28 de setembro de 2003

A escola não entrou

Jornal O Estado do Maranhão
Meu fim-de-semana passado foi culturalmente popular, pois passei boa parte do domingo ouvindo velhos boleros, da época em que todo mundo os ouvia, importados de Cuba, junto com seus bongôs e congas, embora nascidos na Espanha. Nesse tempo, ninguém lhes lançava “acusação” de ser estrangeiro e, portanto, indigno de boa recepção por estas bandas. Ouvi os conhecidos Perfume de Gardênia, Besame Mucho, Contigo em la Distancia, Vereda Tropical e muito mais. Só não ouvi Tristezas, considerado o primeiro bolero, composto pelo mulato cubano Pepe Sánchez, por volta de 1883. Sua letra diz amarguradamente: “'Tristezas me dan tus quejas mujer/ profundo dolor que dudes de mi/ no hay prueba de amor que deje entrever/ cuanto sufro y padezco por ti”.
Depois do bolero, passei a ouvir seus parentes próximos. Soaram, assim, o mambo e o cha-cha-cha. Mais adiante, a lambada, o reggae, o samba, a música sertaneja, o pagode e qualquer outro ritmo popular que se possa imaginar. A sessão durou o dia todo e entrou firme pela noite, sem uma pausa sequer, sem um momento de silêncio, sem um ínfimo descanso.
Lá pelas dez horas da noite, eu comecei a achar que a jornada musical daquele dia de domingo seria até agradável, se não estivesse sendo imposta. O caso é este. Encontro qualidades e defeitos em todo tipo de música, popular ou clássica, e não tenho, ou procuro não ter, preconceito contra nenhuma, sem deixar de ter minhas preferências. Como todo mundo, porém, tenho o direito de ouvir as canções de minha predileção, na hora e da maneira que me dá na telha. No entanto, um maldito bar, a mais de uma quadra de distância de minha casa, parecendo, no entanto, estar logo ali ao lado, obrigava-me, e a todos em um raio de centenas de metros, a ouvir, em altíssimo volume, o que não queríamos naquela hora. Indiferente ele seguia incomodando um monte de gente.
Conto essa história aos leitores porque acredito que milhares de outras pessoas enfrentam situação semelhante, sem qualquer providência por parte dos encarregados de reprimir a poluição sonora nesta cidade. A legislação estadual atribuiu, equivocadamente, deve-se dizer, a função de fazer cumprir a chamada Lei do Silêncio ao órgão estadual de meio ambiente. Fui Secretário do Meio Ambiente do Estado e conheço, portanto, com base na minha própria experiência, as dificuldades de combate às agressões sonoras sofridas diariamente pela população de São Luís. Mas, sei também que o mínimo pode ser feito. A Gerência de Meio Ambiente – GEMA poderia tomar a iniciativa de propor a revogação da atual lei e a aprovação de outra. Esta atribuiria aos municípios a repressão dessa prática desrespeitosa, visto ser esse um assunto municipal, no meu entender. Além disso, ainda que a GEMA conseguisse fazer cumprir a lei em São Luís, uma hipótese pra lá de otimista e irrealista, não conseguiria fazê-lo nos restantes duzentos e dezesseis municípios do Estado.
Este registro poderá talvez um dia, daqui a cinqüenta ou cem anos, ser lido por um catador de curiosidades antigas nos jornais do longínquo ano de 2003. Ele saberá, então, que nossa educação era nenhuma e que, além de agredirmos nossos vizinhos dessa forma, nós também, como é freqüente nestes dias primitivos, buzinávamos a toda hora sem motivo algum, estacionávamos nossos automóveis em cima das calçadas, em filas duplas nas portas das escolas a fim de apanhar nossos queridos filhinhos ou em portas de garagem, não respeitávamos as faixas de pedestres e os semáforos, tomávamos bebidas alcoólicas enquanto dirigíamos, ultrapassávamos constantemente os limites de velocidade nas zonas urbanas e nas estradas, causando um grande número de mortes, e não respeitávamos as regras de nossos condomínios.
É interessante observar, por fim, a situação social desses infratores. São, em sua maioria, pessoas de classe média, supostamente educadas, pelo menos formalmente. Contudo, como dizia minha avó Marcelina: “Eles entraram na escola, mas a escola não entrou neles”.

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