20 de abril de 2003

Tios e sobrinhos

Jornal O Estado do Maranhão 
O garoto, nos seus quinze anos, deitava-se em uma alvíssima rede, acariciado pela brisa salgada da praia de Itapeua, em Cajapió, e lia a tarde inteira. Usaria os óculos de lentes grossas e armação fina que ainda usa setenta anos depois, a destacarem-lhe o nariz de remotos antecedentes judeus, prováveis cristãos novos em Portugal, ou quem sabe de árabes? Seria possível usar tal objeto naquelas terras tão pobres, em tempos tão antigos, mas tão recentes, hoje, na sua memória?
A fascinação pela leitura veio, por certo, quase ao mesmo tempo da consciência de ver a luz e de estar no mundo. Quase não se lembrava de ter aprendido a ler. Era como se, ao nascer, já possuísse todas as letras da língua portuguesa. Embora sem a mesma fascinação, seu pai, Luís, era um grande leitor. De suas idas a São Luís trazia os romances, jornais e revistas que a família lia. Viajava nos precários igarités e lanchas que atravessavam bravamente o terrível Boqueirão, destruidor de embarcações e criador de histórias fantásticas, iguais às dos livros.
Dali do alpendre de uma fazenda quase a beira-mar, o garoto sentia o cheiro das marés, que lhe impregnaria o olfato para sempre, e via correrem as garças, as jaçanãs e os maçaricos na areia, com suas pernas diáfanas, de passos curtos e rápidos, e pescoços que pareciam tirar movimento do seu roçar numa roda dentada invisível, dando a impressão de avançarem, os pássaros, em pequenas paradas e arrancos ali na Baixada Maranhense, um pequeno Pantanal Mato-Grossense no Maranhão.
Pensaria no tio paterno, Inácio? Talvez nem o conhecesse. Apenas ouvia falar dele, mas não o tirava da cabeça e dos sonhos. Jornalista de oposição em São Luís, poeta, romancista, emigrara para Vassouras, no Rio de Janeiro. Era um sábio, pensava o garoto. Vencera com a força herdada de seus maiores e a sabedoria adquirida em suas leituras. Se o tio fora capaz, ele seria. Outros, os heróis dos romances e contos, igualmente andaram por terras distantes, sem medo do desconhecido. Ele também, a fim de não se dobrar ao destino, se libertaria da pequenez de seu ambiente, sem ninguém saber de nada até sua chegada à terra prometida, a grande cidade, distante milhares de quilômetros daquelas pobres terras.
Choraria sua pequena, mas sempre forte mãe, Marcelina, até o ponto de salgar mais ainda aquelas águas próximas, tal como as mães dos heróis de Portugal, terra dos pais dela, de que nos fala Pessoa? Passaria “além da dor”? Entenderia o desejo dele de elevar-se acima daquele indigente chão com seu tempo mais eterno do que os tempos do mundo lá fora, de tão igual a si mesmo, como o garoto parecia senti-lo?
Experimentaria um vago e frágil consolo o pai, de mistura com a aflição de separar-se do filho mais velho, ao sentir na fuga um prenúncio de vitória longe de sua proteção, um sinal de coragem de quem não hesitaria ante “o perigo e o abismo”? Haveria espanto e mudez nos irmãos? Como saberia o garoto, estando depois tão longe?
Ele foi sem se despedir, clandestino, talvez, no navio até o Rio de Janeiro, mas passageiro de primeira classe na vida e na literatura. Foi fazer aquilo que sempre quis, tornando-se uma autoridade brasileira na obra de Graça Aranha, especialista em Clarice Lispector, jornalista, subsecretário de Cultura do Rio, diretor do Museu Histórico Nacional e do Conservatório Nacional de Teatro. Quis, dessa maneira, chegar perto da sempre esquiva felicidade, mantendo intacto até hoje seu amor pelos livros. Teve outro grande amor, Elza, com quem se casou. Tiveram Eunice, Luís e Ruy, meus primos cariocas.
Não sei, porém, se terá claro este outro feito seu, tão admirável quanto o outro de realizar sua vocação: meu tio José Cursino dos Santos Raposo, a quem a família reencontrou muitas décadas depois, mostrou a todos, assim como o fizera seu tio Inácio Raposo, a verdade dos versos do poeta, de que “tudo vale a pena se a alma não é pequena” e a este sobrinho que não é vã a luta com as palavras.

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