16 de fevereiro de 2003

As palavras

Jornal O Estado do Maranhão 
As palavras têm história. Como todos nós, como todos os seres vivos, como o próprio idioma, como o próprio Universo, como a própria vida, como o próprio tempo. Longa história, na maioria dos casos, breve em outros, finita em todos. Mas, ao nascer, crescer e morrer, seguindo a ordem natural das coisas, elas transmitem seus genes etimológicos aos descendentes e freqüentemente nestes sobrevivem.
Vamos tomar o exemplo do Latim. Quantas palavras desse idioma chamado de morto, usadas pelos antigos romanos, fazem parte do nosso cotidiano. Até os aparentes neologismos condenáveis vêm do Latim. Como o verbo deletar, incorporado ao português através da língua dos novos romanos, com o verbo to delete, que significa apagar, suprimir, remover, destruir, muito usado atualmente no jargão da informática. Sua origem está em deletus, particípio passado do verbo delere. Muito se ouve falar da sentença de Catão, o Antigo, ou o Censor, ao final de seus discursos no Senado romano, quase dois séculos antes de Cristo: Delenda Carthago est, Cartago deve ser destruída. Portanto, nosso deletar de hoje tem parentesco com a delenda de Catão. Pedigree não lhe falta.
O certo é que as palavras não têm donos individuais por fazerem parte do patrimônio comum e intangível dos povos, servindo como um dos mais distintivos sinais de nossa condição humana. Elas são instrumentos de comunicação entre os seres humanos, embora se saiba ser essa necessidade de diálogo impossível de ser inteiramente satisfeita.
Elas são de posse coletiva. Seus usuários são livres para usá-las à vontade e acrescentar seu quinhão de sutileza a seus significados. Aí está a razão de terem os vai-e-vens e os altos e baixos que também temos na vida. Algumas nascem e permanecem quase desconhecidas, levando uma existência provinciana, obscura e tediosa. Nem dos eruditos são conhecidas. Outras, não. Nascem destinadas ao sucesso, às primeiras páginas dos grandes jornais, às entrevistas e debates na televisão e no rádio, aos artigos irados de intelectuais de esquerda. Duram ou não.
Lembro de uma, lançada no mundo da pobreza de expressão pomposa pela ministra da Fazenda do governo Collor, Zélia Cardoso de Melo. Era a palavra enfim que, parece, quer dizer finalmente, por fim. Pois bem, a ministra dava um jeito de encaixá-la em suas respostas fosse qual fosse a pergunta. “Ministra, o Banco Central vai forçar uma elevação dos juros?”, perguntava a repórter. “Pode ser, depende..., enfim...”. Mal começava, já parecia estar no fim. O que devia vir por último, como uma espécie de aviso de que finalmente o pensamento exposto anteriormente ia ser resumido e concluído, vinha no começo. O trejeito pegou, revelou-se durável. Até hoje se ouve tal praga quando o entrevistado não tendo dito nada ainda quer dar a impressão de haver completado um brilhante raciocínio.
Mas, eu gosto mais da grande vítima dos maiores abusos verbais dos últimos oito anos: neoliberal. Durante esse período, tudo que não seguisse a cartilha político-econômica dos partidos de esquerda, entre eles o PT (ou seria de ex-esquerda?), levava na testa aquele carimbo e mais o de conivente com os maléficos desígnios do FMI. Aqui na província, por causa do que escrevi certa vez sobre o assembleísmo e as freqüentes greves de professores nas universidades federais fui insultado de neoliberal.
De repente, contudo, o termo sumiu, emudeceu, notadamente a partir do início da campanha eleitoral de 2002. É como se tivesse sido deletado do léxico da língua portuguesa. Como a oposição esquerdista de ontem virou governo e adotou as mesmas políticas do que saiu, antes chamado de neoliberal, suponho não ter sobrado ninguém na oposição para atirar na cara do novo governo a tão temida ofensa.
A palavra neoliberal, enfim, desprezada tão injusta e cruelmente, recolheu-se aos dicionários de onde não pretende sair nunca, segundo suas próprias palavras. Cumpriu aqui fora seu triste destino de mais confundir, do que esclarecer.

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