4 de março de 2020

Camarilha dos qautro

Jornal O Estado do Maranhão

São recorrentes os ataques do presidente Bolsonaro e três de seus filhos a dois fundamentos da democracia, o Poder Legislativo e o Judiciário. A mais recente agressão deu-se na semana passada, quando ele distribuiu vídeo a seguidores, chamando-os a participarem, no próximo 15 de março, de manifestação de apoio a ele, de repúdio ao Congresso Nacional bem como ao Supremo Tribunal Federal –STF, e de exigência de fechamento das duas instituições.

O apoio aos manifestantes, por parte do presidente da República, equivale a oferecer-lhes aval para aprofundarem a ousadia golpista. Porque se isso não for a pregação de um golpe de Estado, é o quê? Um apelo à paz e harmonia entre os poderes?

Quem tem acompanhado as declarações dos quatro contra a ordem democrática não pode deixar de concluir pela existência de um projeto antidemocrático, sob a aparência de insanidade mental. Polônio, personagem de Shakespeare, na peça “Hamlet”, diz sobre o comportamento do personagem Hamlet: “Ainda que isto seja loucura, mesmo assim há método nela”. A loucura, portanto, não está excluída dessa avaliação. É uma loucura metódica, pois tem um objetivo.

Você, leitor, se lembra da declaração de um bolsonarinho sobre o fechamento do STF com apenas um soldado e um cabo? E desta fala de Bolsonaro: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”? E das homenagens do filho Flávio ao chefe do escritório do crime, o miliciano Adriano? E da proposta de Carlos Bolsonaro, de fazer “a transformação que o Brasil quer” por vias não democráticas? E da fala de seu irmão Eduardo, em defesa de um novo AI-5?

Não devemos fechar os olhos a essas ameaças. O que a alguns pode parecer só grosserias sem sentido são revelações do pensamento (?) da camarilha dos quatro (lembrem-se de Mao). A tática é recuar a cada declaração e alegar em seguida distorção, pela imprensa, da palavra deles, na expectativa de outras declarações da mesma natureza já não chocarem mais ninguém com seus disparates. Não terão o apoio da maioria dos brasileiros ao pretendido golpe.

De onde vem a sistemática tentativa de desmoralização do Congresso e do STF? De Bolsonaro. Em nome de uma tal de nova política, ele se recusa a articular com os legisladores os interesses de seu governo, a fim de aprovar projetos importantes para o país. Omite-se. Por conseguinte, deixa espaço ao Congresso de legislar sem ouvir o Executivo. Por que ouviria, se o presidente não quer ser ouvido? Ele prefere um golpe.

Seu desejo é de o Legislativo aprovar os projetos do Executivo de bico calado. Em democracia nenhuma as coisas funcionam assim. Seu espírito ditatorial está igualmente na essência de suas relações com a imprensa. Esta é boa, somente se não fizer perguntas incômodas sobre a rachadinha de seu filho. Ao falar de uma jornalista da “Folha de S. Paulo”, afirmou que ela desejava dar o furo, em mais uma de suas frequentes demonstrações de grosseria e misoginia (aversão a mulheres).

Não se poderá negar a Bolsonaro, contudo, espírito de inovação. Dou exemplos: a recomendação aos brasileiros de fazerem a número 2, tão só de dois em dois dias; ou a situação dele, de primeiro presidente brasileiro a ser fritado por um subordinado, Moro, em vez de torrá-lo; já não falo da falta de educação nem do seu português bambo.

Diversamente do visto no poema de Kaváfis, os bárbaros chegaram, sob a chefia de um ensandecido metódico. A hora não é de calar. Olho nele.

6 de novembro de 2019

Por séculos e séculos

Jornal O Estado do Maranhão

Por fim, o governo federal parece dedicar um pouco de tempo a assuntos indiscutivelmente vitais ao futuro do Brasil, em vez de focar – como vem fazendo e para dar tão só um exemplo –, em disputas, dentro do PSL, que têm como motivação a ânsia de controle de verbas do partido pela corrente interna ligada ao presidente, em confronto com o grupo do deputado Bivar. Os recursos envolvidos nessa disputa típica da chamada velha política chegam a mais de duas centena de milhões de reais no próximo ano, sendo R$ 200 milhões, aproximadamente, de Fundo Eleitoral, e R$ 68,4 milhões de Fundo Partidário. É dinheiro para nova política nenhuma colocar defeito.

Mas é compreensível o fogo cruzado. Afinal, eleições se fazem com dinheiro. Proibida a doação por empresas, de onde viriam os recursos destinados à eleição dos candidatos, se queremos deixar o dinheiro do tráfico fora da jogada? Dos nossos bolsos, contribuintes indefesos. Assim decidiram nossos representantes no Congresso Nacional.

O foco será, daqui por diante, assim parece, mas não sei se por longo tempo, em assuntos capazes de apontar um rumo claro à nação, se bem conduzidos. O pacote levado ao Congresso pelo presidente Bolsonaro é verdadeiramente ambicioso. Sua aprovação, pelo menos em suas partes essenciais, exigirá trabalho pesado. Não podemos esquecer que, em grande parte, a Reforma da Previdência passou na Câmara e no Senado graças ao engajamento em seu favor dos presidentes das duas Casas.

Tentativas de intimidação às instituições, como as feitas pelos filhos de Bolsonaro, não vão funcionar. Não esqueçam aquela de um de seus filhos, Eduardo, de fechar o STF, com um cabo e um soldado do Exército, sem sequer enviar ao Supremo um jipe cheio de soldados, e a de edição (por quem?) de um novo AI-5, classificado pelo autor da proposta imoral de AI-6, sem saber da edição deste último há décadas.

Parece-me, a aprovação do pacote, de complexidade muito maior do que a da Previdência. Bolsonaro não dispõe de base sólida nem parece muito disposto a articular qualquer coisa, pois alega não estar disposto a nenhum toma lá dá cá. No entanto, foi exatamente esse o comportamento dele, quando queria aprovar o nome de seu filho Eduardo como embaixador do Brasil nos Estados Unidos, como também o foi na disputa no PSL pela liderança do partido. Na ocasião, prometeu a vários deputados cargos na liderança e em comissões parlamentares temáticas.

Previsíveis dificuldades poderão surgir no Congresso. Basta ver a amplitude dos temas a serem apreciados, a fim de confirmar tal observação: 1) reforma do Estado brasileiro, incluídas aí mudanças no pacto federativo, em fundos públicos e nos mecanismos de funcionamento das contas públicas; 2) reforma administrativa, inclusive das formas de admissão e demissão de pessoal, regime de trabalho, eliminação da estabilidade ou um prazo maior para adquiri-la, tudo no setor público, etc.; 3) mecanismos de incentivo à geração de empregos; 4) reforma tributária, a se resumir, possivelmente, em simples junção de alguns impostos.

Mas, com o fim de ser justo e não dizerem que não falei de méritos, aqui vão dois. Um, de Bolsonaro, de ter escolhido uma excelente equipe econômica. Outro é ele não falar sobre economia; ainda bem, é o que ainda funciona no governo. Ele, de boca fechada, não se fica com vergonha alheia nem a economia se sobressalta com suas palavras. Assim seja pelos séculos e séculos.

30 de outubro de 2019

Caso de interdição

Jornal O Estado do Maranhão

“[...]. Eu nunca fui muito afeito à política, acredite se quiser. Em 28 anos na Câmara, nunca fui de uma comissão”.

A primeira parte da afirmação acima é sincera, mas não inteiramente. Não é ainda toda a verdade, porque Jair Bolsonaro, seu autor, odeia a política, não apenas não é “afeito” a ela. A política exige convencimento, paciência e articulação partidária, esta última exigência antes demonizada por ele, mas agora adotada, quando falou com deputados do PSL, com o fim de pedir votos para seu candidato a líder, na briga, no partido, entre seus seguidores e os do deputado Bivar.

Nunca ter sido de comissão parlamentar, como menciona na segunda parte, apenas evidencia seu espírito beligerante e autoritário como também desrespeito a importante mecanismo de representação popular. Trata-se tão só do desassombro dos ignorantes da própria ignorância. Seu isolamento na Câmara dos Deputados resultou do costume de confrontar os membros da Casa e de sua paranoia. “Eu posso ser presidente sem partido”, disse no encerramento da entrevista. Essa ideia é de candidato a ditador, pois não existe democracia sem partidos.

Eu não me surpreendo com essas palavras, que são hostis à democracia. Seus relacionamentos políticos são do tipo exigentes de submissão total. A lista com nomes de seus ex-amigos cresce o tempo todo. Um deles, Gilmar Alves, amigo dos tempos de Dourados, em MS, quando pescavam juntos, e ex-amigo dos tempos atuais, foi chamado por ele de “amigo gay”. Amizade e gratidão não significam coisa alguma para Bolsonaro. Chegou a presidente, pensa, apenas com seus dotes de super-homem, embora mal alfabetizado.

Esses defeitos agora se voltam para a arena externa. Falo da ideia bizarra de o Brasil se juntar ao Uruguai e Paraguai, a fim de expulsar ou suspender a Argentina do Mercosul, como se maluquice como essa não fosse causar prejuízos a nós mesmos. Desinformado, como sempre, ditatorial como sempre e incapaz de pensar antes de falar, como sempre, ele não teve o bom senso, com certeza pela obsessão com sua agenda ideológica, de calcular as perdas inevitáveis para nós, consequentes a um desmanche do Mercosul. Se fez os cálculo, os jogou fora. Não será ele, no entanto, o juiz das opções dos argentinos. Estes elegeram um presidente com visão diferente da do presidente do Brasil e isso basta à Argentina. Contudo, insiste em meter o bedelho nos assuntos internos daquele país, ao classificar a escolha como errada.

O Mercosul está ausente de seu horizonte cultural como um projeto não só de parceria comercial, mas de integração continental. Esta concepção afastou o perigo nuclear na América do Sul, com bem disse o presidente Sarney, em artigo no OEMA, e aumentou muito o comércio na região.

Dos livros folheados por ele, não leu uma linha sequer do que estava entre a capa e a contracapa. Lula foi mais honesto do que ele, porque admitiu seu próprio enfado com a leitura. Ele, não.

Alberto Fernandez, presidente-eleito da Argentina, disse bem: “Bolsonaro é misógino, racista e violento”. Lembrem-se da racista “paraíba”, palavra preconceituosa aplicada aos nordestinos por esse presidente baixo-clero e quixotesco.

O resumo da patacoada está na história das hienas. Ele se comparou a leões e chamou de hienas países, partidos políticos, instituições da República, entre elas o STF, e organizações internacionais. O mundo está contra ele.

O caso de Jair não é de impeachment. É de interdição.

23 de outubro de 2019

Presidência Rebaixada

Jornal O Estado do Maranhão

Bolsonaro encontrou uma desculpa para desistir da indicação do filho Eduardo à embaixada brasileira em Washington, justificada com a suposta amizade entre o rapaz e o presidente americano, Trump; e com a justificativa de alegada habilidade de Bolsonaro júnior no preparo de hambúrgueres, requisito culinário, mas não diplomático, adquirido nos Estados Unidos.

O evento salvador do vexame da indicação foi a tensão entre os dirigentes do PSL, partido atual do presidente, depois de sua passagem por mais de uma dezena de outros, comportamento revelador de seu desapreço pelo sistema partidário e, portanto, pela política como instituição fundamental à solidez da democracia.

Surgida da disputa entre bolsonaristas e não bolsonaristas, pelas verbas do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, o primeiro fundo equivalente a uma bolada de R$ 114 milhões, a ser recebida ainda este ano, e o segundo a uma de R$ 586 milhões, em 2020, quando haverá eleições municipais, num total de R$ 700 milhões nos dois anos, sendo esses valores os mais elevados de todo o sistema partidário, a disputa, eu dizia, deu a ele a oportunidade da indicação do filho a líder do PSL na Câmara dos Deputados, após conspiração comandada pelo ele mesmo, com o fim de derrubar do cargo o então ocupante da posição, delegado Waldir, como se pode ouvir num áudio gravado por um dito amigo dele, mas ainda mais amigo da onça. Ele poderá dizer que desistiu da embaixada brasileira nos Estados Unidos, apenas porque o filho tinha missão mais importante aqui mesmo, justamente assumir a liderança do partido. Deste, com truculência característica, o novo líder imediatamente destituiu 12 vice-líderes, embora o pai tenha dito que a missão do filho era de paz. Se fosse de guerra, teria passado fogo nos 12, com um reluzente trezoitão, e declarado a paz universal. Entre idas e vindas de listagens de deputados do PSL, com o fim de escolher o líder, não se tem certeza até hoje, terça-feira, dia 22/10, sobre quem seja o escolhido.

Essa confusão é reveladora da natureza do bolsonarismo, de características tais como descrença nas instituições do Estado de Direito e democrático; tendência ao personalismo e autoritarismo; ausência de uma visão coerente acerca dos rumos da sociedade, consubstanciada em planos de governo; ênfase quase exclusiva em uma cruzada cívico-moralistas, caracterizada pela tentativa de imposição de seus próprios valores a toda a sociedade; ignorância dos assuntos da economia, tema ao qual Bolsonaro nunca ou quase nunca fez referência; desconhecimento quase completo dos mecanismos internos de governo e dos de relações internacionais; uso de linguagem chula pelo presidente para se referir a todo e qualquer assunto; ilusões quanto ao real poder de um presidente da República, levando-o ao delírio de pensar no chefe do Executivo como mais poderoso do que realmente é; paranoia insuperável; filhotismo, etc.

Quem acompanha os assuntos políticos brasileiros já notou o gosto de Bolsonaro pela polêmica. Não se passa uma semana sem ele iniciar uma, na maioria as vezes prejudiciais a seu próprio governo. Na visão dele, vê-se agora, é mais importante dedicar-se a lutas de rua do seu partido, do que à discussão da votação da Previdência no Senado. Presidente adepto de entrar nesse tipo de briga, arrisca-se a levar caneladas, como essa de ser chamado de vagabundo pelo delegado Waldir, em claro rebaixamento de seu cargo.

16 de outubro de 2019

Nepotismo Principesco e Janja

Jornal O Estado do Maranhão

Eu pensava que a influência de parentes e pessoas próximas de presidentes da República nos negócios da República, iria se encerrar após o mandato, ou os mandatos, de Jair Bolsonaro. Como se verá mais adiante, há motivos para duvidar-se disso. Por enquanto, a paciência do eleitor brasileiro com os filhos dele – pitorescamente chamados de 01, 02 e 03 – acabou, assim me parece, faz meses. Ninguém os elegeu para exercer os poderes presidenciais, mas é isso que eles fazem 24 horas por dia, 365 dias por ano, autorizados e, até, incentivados pelo pai, gerando mais dificuldades do que facilidades ao exercício da presidência, em momento de imensas dificuldades em todas as esferas da vida nacional, da econômica à moral.

Sim, eu tenho conhecimento do nepotismo como um comportamento instintivo dos seres vivos, não apenas dos humanos, de proteger e beneficiar seus descendentes diretos, pois assim conseguem passar às gerações seguintes sua própria herança genética, preservando a espécie. Eu até já escrevi aqui sobre o assunto, em crônica de 4/5/2005, com o título “Nepotismo”. Formalmente, do ângulo socioeconômico do assunto “Nepotismo é a prática pela qual uma autoridade pública nomeia um ou mais parentes próximos para o serviço público ou lhes confere outros favores, a fim de promover o prestígio da família, [...] ou ajudar a montar uma máquina política, em lugar de cuidar da promoção do bem-estar público”, como diz o Dicionário de Ciências Sociais, da FGV. É exatamente isso que Bolsonaro faz.

Por ter comportamento como esse tal natureza, devemos aceitar o nepotismo como parte de características de uma sociedade civilizada? Não, claro. Civilizar-se é exatamente controlar os instintos. Se aceitássemos estes mansamente, deveríamos também aceitar o uso da força do mais forte contra o mais fraco nas comunidades humanas, ou o roubo puro e simples dos mais espertos nessa atividade nefasta, somente porque essas duas condutas são também instintivas? Não, de novo. Portanto, 01, 02 e 03, comportai-vos e comunicai ao papi que vós renunciais às três coroas de príncipes.

Mas o futuro também preocupa, pelo potencial nepótico de Janja. Quem é Janja? Ela, de 40 anos, é noiva de Lula e assumiu novas atividades, em adição e quase exclusivamente, às outras, corriqueiras, de socióloga. Autorizada informalmente por um apaixonado Lula (vejam a força do amor!), que se inspirou em Bolsonaro, ela é agora a própria voz do homem mais honesto do Brasil, com o “nihil obstat” da família dele. Segundo a imprensa do Sul, ela agora dá ordens a dirigentes do PT e orientações a Haddad e Gleisi (quem diria!). Também formou um grupo subsacerdotes conhecido nos corredores do partido como panelinha. Na fila, quando das visitas a Lula na prisão (desculpem a menção a este constrangimento), ela tem passe livre e não precisa se acotovelar com os soldados do PT, passando direto até a cela.

Dirão alguns, Janja não é geneticamente parente de Lula; portanto, não haveria nepotismo no sonhado futuro. Enganam-se. Ela é potencial portadora de um rebento de Lula, que diz não ter encerrado sua carreira reprodutiva. Portanto, ele, na infeliz hipótese de retornar à presidência da República, terá todo o interesse em beneficiar Janja, satisfazendo ao mesmo tempo seu instinto de nepotismo. Seria um quase-nepotismo. No entanto, ninguém poderá acusá-lo de ser o primeiro a adotar tal prática na chefia do Executivo. Bolsonaro já o fez .

28 de agosto de 2019

Duas mulheres

Aquela mulher que vemos ali acaba de se levantar. Irá silenciosa preparar o café da manhã para a família pobre de um bairro pobre, na manhã que mal se inicia, depois de tomar banho de água fria. Estarei ficando velha, perguntará a si mesma no banheiro, e pensará no marido, depois chamará os filhos para a escola, o mesmo marido para o trabalho, a todos para a vida diária corriqueira. Arrumará as roupas de todos, lavadas na noite anterior, depois que chegou tarde do trabalho, fará recomendações, não cheguem tarde, cuidado na rua, lavará a louça e deixará a mesa pronta para o almoço, pois àquela hora ainda não estará de volta. Agora chama a filha, hoje tu vais comigo, é sábado, tem serviço extra, a patroa precisa de nós, estou com uma dorzinha de cabeça, não sei o que é, poderás me ajudar, sempre é um dinheirinho a mais e me aliviará de pegar no pesado, a filha dirá que vai, mas não quer voltar tarde.

Logo tomarão o ônibus lotado, a passagem está cara, os assaltos não param, o motorista dirige em alta velocidade, se não correr será demitido. A mãe falará no caminho sobre o trabalho, é cansativo, não se pode deixar nada empoeirado, a comida tem de sair na hora certa, emprego está difícil, falará sobre os outros filhos, os vizinhos, o vira-lata de estimação, a filha parecendo ouvir, mas pensando mesmo em quê? Quem poderá agora saber? Talvez no namorado, na festa de hoje à noite, afinal é sábado, dia de divertimento, de não pensar a sério na vida, talvez no amor, na felicidade ou na infelicidade, dia de encontrar os amigos que, como se verá mais adiante, virão, eles, vê-las à noite, mas elas não os verão. Já desceram, vão andar alguns metros até a casa dos patrões, não precisarão atravessar a avenida. Chegaram e bateram. Bom dia.

Os dias não têm sido bons, as contas estão aí para pagar, é água, é luz, e o dinheiro sempre pouco, não dá pra nada, comprar os livros da escola das crianças é um sufoco, as roupas nem falar, mas, não demora muito, eles vão começar a trabalhar, não vai ser fácil, mas acabam arrumando emprego, dá pra estudar e trabalhar ao mesmo tempo, é o jeito, pelo menos estão estudando, hoje em dia tá tudo difícil com estudo, imagina sem estudo. O dia passa depressa, tem muita coisa pra fazer, mas hoje tem ajuda, fica mais fácil, daqui a pouco chega a hora do almoço, a comida está bem-feita, parece de restaurante, o salário bem que podia ser maior, dava pra pagar as dívidas, comprar mais uns presentes no Natal. Depressa o tempo passa, que horas são? Tá na hora de voltar pra casa, até logo, não, até segunda-feira, a gente volta.

As duas mulheres agora caminham na noite, daqui a pouco alcançarão novamente a avenida, terão de atravessá-la, olharão para um lado e outro, quem sabe vem algum louco em velocidade, a mãe tomará a mão da filha, dessa forma se sentirão mais seguras, olharão novamente e caminharão para o outro lado e só a mãe verá as luzes dos faróis de dois belos e caros automóveis se aproximando lado a lado, como as duas, ainda tentará puxar a filha, protegê-la com uma só mão e com a outra parar os carros, depois sentirá uma onda de calor e fraca dor no corpo, como se o dia lhe tivesse tirado o vigor, e então não sentirá mais nada. Mais tarde a família e os amigos virão chorar. Não haverá protestos públicos, não haverá indignação coletiva, não haverá manchetes por mais de dois dias, não haverá nomes nem haverá culpados. Haverá o nada.

Machado de Assis no Amazon