4 de julho de 2004

Leonel

Jornal O Estado do Maranhão 
A morte, a necessária contrapartida da vida, tem, de um modo geral, o poder de revisar biografias positivamente, mas somente nos momentos imediatamente após ela se impor inexoravelmente. A verdade é esta. Qualquer coisa dita pelos contemporâneos sobre um líder carismático, um homem marcante na vida política e social de uma nação, ou mesmo sobre um qualquer do povo, um obscuro, mas não desimportante, um simples, um falto de influência, um desamparado, é precário, pois as opiniões estarão irremediavelmente contaminadas pelos interesses e paixões da ocasião, amores e ódios, afinidades e aversões, sentimentos bem humanos.
 O tempo, somente ele, o mesmo autor da sentença irrevogável sobre os grandes e os pequenos, indiferente a seus supostos poderes e fraquezas, é a única força capaz, quando todo o tumulto de uma época cessa, de fazer o julgamento sereno que, entretanto, estará permanentemente sujeito a revisões, com acréscimos e decréscimos à glória ou à infâmia dos levados ao exame da história. Apenas podemos ter esperança de nossa avaliação imediata servir como boa e honesta referência aos interessados, no futuro, em olhar a nossa era e nossos líderes e estabelecer seus próprios juízos sobre nós, como fazemos a toda hora sobre os nossos próprios antecessores, na aventura de construir a nação.
Digo isso tudo para falar de Leonel Brizola, morto recentemente. Ele, para mim, era o último, ou um dos últimos, representantes de uma era agitada e rica da história do Brasil em que eu estava crescendo e começando a descobrir o mundo e a vida política do país. A primeira imagem que me ficou dele, e a mais duradoura, contando eu 13 anos de idade, em 1961, foi a do valente líder da chamada Rede da Legalidade, cadeia de emissoras de rádio comandada por ele em Porto Alegre, usando os transmissores da rádio Guaíba, nos porões do Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, governado por ele. Essa foi a forma dele se opor, depois da renúncia do presidente Jânio Quadros, à tentativa de golpe de Estado por militares que desejavam impedir a posse na presidência da República do vice-presidente João Goulart naqueles dias em visita oficial à China.
Brizola foi o mais típico representante de um desejo de reconstruir o país, sob sua chefia, pelo uso do aparelho do Estado, idealmente capaz de resolver todos os nossos problemas. Essa concepção logo revelou seu potencial de produzir distorções sociais. O estatismo defendido por ele mostrou muito cedo, ironicamente pelas mãos dos militares que cassaram seus direitos políticos e o exilaram, uma capacidade imensa de criar uma classe privilegiada de burocratas nas empresas estatais, muito hábeis em tornar o patrimônio de todos num privilégio de poucos.
Sempre achei Brizola admirável, não pelas suas idéias, com as quais nunca concordei, na área econômica e na política, nesta por sua noção de democracia como um valor instrumental apenas, mas pela coerência com seus ideais e consigo mesmo. A preocupação com a educação, a pregação incessante em favor de um certo tipo de nacionalismo, a coragem de enfrentar os poderosos e de remar contra a maré de novas idéias, o que não o impediu, no entanto, de abraçar a causa do combate à discriminação contra as minorias, mas o levou ao ocaso político muito antes da sua morte, tudo isso ajuda a esboçar o retrato de um político corajoso e coerente, um homem cuja vida foi dedicada inteiramente ao Brasil e seu sofrido povo. Os militares o investigaram exaustivamente durante a ditadura. Não conseguiram acusá-lo nunca de desonestidade, como gostariam.
Suas atitudes audazes de peleador gaúcho sempre pronto para a batalha ficará conosco como um símbolo de um lutador incansável em favor dos brasileiros.

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