desejo de ostentação de riqueza e vontade de mando, intrinsecamente ligados ao tamanho do patrimônio desse pessoal.
A cena política brasileira nos fornece hoje incontáveis exemplos disso, que não é uma teoria, mas uma constatação: caixa dois, caixa três, recursos não contabilizados, mensalão, contas no exterior, dólares na cueca, mentiras nas CPIs do Congresso, surtos de “eu não sabia, não vi, estava bêbado”. Humanos com células-tronco de ratos, auto-intitulados, até bem pouco tempo atrás, monopolistas da honestidade e da pureza de intenções, roubaram dinheiro público, mas roubaram também as esperanças de seu seguidores. Agora tudo que desejam é ser iguais a quem acusavam de ratos, para assim justificar seus atos. Se todos são roedores, pensam, ninguém corre o risco de cair na ratoeira nem esta será sequer armada, em concordância com a oposição, que muito já comeu de seu delicioso queijo suíço.

11 de dezembro de 2005

Duas Mulheres

Jornal O Estado do Maranhão  
Aquela mulher que vemos ali acaba de se levantar. Irá silenciosa preparar o café da manhã para a família pobre de um bairro pobre, na manhã que mal se inicia, depois de tomar banho de água fria, estarei ficando velha, perguntará a si mesma no banheiro, e pensará no marido, depois chamará os filhos para a escola, o mesmo marido para o trabalho, a todos para a vida diária corriqueira, sem novidades, exceto aquela que todos saberão no fim do dia, de que ela só terá consciência no último instante e apenas por um brevíssimo momento ou quem sabe não terá, não compreenderá a origem da sensação estranha de calor e leve dor em todo o seu frágil corpo. Arrumará as roupas de todos, lavadas na noite anterior, depois que chegou tarde do trabalho, fará recomendações, não cheguem tarde, cuidado na rua, lavará a louça e deixará a mesa pronta para o almoço pois àquela hora ainda não estará de volta. Agora chama a filha, hoje tu vais comigo, é sábado, tem serviço extra, a patroa precisa de nós, estou com uma dorzinha de cabeça, não sei o que é, poderás me ajudar, sempre é um dinheirinho a mais e me aliviará de pegar no pesado, a filha dirá que vai mas não quer voltar tarde.
Logo tomarão o ônibus lotado, a passagem está cara, os assaltos não param, o motorista dirige em alta velocidade, se não correr será demitido, até chegarem as duas, como acabam de chegar, à parada certa, na avenida do bairro de gente rica. A mãe falará no caminho sobre o trabalho, é cansativo, não se pode deixar nada empoeirado, a comida tem de sair na hora certa, emprego está difícil, falará sobre os outros filhos, os vizinhos, o vira-lata de estimação, a filha parecendo ouvir, mas pensando em que mesmo? Quem poderá agora saber? Talvez no namorado, na festa de hoje à noite, afinal é sábado, dia de divertimento, de não pensar a sério na vida, talvez no amor, na felicidade ou na infelicidade, dia de encontrar os amigos que, como se verá mais adiante, virão, eles, vê-las à noite mas elas não os verão jamais. Já desceram, vão andar alguns metros até a casa dos patrões, não precisarão atravessar a avenida. Chegaram e bateram. Bom dia.
Os dias não têm sido bons, as contas estão aí para pagar, é água, é luz, e o dinheiro sempre pouco, não dá pra nada, comprar os livros da escola das crianças é um sufoco, as roupas nem falar, mas, não demora muito, eles vão começar a trabalhar, não vai ser fácil, mas acabam arrumando emprego, dá pra estudar e trabalhar ao mesmo tempo, é o jeito, pelo menos estão estudando, hoje em dia tá tudo difícil com estudo, imagina sem estudo. O dia passa depressa, tem muita coisa pra fazer, mas hoje tem ajuda, fica mais fácil, daqui a pouco chega a hora do almoço, a comida está bem feita, parece de restaurante, o salário bem que podia ser maior, dava pra pagar as dívidas, comprar mais uns presentes no Natal. Depressa o tempo passa, que horas são? Tá na hora de voltar pra casa, até logo, não, até segunda-feira, a gente volta.
As duas mulheres agora caminham na noite, daqui a pouco alcançarão novamente a avenida, terão de atravessá-la, olharão para um lado e outro, quem sabe vem algum louco em velocidade, a mãe tomará a mão da filha, dessa forma se sentirão mais seguras, olharão novamente e caminharão para o outro lado e só a mãe verá as luzes dos faróis de dois belos e caros automóveis se aproximando lado a lado, como as duas, ainda tentará puxar a filha, protegê-la com uma só mão e com a outra parar os carros, depois sentirá uma onda de calor e fraca dor no corpo, como se o dia lhe tivesse tirado o vigor, e então não sentirá mais nada. Mais tarde a família e os amigos virão chorar. Não haverá protestos públicos, não haverá indignação coletiva, não haverá manchetes por mais de dois dias, não haverá nomes nem haverá culpados. Haverá o nada.

4 de dezembro de 2005

Brasileirão

Jornal O Estado do Maranhão 
O campeonato brasileiro de futebol, o Brasileirão, chega ao fim com sucesso hoje. Seria melhor não fosse pelo juiz que manipulou algumas partidas, anuladas de imediato pelo tribunal de justiça desportiva. A rapidez da ação evitou as usuais polêmicas, de resultados imprevistos sobre o andamento da competição.
O acerto da forma de disputa, a mesma adotada na Europa, levou a que as duas equipes mais eficientes neste ano, Corinthians e Internacional, de Porto Alegre, sejam as únicas com chances de alcançar o título, como, aliás, acontece quando o merecimento prevalece. A razão do êxito do Brasileirão está justamente aí, num sistema de pontos corridos, com rebaixamento e jogos de todos contra todos em dois turnos. Não é o caso da Copa do Brasil, torneio cujo objetivo é dar oportunidade de vencê-lo a times sem tradição nacional, com um pouco de sorte em pequeno número de partidas eliminatórias. Os méritos dessa boa organização são da CBF.
Quem não se lembra da reação da maioria dos times às inovações impostas há poucos anos pela entidade? Muita gente preferia manter, por meros interesses imediatistas e maus hábitos o sistema anterior, irracional e confuso. Este impunha inusitados critérios de classificação tais como renda, média de público e performance em temporadas anteriores. Juntava times com excelente campanha com os de fraca, para a formação de grupos, subgrupos e grupelhos, em fases e mais fases, até o último jogo, definidor do campeão num tudo ou nada. Em 2002 o Santos chegou em 8º lugar por pontos corridos e acabou campeão no torneio eliminatório final.
Esses e outros critérios muito pouco tinham a ver com atuação no campo e acabavam premiando os medíocres do futebol. Só por coincidência ganhava o melhor. Quantas vezes arbitragens fracas, ou até mesmo desonestas, ou o acaso de uma partida ruim em uma solitária ocasião, não destruíram em poucos minutos o trabalho de meses, na vigência desse sistema maluco de antes? Os instáveis regulamentos antigos favoreciam os times grandes e tradicionais, que, por terem criado fama, podiam se deitar na cama. Quem não tivesse tradição acabava excluído e impedido de crescer. Por outras palavras, era um sistema avesso a evolução, em prejuízo do futebol brasileiro.
Pois a CBF conseguiu acabar com essa confusão. Com a organização de agora, o Brasileirão sempre premiará o melhor. O regulamento não joga o destino dos clubes em um jogo apenas, mede o desempenho deles durante o desenvolvimento do campeonato, e não em uma partida só, e, assim, tende a ficar imune a tentativas de alterações depois do início da disputa. O acaso não tem vez na determinação do campeão, embora possa ter considerável influência no vencedor de cada encontro, como é da essência dos esportes coletivos e do futebol em particular.
Existem outras características capazes de manter o certame atrativo. Os 4 primeiros colocados representam o Brasil na Taça Libertadores da América e os 7 seguintes, na Copa Sulamericana. São 11 times com participação garantida em torneios internacionais. Na outra ponta, os últimos 4, hoje, de um total de 22 (em 2006 serão apenas 2 de 20) têm de lutar com o fim de evitar o rebaixamento à série B, de acordo com o regulamento, seguido com rigor nos últimos anos, sem as antigas viradas de mesa. Os times situados entre a 12ª colocação e a 18ª lutam, por um lado, com o objetivo de subir para a Taça Sulamericana e, de outro, evitar o rebaixamento. O interesse é mantido permanentemente.
Avançamos bastante. Falta ajustar nosso calendário anual ao da Europa, com o objetivo de evitar conflitos dos jogos da Seleção com os dos times de lá, onde muitos jogadores brasileiros jogam, evitando também que estes tenham de atuar pelo Brasil durante suas férias européias.

Machado de Assis no Amazon